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Capítulo 2. O Nazismo e Holocausto, ocorrências de Mal Banal

2.4 O mito ariano

Segundo Leon Poliakov, desde 1450 até 1550, o nascente humanismo alemão usou o tema de um passado de grandeza e superioridade pré-cristãs para se glorificar.22 Lutero remeteu a origem dos alemães ao mito do Gênesis e daí deduziu o direito de progenituraao “povo valente e renomado” ao qual o “bando de romanos”, liderados pelo Papa, intentava

20 Cf. capítulo 1, nota 24.

21 Hannah ARENDT, As sementes de uma Internacional Fascista, in: ______ Compreender, p. 170-71. 22 Cf. Leon POLIAKOV, O Mito Ariano, p.75.

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converter num feudo do qual pudesse dispor.23 Para Poliakov, o “modelo cultural nacional”, que brotou do humanismo alemão, rompeu a tradição cristã medieval. Os germanos queriam ser filhos de suas próprias obras e nada dever aos Antigos cujo lugar assumiram. “O mundo inteiro pertence [...] ao germano, de que a conquista à viva força constitui os títulos”24. Este arquétipo, “triunfante e bárbaro”, era incompatível com o ideal cristão. Os mitos de genealogia bíblica, abandonados pela teologia racionalista do século XVIII, foram substituídos pelos mitos do sangue e da raça e esta mudança coincidiu com as tentativas de reabilitação dos deuses germânicos. Na Alemanha do século XIX, este arquétipo surgiu às claras e multiplicaram-se as heresias “germano-cristãs” e a busca de restabelecimento do paganismo pré-cristão. Diz Poliakov:

Cremos poder relacionar essas buscas teológicas ou ideológicas, implicando o mais das vezes uma rebelião contra “o sentido do pecado judeu-cristão”, com o traço saliente do arquétipo do germano, ou do “homem ideal alemão”, que é uma imperturbável boa consciência, ou antes, uma consciência que se quer assim a qualquer preço – a ponto de ter chegado, no fim das contas, ao fantasma de um ser desprovido de consciência.25

O poeta Friedrich Gottlob Klopstock se tornou, no século XVIII, o grande popularizador da mitologia ancestral germânica com seus deuses e heróis. Celebrou as crenças filiadas ao Walhalla, preparando o terreno para a busca de uma “religião germânica”. De acordo com Poliakov,

Na segunda metade do século XIX, estas teosofias e heresias encontraram seu profeta supremo em Richard Wagner, seus principais ritos e cerimônias nos mistérios anualmente celebrados em Bayreuth e seu grande redentor em Parsifal, o Cristo-cavaleiro germânico, também qualificado de “terceiro Adão da História”. 26

Para o autor, este tipo de ideologia racista com o tema da grandeza germânica já vigorava há duas ou tres gerações na Alemanha e em outros países europeus. Deriva de uma pretensão que a antropologia detecta universalmente, que se manifesta nos mitos de origem e faz apologia de uma genealogia gloriosa e augusta para um determinado grupo: descendência de reis, de deuses, de heróis ou de animais sagrados, remontando a um passado muito antigo. Poliakov sugere que, sob roupagens ideológicas distintas, estas forças subsistem no seio das

23 Cf. Leon POLIAKOV, O Mito Ariano, p. 79. 24 Ibid., p. 80.

25 Ibid., p. 82. 26

44 sociedades modernas e que os nazistas tentaram capturá-las invocando as intuições arcaicas da terra e do sangue para fortalecer sentimentos nacionalistas e o direito de “governar o mundo pela força das armas”. Por exemplo, a narrativa de um documento anônimo do século XV, o Livro dos Cem Capítulos, lembra extraordinariamente o discurso ideológico nazista. Aí está expressa a crença numa cultura germânica primitiva que foi solapada por uma conjuração de povos inferiores não-germânicos e que seria restaurada graças a uma aristocracia nova, de origem plebéia, mas de essência puramente ariana que, sob a direção de um Salvador divino, deverá submeter de novo os povos escravos.27

