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4.7 MIGRANDO PARA SI: AFETO COLATERAL DO hiv / aids: UMA CONVERSA ENTRE OS ARTISTAS

5- CASCA, POLPA E CAROÇO

5.1 Agora chupa essa manga!

Em seu texto O Teatro e a Peste (2006) Artaud nos provoca:

E a questão que agora se coloca, é saber se neste mundo em declínio, que está

se suicidando sem perceber, haverá um núcleo de homens capazes de impor

essa noção superior de teatro, que devolverá a todos nós o equivalente, natural e mágico dos dogmas em que não acreditamos mais. (p. 29)

As mangas fazem parte da minha poética desde o primeiro espetáculo que dirigi após saber minha sorologia para o vírus. Tendo como tema as relações de sigilo/segredo das pessoas que vivem com hiv lancei mão dessa fruta na criação de cenas. Recordo do primeiro laboratório onde inseri a fruta a fim de disparar possibilidades para as cenas onde queríamos que o corpo dissesse e não a palavra, sobre o encontro erótico e toda a sua natureza. Levei a fruta para sala de ensaio e ofereci ao elenco com um único comando “chupem essa manga juntos e não a deixe cair no chão”, enquanto observava os atores construindo uma movimentação em contato direto, corpo a corpo tendo a manga como provocação e elemento de jogo, vi ali sendo construída uma cena de interação erótica, cheia de pureza sem pudores. Os atores foram se despindo ao passo em que a beleza da imagem crua que a coreografia de seus corpos dançava naquela improvisação, me provocaram desejo, tesão, aquilo tinha cheiro de liberdade e sujou toda a sala de ensaio. Da casca, à polpa e ao caroço, os atores construíram um jogo sob minha condução que se transformou em uma das cenas mais marcantes do processo e tem o título “Agora chupa essa manga”, a cena foi descrita e analisada em minha monografia42 entre as páginas 50 e 53, acho que essa foi a minha primeira prática contaminada. Daquele momento em diante investigo no meu próprio corpo, do tato, olfato e paladar que se envolvem com o fruto até nas memórias que me perseguem. Do dito popular, que nos coloca em uma situação de “lide com isso” até a presença do fruto em contos e histórias que ocupam meu inconsciente “o fruto proibido”, mas que se proibiu também era o fruto da sabedoria.

Quando eu descobri a aids, me deram metaforicamente uma manga pra chupar, na primeira vez eu usei uma faca, amolada da compreensão errônea de que meu desejo e minha sexualidade me adoeceram de aids, porque não me ensinaram sobre aids, mas me disseram que isso era coisa de bicha, a bicha que eu aprendi a ser. A manga que me deram era verde, pra comer com sal, fora do seu período de colheita, arrancada do pomar precocemente e me entregue em um prato branco de porcelana europeia. Eu haveria de comer aquela manga na frente de todos, da igreja, do estado e da família, em praça pública e em silêncio digerir o fruto.

Eu fechei os olhos e enlouqueci, tomei doses em pílulas de loucura, uma, duas três doses em uma só... Com os olhos fechados, soltei a faca amolada no chão, cortei meus pés e segui em direção à árvore que estava atrás daqueles que me observavam, desviei de um pai,

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O texto na integra está disponível no repositório de monografias, dissertações e teses da UFRN. Link para acessos e download: https://monografias.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/6267/1/TCC- %20FRANCO%20-%20VERS%C3%83O%20FINAL%20-

de um presidente e de deus, mas havia um outro homem à minha frente, e era eu, meus olhos ainda fechados não me deixavam enxergar, juntos chupamos uma manga madura sem deixar cair no chão. Havia rastros de sangue dos meus pés cortados, mas eu estava com tanta fome, foram dias e dias até chegar ali. Senti a vida doce e suculenta, pressa entre os dentes e escorrendo sumo grosso pela garganta, o cheiro se misturou com meu suor, saliva e outros líquidos, inclusive o sangue dos pés cortados... Quando abri os olhos, pude retomar a respiração e ir retirando os fiapos amarelos, pouco a pouco, sorrisos se abrindo no canto da boca e no gosto que ficou havia fome pela cura. Uma manga de cada vez, encontrei meu caminho para seguir. Preciso que vocês chupem junto comigo esses frutos proibidos, neles há sabedoria para nos sarar, chupem junto comigo sem deixar cair no chão.

Sigo na busca, uma procura, de um “olhar” pós coquetel para as artes cênicas, onde a arte confronte as pestes sociais. Talvez eu tenha me contaminado demais das ideias do Artaud ao pensar o teatro como peste, talvez eu seja um tanto romântico e não consiga me distanciar das redes que me mantém vivo, para além dos remédios. Mas o olhar pós coquetel que procuro, é um olhar que diz sobre redes, emaranhados, tramas, fios sob e sobre fios interligados, fiapos presos entre os dentes, interconexões, cruzamentos, por vezes em pontos comuns, paralelos ou díspares. Um olhar que apaga o mundo já narrado, as “verdades ditas”, um olhar para o FIM DO COMEÇO DO MUNDO, o caroço dessa pesquisa, que modifica e reconfigura, inclusive trazendo à tona moldes de construção histórica “oficiais” que não me contemplam, mas subsistem outras noções. Digo subsistem, porque não são novidades, mas foram borradas no ocidente, acredito que o engajamento criativo e a união de semelhantes pelo afeto e pela identificação com as questões sociais que nos circundam historicamente são chave de reconexão para a cura.

Não deveríamos negar a possibilidade dessa chave ser usada pela arte, para nos abrir as portas que levam inexoravelmente ao encontro. Pensar o contrário nos coloca numa neutralidade política como uma opção e isso me parece efeito de um fenômeno burguês que espera uma produção criativa sem desvios, sem rupturas com um sistema que e é reforçado pelo cis-tema de poder (econômico, histórico e social), um discurso de controle da arte que não atenda ao seu papel de rebeldia.