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3.5 O SEGUNDO ARMÁRIO: O ARMÁRIO PÓS COQUETEL.

As Artes da Cena, especialmente o teatro brasileiro, construíram enfrentamentos contra as violências sociais e morais oferecendo resistências, históricas e simbólicas, ao interagir com elementos intrínsecos a uma cultura caracterizada pelo domínio masculino, pelas disparidades sociais entre as fronteiras de gênero, classe e raça e são pontos de constantes mudanças sobre o nosso fazer em resposta às lutas de poder político social.

Se pensarmos o teatro brasileiro no final dos anos 60 e início dos 70, recordaremos a discussão sobre a liberdade sexual e expressão de gênero dissidente fortemente abordada nesse período e que é fácil identificada na forma irreverente da cena teatral. Espetáculos e corpos discursivos, que protagonizaram as narrativas de bichas brasileiras e tiraram as artes cênicas do armário. Uma espécie de contágio criativo marcado, em especial, com o surgimento, em 1972, do grupo Dzi Croquettes.

No Brasil, a homossexualidade foi oficialmente registrada como uma patologia clínica, no DSM - I24 (1952), lia-se “distúrbios sociopáticos da personalidade, como um desvio

24Manual Estatístico de Transtornos Mentais, documento utilizado pela psicologia e psiquiatria clínica.

Figura 18 Grupo Dzi Croquettes. Foto: Acervo virtual O Globo.

sexual”. Em 1968, deixa de ser uma categoria de “distúrbios sociopáticos da personalidade”, não sem deixarem de persistir tentativas de patologizar esses corpos e

desejos. Ou seja, mesmo antes da aids, a lógica política discursiva apontava para uma patologização da expressão homoafetiva, eram pessoas doentes que antes precisaram ser literalmente trancados e que depois deveriam se “trancar em armários”, livrando a população geral desse problema sério de saúde. Esse jogo dado pela semântica nas políticas de estado e pelas relações interpessoais seria objeto de discussão no âmbito acadêmico do teatro, de onde destacamos a pesquisa de MORENO (2002), “A máscara alegre: contribuições da cena gay

para o teatro brasileiro”, que investigou a história do teatro LGBTs, focando na letra G,

desta sigla.

Só em 1973, no Brasil, diante de diversos protestos de ativistas, a homossexualidade é retirada do status de doença mental, tendo sido registrado no DSM III, em 1980. Eram os “anos de chumbo”, maior movimento de repressão autoritária das liberdades artísticas. E, ironicamente, em paralelo ao auge do regime militar, símbolo maior de controle do homem heterossexual branco, surge o movimento poético político do Dzi Croquettes que influenciou diversas gerações e se tornou a nossa primeira chance de “sair do armário”.

O Dzi Croquettes inaugurou no Brasil um grande movimento que até hoje reverbera discussões sobre existências plurais, no que diz respeito às sexualidades e expressões de gênero dissidentes das bichas, em especial, no teatro brasileiro.

Os “anos de chumbo” – pesados, sombrios e rígidos – dão origem a uma das mais criativas representações artísticas de gênero e sexualidade dissidente na história do teatro. Porém, esse movimento que crescia e se espalhava pelo país foi atingido pela aids. A aids matou e silenciou nos palcos e nas escolas de teatro, se instaurando como argumento “clínico” para silenciar as liberdades. Assim, propostas estéticas desenvolvidas no período não conseguiram ser usadas como ferramenta de transgressão em sua completude, pois quando algo se relacionava com homossexualidade, a aids instaura um silêncio, um retorno para um outro armário.

