• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. O Nazismo e Holocausto, ocorrências de Mal Banal

2.9 O Holocausto

Após a invasão da URSS na “Operação Barbarrossa”, em 22 de junho de 1942, a morte dos judeus, antes produto da pura brutalidade e sadismo, mudou para um genocídio sistemático, planejado por Heydrich. Quatro Einsatzguppen43, as Unidades Móveis de Extermínio, acompanhavam o exército alemão regular, o Wermacht, e junto com os habitantes que iam sendo cooptados – lituanos, estonianos, letões e ucranianos – calcula-se que mataram, geralmente por fuzilamento, quase 1 milhão e 300 mil judeus44, além de poloneses, ciganos e os considerados inimigos políticos.

As matanças realizadas pelos Einsatzguppen envolviam muita brutalidade e emoção, até mesmo para os assassinos.45 Os alemães, preocupados com a disciplina e a eficiência, buscavam métodos que diminuíssem a possibilidade de resistência das vítimas e tornasse a ação dos carrascos a mais impessoal e burocrática possível, evitando o envolvimento emocional com as cenas horrendas de morte e sofrimento. Contudo, “muitos membros dos Einsatzkommandos, incapazes de suportar mais andar sobre sangue, cometeram suicídio.

43 Grupos paramilitares com 500 a 900 homens cada, organizados por Himmler nos países conquistados do Leste europeu.

44 Segundo cálculo do historiador Raul Hilberg, em seu livro The Destruction of the European Jews.

45 Com esta devastação, foi destruída a riquíssima cultura do Shtetl, como eram chamadas as pequenas cidades de população predominantemente judaica da Europa Central e Oriental, sobretudo na Polônia, Rússia e Bielorrússia. Nelas se falava o iidiche, um composto de línguas no qual predominava o alemão, porém escrito com letras hebraicas. O Shtetl existiu durante séculos, e neles era muito vivo o estudo e as práticas da religião. Esta cultura, comunitária no mais alto grau, foi retratada em histórias saborosas como as do escritor Scholem Aleichem, nos contos de Isac Bashevis Singer e na pintura de Marc Chagall.

54 Alguns até enlouqueceram. A maioria dos membros dos kommandos tinha que se apoiar no álcool ao executar seu horrível trabalho”46.

A guerra e os planos de assentamento a longo prazo, de Hitler, dependiam da apropriação dos alimentos e de outros recursos soviéticos, ainda que se soubesse que dispor destes recursos significaria que “sem dúvida, dezenas de milhões de pessoas morrerão de fome”47. Com a pouca comida, as “bocas inúteis” teriam que ser eliminadas, e esta

justificativa precipitou a Solução Final. A partir do fracasso completo do programa nazista de reassentamento do povo germânico, que tinha como intenção criar o Grande Reich Alemão, a execução do Holocausto tornou-se finalmente tudo o que restou de um programa mais amplo de limpeza étnica e reordenação do Leste.

Em 20 de janeiro de 1942, Heydrich chefiou uma reunião que ficou conhecida como a “Conferência de Wansee”, realizada num aprazível palacete à beira do lago Wansee, em Berlim, convocada para organizar, a mando de Hitler, o plano de extermínio total da população judaica da Europa, a “Solução Final” ou Endlösung der Judenfrage. A decisão foi comunicada aos 15 homens, de diferentes instituições e órgãos, presentes que depois foram lanchar num clima ameno e civilizado. Para realizar esta “tarefa” em tão grande proporção, toda uma burocracia, cuja missão era matar em grande escala, foi organizada. Seus membros, disciplinados e eficientes, para conseguir realizar o dever que lhes era atribuído, precisavam dissociar seu “trabalho” de suas consciências, não podendo ligar o papel preponderante na matança de seres humanos à autoimagem de boas pessoas, bons pais de família, bons cidadãos que, em suas casas, beijavam com carinho os filhos, acariciavam seus cachorros e julgavam linda uma flor e sublime um pôr do sol. Vemos, num documentário, Reinhard Heydrich, a segunda autoridade da SS e o grande responsável pela “Solução Final”, brincar de forma encantadora com seu filho e tocar violino com grande maestria e sensibilidade.

O problema maior “era como superar não tanto a consciência, mas sim a piedade animal que afeta todo homem normal em presença do sofrimento físico” 48. A forma de efetuar essa dissociação era fragmentando as responsabilidades. Cada elemento da burocracia alemã era responsável por uma pequena parte da tarefa de extermínio, muito pontual, muito concentrada e com isto podia não se assumir como assassino, mas somente como um bom

46 Roney CYTRYNOWICZ, Memória da Barbárie, p. 64. 47 Mark ROSEMAN, Os Nazistas e a Solução Final, p. 38. 48 Hannah ARENDT, Eichmann em Jerusalém, p. 122.

