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3.3 O VÍRUS IDEOLÓGICO E CARA DA AIDS PÓS COQUETEL

O ano era 1989, a aids revelava sua cara brasileira que só mudaria 28 anos depois. Dotada de sensacionalismo, nessa capa de revista não há ética e muito menos honestidade, uma vez que a cara da aids foi estampada por um corpo de um artista ícone dos anos 1980, mas quem projetou e construiu a notícia foi um homem hétero branco e normativo,

conhecido inclusive por não ter assinado a matéria na época, uma prática comum daquela revista, que mais tarde seria alvo de querela judicial, mas que não tiraria a marca da memória do artista.

O rosto que definhou foi o mesmo que difundiu o Rock Nacional, com seus célebres trabalhos reconhecidos até hoje, mas que em abril de 89 teve sua morte “profetizada”, justificada e pautada na sua própria “culpa” na “capa” com a inesquecível frase " Cazuza uma vítima da Aids agoniza em praça pública ", com a foto do cantor, que na época, estava pesando cerca de 40 quilos. Não é preciso ser nenhum expert em intersemiótica para ler, ver, e compreender qual o vírus que se desenhou ideologicamente e que chegou a ser profetizado como morte em vida nas palavras “rumo ao fim inexorável”. Essa capa, ainda hoje, ocupa nossos imaginários e foi se cristalizando em diversas memórias. É a imagem clássica do período pré coquetel, não só por ser anterior ao período de distribuição do tratamento, mas por conseguir carregar praticamente todas as metáforas em uma só imagem. Destaco que esse efeito midiático chegou com mais velocidade para uma parcela imensa da população, devido à facilidade de acesso a esse tipo de material na época.

1989, também é o ano de estreia nos palcos brasileiros de dramaturgias nacionais sobre o tema da aids numa abordagem crítica referente às questões sociais e histórico- culturais. Um exemplo dessas dramaturgias é a peça escrita pelo dramaturgo Plínio Marcos em 1988, o texto “A Mancha Roxa” que estreou no dia 13 de março de 1989, no Teatro do Bexiga, em São Paulo. No entanto a primeira obra escrita abordando essa temática foi “Adeus Irmão, Durma Sossegado”22, escrita em 1987 por Vagner Almeida, sendo produzida só em 1989. A obra de Vagner sustentava todas as metáforas pré-coquetel e o recurso de linguagem mais sofisticado, a meu entender, é o título que resguarda em suas iniciais a palavra aids. Por outro lado, Plínio Marcos lança mão do uso metafórico da doença, sem uma vez se quer mencionar a palavra aids na peça inteira propondo através da contaminação na

22 No site da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA – é possível ver a peça na íntegra em vídeo e compreender o sensacionalismo e sustentação de estereótipos clichês da aids sem profundidade estética e poética, fazendo uso de recursos literais e de narrativas de culpa, condenação, castigo, destino fina. Disponível em : < http://hshjovem.abiaids.org.br/peca-adeus-irmao-durma-sossegado-1989/7301> Acessado em : 10 de Janeiro de 2020.

linguagem, textual, mas também imagético-cenográfica, quando por exemplo, sugere em uma da rubricas do texto iluminar a plateia com lanternas roxas, de forma que essa ação simbolize uma contaminação que se estende do palco para o público.

A peça de Plínio Marcos é anterior à “Cara da aids” lançada pela revista Veja, logo, estava ainda mais distante da era pós coquetel. No entanto já apontava narrativas contra discursivas para o período, dentre as quais, destacamos a questão que foi a de deslocar, ainda na década de 80, a aids do corpo dos homossexuais, visto que todas as personagens dessa trama são mulheres. Desloca também a geografia da aids, pois as cenas se dão em um presídio feminino, onde a articulação do estado nos corpos em situação de liberdade privada, desenham bem a ameaça que a aids representa como tecnologia social racista.

