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Cresci no Morro10 (Martinho da Vila)

Eu cresci no morro e me criei na cidade

Saí do submundo e penetrei no seio da alta sociedade E já hoje em dia pego o meu carro

E vou à boite, banquete, coquetel, não sou tatibitati Tenho argumento pra qualquer bacharel

Tenho argumento pra qualquer bacharel Mas quando eu chego no morro

Calço o meu charlote, dou o braço à escurinha Tomo uma bebida quente na tendinha

No jogo de ronda eu esqueço da vida Não é mole não

Mas eu sou considerado pela turma que descamba Pego o pandeiro e caio logo no samba

Já me disseram que eu sou um malandrão

Há oitenta e dois anos, no dia primeiro de fevereiro de 1937, no bairro do Cubango, Niterói, RJ, nascia Elvira. Ela é a quinta filha de uma família de sete filhos, sendo quatro meninas e três meninos. Elvira é sarará, de olhos verdes azulados. O pai era “russinho” de olhos azuis e a mãe, negra de cabelos lisos. Elvira era uma menina magra, de cabelos vermelhos, canelas finas, de voz estridente. A família morava num barraco na subida de um morro. Embora seus pais tivessem passado pela escola e soubessem ler e escrever “muito bem”, como diz, ela e a maioria de seus irmãos não estudaram enquanto crianças. Aos oito anos de idade, como a pobreza era muito grande, Elvira foi introduzida pelo seu pai no mundo do trabalho. Seu primeiro emprego foi em uma casa de família para lavar louças e limpar sardinhas, ela conta: “Eu tinha muito nojo... isso era muito ruim, muito ruim pra mim”.

Na casa, residia apenas um casal de idosos. Com o casal, trabalhava um senhor que Elvira chama de jardineiro. O jardineiro ensinou à menina afazeres que ela ainda não conhecia, como limpar sardinhas. “Eu limpava sardinha e chorava, porque eu não sabia fazer aquilo”, relata. Para lavar louças, a pequena subia em um caixote de madeira. Nessa residência, Elvira permaneceu até os seus doze anos de vida. E menciona: “Eu só lembro que ficava o tempo todo lá”. Essa experiência foi muito traumática para Elvira. Ela falava continuamente, sem permitir que eu a interferisse.

Com a voz um pouco trêmula, questionava certas passagens de sua vida: “Por que apenas eu tive que sair de casa para trabalhar, enquanto meus irmãos ficavam em casa com meus pais? Por que era assim comigo? Por que, meu Deus?”. Contudo, não obteve respostas.

Essas perguntas foram repetidas várias vezes enquanto eu ouvia a sua história. Percebi que o momento era para Elvira falar, por isso, não a interrompi. Continuou: “Eu me achava rejeitada, não só pelos meus pais. Meus irmãos também faziam isso comigo. Isso sempre foi assim. Isso sempre foi assim. Eu não sei o que tinha com meus pais”.

Depois da casa dos idosos, Elvira trabalhou em outra casa de família em troca de uma bolsa de legumes. Nessa casa, seus padrinhos tiveram que se responsabilizar por ela. Elvira recorda que a sua mãe, em decorrência de um aborto, passou muito mal e que o médico disse que ela ficaria com uma “sequela”. Narra:

Minha mãe fez um aborto e passou muito mal. Eu acho que foi porque meu pai tava parado e já tinha muito filho pra sustentar. Coitadinha, quase morreu. Ela ficou com juízo fraco e passou a beber álcool (silêncio). Passou a beber álcool e a gente tinha que sair pra comprar e isso era muito triste, muito triste. Misturava com açúcar pra beber. E foi assim até o fim.

Logo depois, o pai da Elvira faleceu, deixando os filhos com a esposa doente. A situação agravou-se sobremaneira. “Nessas alturas, meu pai já tinha morrido. Então, eu fui trabalhar naquela casa pra ter comida lá em casa”, diz.

Elvira conta que continuou como braço forte na manutenção da família. Nesse momento de sua vida, a satisfação do trabalho, sem ver “a cor do dinheiro”, continuava muito difícil:

Era muito duro trabalhar e nunca ver a corzinha do dinheiro. O dinheiro, eles diziam que era pra descontar na comida. Quer dizer que no fim do mês eu nunca via nada, mas, se era pra alimentar a minha mãe e meus irmãos, eu não me incomodava. Lá não tinha criança e eu ficava lá direto.