Quatro dentre os treze jovens de classe média, de idade entre 18 a 30 anos que integravam o grupo, morreram em decorrência da aids. O primeiro, Marquito, depois Paulette, Eloy, Lennie e, por último, Gaya. O que aprendemos sobre a aids? Como reagimos enquanto artistas? Mesmo com a repressão e censura violentas, esse movimento invadiu nossa cultura. Ali era teatro e vida se cruzando e, embora as obras do grupo não expusessem o tema da aids, bichas que falavam em cena sobre os seus afetos não era bem o que o regime militar e a nossa família moralista tradicional ou a igreja brasileira esperavam. Esse exemplo

de dissidência teatral antagônica a um regime totalitário, não é exclusividade sudestina, eis que no nordeste brasileiro do anos 70 surge o inquieto e irreverente Grupo de Teatro Vivencial25, tal grupo tem seu começo em aulas de formação teatral dentro de um contexto

cristão católico, literalmente, o grupo recebe esse nome quando estreia seu espetáculo “Vivencial”, o contexto era de uma pastoral ligada a arquidiocese de Olinda e Recife em Pernambuco, o espaço de de formação para jovens de comunidades de Olinda e Recife, lembro aqui que o teatro vindo do ocidente no Brasil tem histórico usado como ferramenta de “controle” social, ou já esquecemos que foi com Teatro que os Jesuítas catequizaram os nossos povos originários? Essa mesma potência, mesmo em contextos adversos, como no caso do citado grupo, pôde provocar transformações sociais de contracultura que trouxeram à tona temas emergentes e outrora sucumbidos da história oficial.

O Vivencial montou cerca de 31 espetáculos, todos com a presença de corpos dissidentes, negros, gays, trans, pobres sendo todas as peças produzidas de modo coletivo, a força que demarca a história de grupos com o Teatro Vivencial vem sendo estudada por vários pesquisadores e tomando diversas narrativas, na arte, na antropologia, na história e nas ciências sociais.

No prelúdio desta dissertação, falei de como um instrumento simples, como uma vassoura26, pôde, nas mãos de um corpo subjugado frágil e inferior, quebrar uma janela de vidro temperado, foi o que o grupo conseguiu fazer usando de sua força criativa e transgressora, sem quase nenhum investimento ou instrumentação técnica elitizada, montar quase todos seus espetáculos com escassez e recurso e riqueza de diversidade, crítica e alcance dos corpos que estavam a margem, corpos bicha, corpos trans, corpos mulheres, corpos pobres, corpos guetos, corpos mangue, corpos lama, corpos do livre arbítrio, corpos da sexualidade dissidente, corpos foras da norma de gênero e sexualidade, em uma explosão intersemiótica de vivenciar o erotismo como potência de si. Corpos que a aid$ matou e mata no palco físico e no palco imagético.

O grupo vivencial deseja colocar em cena, no nível de uma discussão permanente, a dialética entre o erótico e o político, sem pedir permissão nem a platão nem a marx-engels para revolucionar a palavra no corpo.

25 Grupo de Teatro Vivencial (1974). Surgiu em Olinda, em 1974, por influência do Tropicalismo, tornando-se um marco da irreverência e da contracultura na cena pernambucana dos anos 1970 e 1980. Dirigido por Guilherme Coelho, na época postulante a monge beneditino, o grupo se originou nos trabalhos da Associação dos Rapazes e Moças do Amparo (Arma), ligada à Arquidiocese de Olinda e Recife, que usava o teatro como meio de reflexão. Disponível em:<

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo514477/grupo-de-teatro-vivencial> Acessado em: 01 de Janeiro de 2020.

[...] a palavra vivencial é assumida ao pé da letra e consumida nas letras do corpo, desnorteando as ó-posições incômodas, travestindo a política de pornografia e vice-versa27 (BRITO, Jomard Muniz, 1982. P.63-65. Grifos nossos)

Os seus corpos desenhavam a ameaça ideológica que se quis condenar e silenciar pelo regime autoritário mesmo antes da epidemia. Assim, a aids caiu como luva para justificar o interesse moral que condenava aqueles corpos, antes mesmo da descoberta do vírus.

Se o trabalho de grupos como o Dzi e o Vivencial tivesse continuado, seguiríamos o ritmo das transformações sociais, influenciando a forma como falamos da aids? Talvez sim, não fosse a morte literal que veio como símbolo de interrupção.

Pela primeira vez na nossa história falar dos corpos e desejos de bichas não era afundar na obviedade da discussão em torno do sofrimento e das sentenças de morte, mas isso nos foi tirado quando nos mandaram novamente para dentro do armário e nos forçaram a esconder a sorologia positiva. Que espaços nos foram tirados e o quanto perdemos?