Saltando no tempo para 2017, portanto, era pós coquetel, abordo um ponto que se relaciona com os imaginários e está na ordem das associações de “saúde e normalidade” com um recorte de gênero/racial “masculino e branco”. Trata-se da imagem do ator e diretor de teatro, Gabriel Estrela, jovem vivendo com hiv que posa para a capa da revista Galileu, na qual assume uma postura que, igualmente não requer de aprofundamentos semióticos, para se verificar qual é o perfil do sorpositivo lido como saudável.

O antagonismo gritante das imagens, a anterior de um corpo lipodistrófico e desfigurado, de um artista do cenário do Rock Nacional, ícone de rebeldia frente ao conservadorismo brasileiro da época, em contraposição com a imagem de outro jovem branco, de barba, usando terno, vestimenta clássica do “homem de negócios”, bem-sucedido e elegante que diz em letras garrafais: EU VIVO COM HIV.

O coquetel possibilitou que ele estampasse essa cara e o assunto agora é só o vírus e somente ele, e de tudo “o preconceito é a pior parte”. A utilização do recurso da ironia se faz necessário, porque a sofisticação discursiva dessas imagens é de extrema violência e requinte. Primeiro, sem autorização, desfiguram e matam discursivamente ainda em vida um corpo, o qual embora se conectar com a classe dos privilegiados, se comportava contrário ao padrão vigente dessa classe. Enquanto que a cara da aids pós coquetel, além de retirar a palavra aids de cena, configura um extrato bem requintado de quem é que tem autoridade para falar abertamente sobre a temática no Brasil e ainda assim sofrer preconceito.

O que lhe confere o “mérito” pela coragem de enfrentar abertamente esse desafio, saindo do armário pós coquetel e caindo na capa de uma revista que vai construir a cara da passabilidade da aids dos próximos anos, uma cara higienizada do ponto de vista histórico, paradoxalmente em contraponto aos corpos marginalizados que se levantaram contra os

mecanismos de opressão, em um engajamento movido pelas relações estruturais de poder que sempre os colocaram e ainda continuam colocando como oprimidos.

Foram os corpos marginalizados que por sua vez lutaram muito por uma melhoria nos protocolos de tratamento do hiv, bem como por um tratamento “universal”. Esse grupo minoritário não estampa as capas das campanhas das “Grandes Revistas”, mas segue em estado de GRITO lutando pelos direitos de todos os corpos que vivem com o vírus em seu sangue. Estado de grito contra segredos impostos e importados, que são discutidos na minha trajetória de pesquisa.

Grito (pré linguístico) que vem destruir o “eco” que naturalizou o racismo, o machismo e a LGBTfobia, transformando sexualidades em doenças e que me motivou a pesquisar sobre o assunto e, se consegui trazer você até aqui, isso quer dizer que consegui ser ouvido. Então poderemos conversar mais, construir uma relação de troca na ótica da experiência, vou expondo ao longo do texto as questões que ora me acontecem e buscando imaginar o que te acontece ao me ler. Esse enredo me serve, pois foi pensando na destruição da experiência da constituição da linguagem. Assim, penso ser no espaço entre a não – linguagem e a linguagem que constituímos experiência, e se reduzirmos (por uma questão didática) a linguagem aos atos de fala/escrita/leitura/imagem da palavra, é possível retornar ao estado “infante” onde a arte é conhecimento capaz de criar narrativas abertas à experiência! Em caso afirmativo e positivo desse exame, devo me colocar em risco, como artista, ruminando táticas em arte que podem nos servir de poder. Desse modo, calculo essas políticas poéticas também como elemento movedor de algumas outras questões:

• As metáforas sobrepostas a Aids/Aid$ se relacionam com a opressão das sexualidades dissidentes, quais os efeitos dessas opressões em nossa criação cênica?

• Existe um contagio criativo do tema com a criação artística ou vice-versa? (Aid$ x

Artes e Artes x Aids)

• Como a arte se configura em um contexto pós coquetel? • Pode um corpo posithivo atuar?

Existe um teor judaico cristão impresso na nossa leitura de mundo que lesa laboriosamente os discursos e práticas. Tenho abalado essa noção que me cerca como sujeito desse mundo ocidental e me feito a seguinte pergunta: Como uma rede discursiva é construída para que novas narrativas superem esse peso e transformem os discursos e práticas?