Desse modo, a menina viveu de casa em casa, trocando o suor do seu trabalho por comida. Mesmo criança, ajudou na criação de muitas outras e trabalhava como gente grande. Algumas vezes, aproveitava para brincar um pouquinho, mas era sempre lembrada de que estava ali para trabalhar. Por esse motivo, Elvira conclui que teve uma infância muito difícil:

Só comecei a estudá direitinho mesmo, quando eu passei um período na casa da minha tia. Ela trabalhava numa casa que tinha uma criança que estudava numa escola de gente rica. Anexo a essa escola, tinha uma escola de gente pobre, que os pais dessa menina ajudava. Minha tia me matriculou nessa escola de pobre. É que dava uniforme e calçado das crianças ricas. Era lá que eu estudava. Mas não aprendi a ler e escrever e nem mexer com número. Bem mais tarde, eu estudei numa escola, ali no Cubango, era lá em cima (levanta o

braço direito apontando para o local) na esquina do morro. Eu não conseguia aprendê nada. Eu não passava de ano. Quando chegava na hora da matemática, aquilo não entrava, não entrava... não entrava na minha cabeça. Da primeira série, eu conseguia saí, mas, da segunda nunca saía. Acho que eu tinha que fazê algum tratamento. Aquilo não era normal. E sempre foi assim. Acho que eu tinha algum problema de cabeça ou alguma doença. Era um branco total, entendeu? Não era normal aquilo... não era normal. Eu me sentia muito mal com isso. Todo mundo conseguia, mas eu não. Eu passei tudo isso sem a minha mãe, mas ela tava lá. Quando eu fiquei mocinha, a minha mãe não tava comigo. Minha madrinha me ensinô a fazer higiene. Ela dizia “toma um banho meio frio”... E aquilo tudo, que você sabe. Minha mãe tava doente, mas todo mundo tava junto, menos eu. Por isso que eu digo que fui rejeitada. O melhó período da minha vida foi quando morei com a minha tia, lá em Laranjeiras, mas sempre me preocupando com a família. Minha mãe já tinha morrido e eu ganhava ropa, calçado e juntava uma parte pras minhas irmãs. Vinha pra Niterói, pegava o bonde lá, depois pegava as barcas e vinha sozinha pra casa dos meus irmãos. Eles moravam sozinho. Depois conheci uma família que me ajudou muito. Fui morar na casa deles e acabei casando com um rapaz da casa. Eu tinha uns dezesseis anos e ele era mais velho que eu, uns oito anos. Muito ciumento. Mas ali eu tive pai e mãe. Minha sogra e o meu sogro cuidaram de mim, foram meus pais, e eu também cuidei dos dois até a morte deles. Eles eram menos pobres que eu. Moravam numa casa muito grande e com muitos filhos. Eu me sentia mais filha que todos, porque, eles nunca deixaram ninguém me maltratar. Sempre agradeço a Deus por aqueles velhos. Depois que tive meus filhos, estudei numa escola e ali eu aprendi a matemática. Foi até um moço que sentô do meu lado e me ensinô a tal da matemática. Hoje não tenho mais problema com ela. Não preciso pegá o lápis pra fazê contas, igual nego aí. Faço tudo de cabeça. Estou com oitenta e um anos e não tenho mais problema com a matemática. Depois estudei na casa de uma vizinha e só fui melhorando na leitura, mas escrevê, eu não sei escrevê direito. Já fui muito discriminada por causa do meu jeito de falá. A pessoa olhava pra minha cara e ria. Agora eu leio muito jornal, falo bem melhor, tem gente que nem acredita que eu não estudei direito. Falo bem, mas escrevê... Mas faço cópia, muita cópia de tudo. Sofri muita discriminação na família do meu marido. Posso falá? Na família do meu marido tinha muita professora e eu era a pobretona semianalfabeta. Eu falava muito errado e isso era muito cobrado lá. Eu tinha vergonha de abrí a boca. Eles me chamavam de “neguinha do morro”. Eu era do morro sim, e daí? Essas coisa me deixava muito triste. Depois da minha sogra e do meu sogro, meus filhos me alegravam muito. Eu dançava e cantava com eles em casa e nas festas. Isso, herdei de minha mãe. E eu lembro que meu pai ficava revoltado, porque tinha um programa na rádio que só cantava chorinho. Minha mãe saía na frente com a vassoura dançando e as crianças saíam atrás. Nesse tempo, ela tinha saúde. Ela gostava de dançar e cantar o