55

servidor do Reich, pretextando ter apenas obedecido às ordens do Führer ou de seus superiores e, portanto, merecer até ser louvado como um funcionário exemplar, assim como alegaram todos os nazistas em seus julgamentos no pós-guerra. Alguns poucos tinham plena consciência moral da dimensão do que faziam, mas não o diziam em público. Himmler por exemplo, numa reunião secreta que foi gravada e onde estavam presentes alguns membros da SS em Poznan, na Polônia, em 4 de outubro de 1943, disse:

Quero agora mencionar um assunto muito difícil, de forma totalmente aberta. Ele precisa ser discutido entre nós, mas jamais falaremos dele em público. [...] Estou falando sobre a “Evacuação Judaica”: o extermínio do povo judeu. [...] A maioria de vocês saberá o que significam 100 corpos estendidos juntos, ou quando são 500 ou 1000 corpos. E tendo visto isto e, com exceção da fraqueza humana, ter permanecido decentes, nos tornou rijos e é uma página de glória que nunca é mencionada e não deverá sê-lo. [...] Tomamos suas riquezas [e] não ficamos com nada para nós mesmos. [...] Porque, afinal, não queremos, após ter exterminado o bacilo, adoecer e morrer devido ao mesmo bacilo. Nunca verei. [...] um nada de putrefação entrar em contato conosco ou fincar raízes em nós. [...] No geral podemos dizer que conduzimos esta tarefa tão difícil por amor ao nosso povo. E não absorvemos este mal em nós, em nossas almas, em nosso caráter.49

Esta mixórdia, esta estranha mistura de perversidade com conceitos de dever, de ameaças de morte com declarações de honradez e de amor ao povo, constituía o discurso predominante do nazismo. “O que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos era simplesmente a ideia de estarem envolvidos em algo histórico, grandioso, único, ‘uma grande tarefa que só ocorre uma vez em 2 mil anos’.”50

Os judeus de toda a Europa ocupada foram deportados para os campos de extermínio na Polônia. Até o final da guerra, quando já era evidente a derrota, continuou-se a enviar judeus para a morte. As deportações eram feitas por trem e dependiam das negociações com os governos locais, da disponibilidade de trens ou da capacidade das câmaras de gás que passaram a ser utilizadas nos campos da Polônia no começo de 1942.

Os assassinatos eram chamados em código nos documentos nazistas de “tratamento”, os judeus de “mercadoria”, ou “carregamento” ou “peças”. O processo de morte por asfixia era “adormecer”; as câmaras de gás, “instalações especiais” ou “casas de banho”; as deportações, “evacuação”; matar com gás, “tratamento especial”; o extermínio, “limpeza racial”; os corpos, “marionetes”, “bonecos” ou então “trapos” e o genocídio, “solução final”. Não se podia usar a palavra morte. Ao abrigo destes eufemismos, os perpetradores do

49 National Archives, in: College Park, Maryland. (Tradução livre) 50 Hannah ARENDT, Eichmann em Jerusalém, p. 121.

56 Holocausto: os nazistas, os soldados, os burocratas, além da população que via seus vizinhos desaparecerem a cada dia e nunca mais retornarem, que via os trens correndo para as fábricas de morte com a sua mercadoria ou que sentiam o cheiro da carne queimada se desprendendo dos fornos crematórios – afastavam da consciência o peso de sua responsabilidade na morte de seres humanos.

Pela primeira vez na história da humanidade, milhões de seres humanos foram assassinados num processo industrial, numa linha de produção da morte, em que todos os aspectos de como matar seres humanos foram racionalizados e medidos em termos de economia de tempo e energia, de custo e benefício 51.

Milhões de judeus foram exterminados nestes campos entre 1942 e 1944. Somando-se os judeus, os ciganos, os homossexuais e presos políticos (anarquistas, socialistas e comunistas), somente nos Campos de Concentração morreram entre 5 e 6 milhões de pessoas. Com os 25 milhões de soviéticos, os milhões de alemães, os 3 milhões de poloneses não judeus e os demais soldados que lutaram na guerra, cerca de 50 milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra Mundial.

Com o término da guerra foi instituído o processo de Nuremberg encarregado de julgar os criminosos de guerra do regime nazista. Os réus se declararam todos não culpados, na base da alegação de que apenas cumpriam ordens emanadas de uma hierarquia onde no topo estava Hitler, às quais lhes competia obedecer. Por isso, não se julgavam culpados, nem como cidadãos nem como funcionários. Nenhum demonstrou arrependimento.

Diante de todos esses acontecimentos, o conceito de “Banalidade do Mal”, que Hannah Arendt usou de forma quase inadvertida, ganhou vida própria. Apesar de não circunscrevê-lo e de não haver dado uma resposta clara do que pretendia que fosse seu significado, muitos perceberam que ele poderia ser usado como uma poderosa ferramenta, não só na análise dos sistemas totalitários e de seus agentes, mas do mundo pós-moderno de maneira geral. É sobre sua abrangência, localização e seus possíveis significados que tratará o próximo capítulo.

57