Poliakov entendeu que a recusa a ver o homem criado à imagem de Deus subtendeu o pensamento determinista e racista do século XIX, enfatizado nas doutrinas antropológicas dos fisiologistas. No século XVIII, Saint-Simon pretendeu desembaraçar-se dos “preconceitos religiosos” e pediu que fosse elaborado um princípio explicativo radicalmente novo e superior a todas as outras interpretações da vida, que seria aportado pela ciência. Segundo Poliakov, a ideologia do determinismo racial surgiu na França. Invocando as leis da ciência, considerou- se a raça a influência predominante, “um princípio explicativo universal” que serviria para justificar a exploração do homem pelo homem.28 Este tipo de “cientificismo”, como o

denominou pejorativamente Karl Popper, que pretende que a ciência deva ser a única a ter autoridade para falar da realidade em todos seus aspectos, inclusive os éticos, religiosos e filosóficos, constituiu a linguagem predominante e sustentou o racismo nazista e suas teorias sobre o necessário predomínio das raças “superiores” sobre as “inferiores”.

Joseph Arthur Comte de Gobineau foi um aristocrata e orientalista francês que desenvolveu a teoria da raça ariana no seu livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de 1855. Apoiando-se nos “fisiólogos” de seu tempo e, sobretudo, na Bíblia, a qual, segundo ele, só tratava da raça branca, postulou que esta raça proveniente da Ásia Setentrional, basicamente do Cáucaso e da região montanhosa da Pérsia central, ter-se-ia dividido em três ramos, a partir de Cam, de Sem e de Jafé, os filhos de Noé, e seria ela a dar origem aos futuros arianos29, uma raça superior às demais na criação de uma cultura civilizada e na manutenção da ordem. Para Gobineau, a miscigenação conduziria a raça humana a uma progressiva degeneração física e intelectual.

27 Cf. Leon POLIAKOV, O Mito Ariano, p. 72-3. 28 Ibid., p. 208.

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Homens como Richard Wagner, Nietzsche e politicos como Huston Stewart Chamberlain aderiram ao chamado "gobinismo". Hitler e o nazismo extrairam dele grande parte de sua ideologia.

Um dos principais teóricos do nacional-socialismo foi Alfred Rosemberg, que sintetizou seus objetivos na obra Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts (O Mito do Século XX), de 1930, a “bíblia” do movimento nazista, na qual defendia uma religião do sangue que deveria substituir o Cristianismo. Construiu uma escala cujo nível mais baixo correspondia aos negros, aos judeus e outros povos semitas, e o mais alto à raça branca ou ariana, representada pelos povos nórdicos, que seriam, em última análise, os descendentes dos remanescentes da Atlântida, o continente desaparecido segundo o mito de Platão. Concebia a história mundial como uma sucessão de lutas entre nórdicos e semitas na qual somente os povos nórdicos produziram cultura. Foi um dos principais disseminadores dos “Protocolos dos Sábios de Sião” na Alemanha.

Ideologias de uma mítica origem ariana e de um futuro de restauração da grandeza perdida eram difundidas e propagandeadas, elevando aquela massa sem perspectivas a uma aristocracia de sangue. Testemunha do que Hannah Arendt chamará décadas depois de Banalidade do Mal, a ausência do pensamento que responsabiliza cada um pelos próprios atos e suas consequências, inexistente na Alemanha nazista, onde cada um entregou sua autonomia ao Führer.

A comunidade judaica em geral, julgando tão desprovida de realidade a pregação nazista, tão incompatível com os valores da cultura alemã, tão vulgares as alegações contra si, os desfiles militares, o uso da suástica, a histeria do discurso hitlerista, demorou muito a dar- se conta da dimensão da catástrofe e, quando isto aconteceu, todos os caminhos de defesa ou de fuga já estavam praticamente fechados.