Brasileirinho. Essa sempre cantava na rádio. Sabe como é? Eu sempre gostei

muito de ouvir músicas. Tem uma que fala da vida no morro. É assim: “Vai barracão, barracão de zinco...” (cantarolou). Acho que lembra muito a nossa vida. Minha mãe trabalhava na fábrica de vidro e meu pai, eu não lembro. A gente ficava em casa, mas eu saí logo. Foi como eu falei, tinha oito anos e não conhecia escola. Cresci analfabeta. A pessoa analfabeta é uma pessoa leiga de tudo. No meu modo de vê, é uma falta muito grande. Se você não soubé ler e escrever é muito ruim. Quando você vai num lugar que tem que escrevê, é muito ruim, mesmo. Você escuta te chamá de “burra”. Quando fui tirar o meu título de eleitora não sabia escrevê direito. Quando me deram uma folha

pra preenchê... a única coisa que eu sabia escrevê era o meu nome. Fiquei desorientada, porque não sabia preenchê a ficha. Sempre que acontecia isso, pedia alguma pessoa para me ajudá. Eu era franca e falava: “não sei escrevê direito, você pode me ajudá?”. A pessoa me ajudava. Eu ficava muito incomodada com isso. Me sentia muito mal, muito humilhada. Acho que ser analfabeto não é problema e sim falta de oportunidade, falta de um colégio, de uma orientação. É muito importante sabê lê e escrevê. Fiquei com pena de não tê estudado mais. Eu queria ser professora. Meu sonho era ser professora. Gostava de contá história para os meus filhos antes de dormir. Juntava um monte de criança pra ouví minhas histórias, mesmo eu não sabendo lê direito. Sempre fiz isso. Meus filhos gostavam muito da mesma história que a minha mãe contava pra gente. Essa história, ela aprendeu com a madrinha e eu, de tanto ouvir, acabei aprendendo. Meus filhos falavam: “conta a história da menina pobre e da menina rica, conta!”. Era assim:

A menina pobre e a menina rica

Era uma vez uma menina pobre e uma menina rica. A rica ficava na casa da madrinha e a mãe da menina pobre trabalhava nessa casa. A menina rica sempre ganhava coisas boas da madrinha e a menina pobre não ganhava nada. A menina rica nunca emprestava nada pra pobrezinha. O sonho da menina pobre era ter uma boneca e a menina rica jogou uma boneca no lixo. Um dia, a menina pobre estava andando para a sua casa, quando avistou uma bonequinha jogada no lixo. A menina pegou boneca do lixo e levou para a sua casa. Deu banho na boneca e colocou pra dormir. De noite a bonequinha disse: quero ir ao banheiro. A menina pobre se assustou, mas, fez o que a boneca pediu. No dia seguinte, o banheiro estava cheio de moedas de ouro. E todo dia a boneca falava: quero ir no banheiro e aparecia um montão de moedas de ouro no banheiro. A menina pobre ficou muito bem de vida e todo mundo queria saber como aconteceu aquilo. Ela contou que era a bonequinha que fazia as moedas de ouro. A mãe da menina rica ficou sabendo da história e, com muita inveja, mandou a filha oferecer dinheiro pela bonequinha. Como a menina que era pobre não aceitou vender a boneca, a menina rica roubou o brinquedo. Bem tarde da noite, a bonequinha falou: quero ir ao banheiro. Aí, a mãe da menina rica levou a boneca para o banheiro e ficou a noite toda esperando aparecer as moedas de ouro. Quando olhou, você já sabe o que tinha, né? A mãe da menina rica ficou com tanta raiva que jogou a boneca no mato. O tempo passou, passou, e a menina que era pobre cresceu e ficou uma moça muito bonita. Um belo dia, um príncipe estava passando com o seu cavalo e parou para descansar e sentou na grama. O moço não viu que havia sentado em cima de uma bonequinha. Quando levantou sentiu que tinha uma boneca agarrada nele. Ficou desesperado. A rainha ofereceu dinheiro para quem conseguisse descolar a boneca do filho, mas ninguém conseguia. Até que a mocinha, que um dia foi uma menina pobre, resolveu ajudar o príncipe e conseguiu livrar o rapaz. O príncipe ficou muito feliz e se apaixonou pela mocinha. Os dois se casaram e a mocinha nunca mais ficou pobre.

