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Como já foi ressaltado anteriormente, a redefinição do ethos ambientalista causou alterações no discurso e na atuação dos movimentos ambientalistas, além de provocar conseqüências diretas na relação desses movimentos com os demais atores sociais, sobretudo com a sociedade civil, a imprensa, a comunidade científica e o Estado. Toda essa redefinição causou mudanças na própria lógica do debate público e da conseqüente visibilidade dos fenômenos e temas ecológicos, especialmente com a adesão dos movimentos ambientalistas à lógica da sociedade em rede, associada à utopia emblemática da modernidade, que é a tecnologia. Segundo Agnes Heller (2002), independentemente do ponto de vista, os discursos sociais e políticos remetem à relação do ser humano com a diversidade de aparatos tecnológicos: “Qualquer coisa que falamos está sempre relacionada à tecnologia”, reforça a autora, ao complementar que, no contexto da sociedade moderna, a tecnologia tornou-se um equipamento social onipresente e ambíguo: “Em determinado momento, a tecnologia e as máquinas são vistas como algo maravilhoso; em outro, essa mesma tecnologia e suas máquinas devem ser destruídas” (Heller, 2002, p.46).

Uma contribuição expressiva para o aprofundamento dessa discussão são os conceitos de ação comunicação e ação instrumental, de Jürgen Habermas, que integram sua Teoria da Ação Comunicativa (1987). Sob essa perspectiva teórica, a racionalidade (conceito weberiano mencionado anteriormente) pode ser considerada agente do mundo sistêmico, entendido por Habermas como a esfera da sociedade que compreende o universo das relações normativas e regulamentadas, resultantes do modelo de sociedade contratual. Em contraposição, o autor compreende o mundo vivido como a esfera que contribui para manter a identidade social e cultural dos indivíduos e comunidades, ao favorecer o compartilhamento de valores, a livre expressão de idéias, a comunicação de natureza mais participativa e menos instrumental.

De forma mais detalhada, o mundo sistêmico pode ser entendido como a esfera da ação instrumental, planejada, estratégica, regida por uma racionalidade determinada, o que implica um modelo de comunicação igualmente estratégica e instrumental, ou seja, voltada para fins e objetivos específicos e pré-determinados. Toda a ação e comunicação no âmbito do

52 mundo sistêmico são pautadas por mecanismos burocráticos que limitam e controlam as decisões voluntárias, as manifestações espontâneas dos indivíduos e da livre expressão do pensamento e da opinião. No caso dos movimentos ambientalistas, seus discursos devem ser orientados para os fins e objetivos almejados, de acordo com a filosofia das organizações.

O mundo da vida, de forma mais minuciosa, compreende três elementos estruturais: a cultura, a sociedade e a personalidade. O primeiro é entendido por Habermas como o acervo de saberes acumulado historicamente, em que os participantes da comunicação se abastecem de interpretações para entender algo do mundo. O segundo é concebido como um sistema composto por ordenações legítimas, mediante as quais os participantes de uma rede social regulam sua forma de participação e pertencimento a grupos sociais e instituições. Já o terceiro, caracterizado pela personalidade, é traduzido pela competência nos processos que possibilitam a um sujeito ter linguagem e ação, que o habilitam a fazer parte de processos de entendimento e compartilhamento de signos, além de afirmar neles sua própria identidade (Habermas, 1987).

Habermas é criticado por apresentar o sistêmico e o vivido como sendo dimensões separadas da sociedade (Ingram, 1994), mas na realidade, essa crítica é improcedente. O que ele fez, de fato, foi uma caracterização individualizada de cada esfera, para fins meramente explicativos. Implicitamente, está sugerido um ponto de vista de integração de ambas as esferas, como modelo ideal para o funcionamento da sociedade. Uma demonstração dessa visão está na crítica que Habermas apresenta ao fenômeno que ele domina de “colonização” do vivido pelo sistêmico.