Acho que eu queria que a menina pobre fosse eu. É, acho que era isso. A menina pobre era eu. E, sabe de uma coisa? Eu, hoje, me considero uma pessoa rica. Eu vivi muito tempo cuidando da casa dos otros, dos filhos dos otros e era horrível chegá de noite e tê que cuidá de tudo na minha casa. Os meus filhos saíam da escola e ficavam em casa esperando eu chegá. A casa era uma bagunça só. Quando meu marido ficô desempregado, eu guardava o meu almoço pra comê com eles, e as crianças, em casa. Trabalhava de segunda à sexta. Mas, agora na velhice, cuido das minhas coisas. Tenho a minha casinha,

o meu dinheirinho. Faço o que quero. Eu gosto muito de acordá cedo e lê o meu jornal, fazer palavra cruzada... Antes, não podia... Eu era analfabeta e isso era muito horroroso. Eu leio muito, muito mesmo, mas, escrevê... acho muito difícil. Eu sei melhor lê do que escrevê. Acho que, daqui até o final da minha vida, vou fazer muita cópia. Eu gosto muito de lê, mas sinto muita dificuldade na hora de escrevê. Agora, eu sei falá melhó, mas, se tiver que escrever ... Ih, faço muita cópia por causa disso. Mas analfabeta não sou.

– Entrevista da Elvira 1-Nome: R: Elvira 2-Idade: R: 81 anos. 3-Naturalidade:

R: Estado do Rio de Janeiro 4-Profissão:

R: Do lar

5-Seus pais sabiam ler e escrever? R: Sim

6-Até que ano estudaram? R: Não sei.

7-Por quê?

R: Só sei isso deles. Era muito pequena.

8-Você sabe dizer o que é uma pessoa analfabeta? R: Pessoa leiga de tudo.

9-Você acha que ser analfabeto é um problema? Por quê?

R: Sim. Falta de oportunidade, falta de um colégio, de uma orientação. 10-Você considera que saber ler e escrever seja importante?

R: Muito importante.

11-Caso você tenha vindo do interior do Estado ou de outro Estado: Por que saiu de sua cidade? R: Saí da minha cidade pra morar com a minha tia.

12-Em que ano saiu?

R: Acho que foi por volta de 1950/1955, por ai. 13-Qual foi o seu primeiro emprego?

R: Casa de Família.

14-Havia necessidade de saber ler? R: Não.

15- Você frequentou escola? R: Só depois de adulta.

16-Quanto tempo você estudou? R: Muito poco.

17-Alguma vez, você se sentiu incomodado(a) por ter frequentado pouco a escola? R: Sim. Muito humilhada.

18- Você já se sentiu discriminada por isso? R: Sim.

19- Conhece alguém que já foi discriminado pelo mesmo motivo? R: Sim.

20- Você sabe ler? R: Sim. Leio muito. 21- Sabe escrever? R: Muito mal.

22- Você já procurou ou frequentou algum curso de Educação de Adultos (EJA)? Por quê? R: Sim. Porque não sabia nada.

23- Se não procurou e nem frequentou a EJA: Por quê? R:

24- Você gostaria de ter estudado mais um pouco? Por quê? R: Sim. Pra melhorar na escrita, ter um bom trabalho. 25- Você se considera uma pessoa analfabeta?

3.2 TEM COISA QUE PESSOA QUE ESTUDÔ NÃO SABE FAZÊ E EU SEI! – HISTÓRIA DE