Essa “colonização”, a seu ver, decorre do fato de que os espaços mais livres e espontâneos da sociedade, mais precisamente da esfera cultural, estão cada vez mais invadidos pela lógica normativa e regulamentar do mundo sistêmico, mediante a adoção de rotinas, práticas e procedimentos que exigem cada vez mais expedientes e mecanismos burocráticos. Em outras palavras, isso significa a burocratização da vida pública, além da esfera estatal, à qual a burocracia é inerente. A crescente burocratização limita as formas espontâneas de participação popular, as quais estão, de forma crescente, sendo regulamentadas. Isso é conseqüência da aceleração do sistema de colonização do mundo da vida, processo no qual “o mundo vivo se reduz gradualmente a um satélite do sistema”, como produto direto da racionalização administrativa (Ingram, 1994, p.167).

Conforme Habermas, o tempo e o lugar em que esses momentos da vida cotidiana são realizados estão sempre mais subordinados a padrões normativos. Está ocorrendo uma redução progressiva da espontaneidade, da naturalidade e da informalidade das relações

53 humanas, sociais, comunitárias e interindividuais. Essa dissociação é uma característica da modernidade. Como salienta Ingram (1994), nas sociedades menos desenvolvidas, a exemplo daquelas regidas pelos padrões de parentesco, não havia separação entre o vivido e o sistêmico. Conseqüentemente, a toda ação coletiva era decorrência da sociabilidade, o que não significava ausência de regras e normas. Só que os elementos normativos dessas sociedades eram regidos pelo princípio sociológico de desiderabilidade social, entendido por Durkheim (1983) como desejo comum, um reconhecimento comunitário de que tais regras eram desejáveis e necessárias – para o bem de todos.

Assim, as regras e normas sociais funcionavam como uma espécie de “cimento social” que favorecia a coesão entre os indivíduos e grupos. Um exemplo disso, muito destacado pelo pensamento durkheiminiano, eram as formas elementares de vida religiosa, situadas no âmbito do vivido, por resultar de um claro processo de compartilhamento de sentidos de uma comunidade, atrelado a uma rede comunicativa, tecida com base em um acervo de conhecimentos pré-existentes, transmitidos pela cultura e pela linguagem (Ingram, 1994). Além disso, as normas religiosas eram regidas pelo princípio de desiderabilidade. Isso significa que os próprios fiéis desejavam a existência dessas regras e as viam com algo útil e necessário à vida religiosa. No caso do ambientalismo, essa concepção se aplica ao s movimentos de inspiração libertária e radical.

O que podemos depreender de tal concepção é que o mundo sistêmico constitui resultante histórica do mundo vivido, ou seja, o primeiro desenvolve-se a partir do segundo, à medida que a sociedade vai se tornando mais complexa e exigindo formas mais rigorosas de controle da ação social. O grupo deixa de ser a referência. O indivíduo é que se torna o eixo da ação social, enfraquecendo os padrões de ética da convicção, os quais dão lugar aos comportamentos pautados na ética da responsabilidade, como salienta Weber (1983). Esse novo padrão de comportamento social passa a requerer mecanismos normativos diferenciados, acarretando o surgimento de diversos elementos para “administrar” a ação humana na sociedade.

Aplicados ao campo do ambientalismo, esses pressupostos podem ser exemplificados com a emergência dos movimentos organizados, das redes de entidades ambientalistas, que passaram a substituir os líderes carismáticos, que agiam em nome de suas próprias convicções – das quais não abriam mão. Os movimentos organizados, em alguns casos, até dispensam a divulgação de idéias a partir de um porta-voz, a fim de evitar a personificação e fortalecer a imagem institucional da entidade (Pereira Rosa, 2006). Neste caso, o objetivo é garantir a inserção do nome da entidade na cobertura dos media sobre temas ambientais, com ênfase

54 para suas estratégias institucionais, a fim de reforçar o papel da instituição como definidor primário de informação sobre ambiente, de modo a gerar impacto na opinião pública.

Assim, as organizações ambientalistas passam a normatizar sua atuação institucional, um agir estratégico inserido numa teia de procedimentos racionais. É como se essas organizações procurassem construir uma racionalidade burocrática otimizada. O surgimento da burocracia é apontado por Weber como resultado de um processo racional sistêmico. Na visão de Habermas, a burocracia é uma das figuras mais emblemáticas do mundo sistêmico. Mas tudo isso vai surgindo como um processo orgânico de desenvolvimento da sociedade moderna e da democracia. O problema questionado por Habermas é que esse processo desencadeou a primazia do sistêmico, que por sua vez, traz como conseqüência o enfraquecimento das manifestações do mundo vivido. E com isso, reduz-se o espaço de liberdade e autonomia e importância. Tanto é que, no passado, os líderes ambientalistas eram considerados os únicos agentes da cultura ambientalista e agiam contra o mundo sistêmico. Nas últimas décadas, porém, essa visão perdeu força, devido à crescente racionalização e adoção de modelos e mecanismos estratégicos pelas entidades ecológicas. Por outro lado, essas entidades passaram a investir em estratégias simbólicas, com expressa valorização da competência comunicativa de seus dirigentes e colaboradores, a fim de facilitar a interação com outras organizações, em consonância com a lógica das redes.

A ação comunicativa é entendida, aqui, sob duas perspectivas. Na primeira, é vista como um mecanismo de interpretação através do qual se reproduz o saber cultural. A segunda compreende o fenômeno como a forma pela qual os atores sociais, ao se entenderem sobre algo no mundo, participam simultaneamente em interações através das quais desenvolvem, confirmam e renovam simultaneamente interações através das quais desenvolvem, confirmam e renovam seu pertencimento aos grupos sociais e à sua própria identidade (Teixeira, 1996).

No caso específico das organizações não-governamentais do ambiente, a última autora citada afirma que essas organizações alcançaram uma das formas mais institucionalizadas que a sociedade civil conseguiu atingir, com o mérito de respeitarem a diversidade e o pluralismo, além de estabelecerem relações institucionais mais democráticas que aquelas existentes no âmbito político partidário. Com a articulação em forma de redes, na avaliação da autora, elas ampliam os mecanismos democráticos, por meio de múltiplas interligações (cooperativas ou conflitivas) com partidos políticos, sindicatos, outros movimentos sociais, entidades estatais e internacionais, a fim de “construir uma racionalidade ética, comunicativa, voltada para uma sociedade mais igualitária e justa” (Teixeira, 1996, p.181).

55 As redefinições na estrutura administrativa e no conteúdo programático e ideológico dessas organizações, conforme a leitura da autora citada, fazem parte de um projeto de racionalização que se relaciona com o conceito weberiano de ética da responsabilidade e de racionalização do mundo da vida (Habermas): “Elas buscam incorporar as técnicas existentes para atingir qualidade no resultado do seu trabalho, e para influenciarem de forma comunicativa e democrática no Estado e na economia” (p.181).

Todas essas mudanças, entretanto, não podem ser entendidas apenas sob um prisma otimista. Ao optarem pela ética da responsabilidade, algumas dessas entidades desvinvulam-se de seus ideais de origem. Tornam-se tão pragmáticas e colocam suas metas de alcance de resultados acima de uma filosofia crítica que podem correr o risco de se deixarem colonizar pelas tradicionais regras do poder político que redundam em inoperância burocrática e corrupção. Como alerta a autora citada: “Não podemos prever, também, até que ponto o diálogo com o Estado e o mercado não poderão transformar as ONGs em entidades também colonizadas pelo dinheiro e poder” (p.182). Com perspectiva crítica similar, Araújo (1996, 156) adverte que, “com essa colonização ao contrário, as ONGs pagariam o tributo da burocratização e da perda da eficácia e legitimidade como mecanismos promotores do debate. Minguaria, em suma, seu capital de confiabilidade”.

Na esteira dessas redefinições do ambientalismo, surgiram diversas concepções teóricas, as quais serão apresentadas e comentadas no capítulo seguinte.

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