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Adulto analfabeto ou pessoa de poucas letras?: cantando e contando históricas de vidas marcadas pelo pré-conceito

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ADULTO ANALFABETO OU PESSOA DE POUCAS LETRAS? CANTANDO E CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDAS MARCADAS PELO

PRECONCEITO

LENI DOS REIS ARAUJO

NITERÓI 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ADULTO ANALFABETO OU PESSOA DE POUCAS LETRAS? CANTANDO E CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDAS MARCADAS PELO

PRECONCEITO

LENI DOS REIS ARAUJO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: Linguagem, Cultura e Processos Formativos. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Zoia Ribeiro Prestes

Bolsista Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

NITERÓI 2019

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LENI DOS REIS ARAUJO

ADULTO ANALFABETO OU PESSOA DE POUCAS LETRAS? CANTANDO E CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDAS MARCADAS PELO

PRECONCEITO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: Linguagem, Cultura e Processos Formativos.

Aprovada em 26 de Fevereiro de 2019.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Zoia Ribeiro Prestes – UFF

_____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Mylene Cristina Santiago - UFF

_____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Elizabeth Tunes – UnB

Niterói 2019

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Para Mauro, Vanina e Mauro Juarez, Meus amados parceiros!

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Sou grata,

A Jesus, Autor e Consumador da minha fé;

À minha mãe, que tentou me proteger das histórias feias da vida; Ao meu pai, que sempre me encantou com seus causos;

Aos meus avós, tios e tias, todos muito presentes em minhas lembranças; À Dona Lica, minha primeira professora;

Ao meu marido querido, que entendeu que era preciso adequar os seus horários aos meus; Aos meus filhos, Vanina e Mauro Juarez, pela parceria, cuidado e atenção: vocês representam o lado bonito da minha história;

A Vinícius, meu filho do coração, sempre pronto para ouvir as minhas histórias; Às minhas irmãs, cunhados, sobrinhos e sobrinhas, pelo carinho e amizade; Às irmãs Luciene e Lenir, minhas alunas das brincadeiras de faz de conta;

À minha sogrinha Elvira, mulher de poucas letras, sempre presente em minha vida; Ao meu irmão, pelas vezes que me chamou de mãe;

Aos meus sobrinhos, Wagner e Lucas, pela ingenuidade de achar que eu sei alguma coisa; À minha orientadora, Zoia Prestes, que permitiu que eu fizesse um texto com a minha cara. Respeitou, incentivou e acreditou que eu conseguiria;

Às crianças, adolescentes, jovens e adultos que trocam conhecimentos comigo; Às pessoas de poucas letras que me ajudaram a escrever esse texto;

Aos irmãos e amigos da Congregação Batista em Jardim Maikel, que viram a minha aflição e entenderam a importância desse trabalho;

Aos irmãos e irmãs que, com suas Histórias de Vida, choraram, cantaram e contaram essa história comigo;

Aos professores e professoras que fizeram diferença em minha vida;

Às professoras da Banca de Defesa, Mylene Santiago, Fernanda Insfran e Elizabeth Tunes, pelas ricas sugestões de escrita. Vocês foram fundamentais para a execução desse trabalho! À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES;

Aos meus colegas do NUTHIC, por compartilharem seus conhecimentos, aflições e amizade; Às minhas amiguinhas de curso, Patrícia e Júlia: sempre companheiras;

Aos colegas e professoras da Disciplina Temas de Pesquisa: sem vocês ficaria difícil caminhar; Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF: o trabalho de vocês fez muita diferença. Muito Obrigada!

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“Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor” (I Coríntios 13.13).

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RESUMO

A presente pesquisa teve como o objetivo investigar histórias de vida de pessoas de poucas letras marcadas pelo preconceito na sociedade brasileira. Baseou sua fundamentação teórica, principalmente, em Paulo Freire, Ana Maria de Oliveira Galvão, Maria Clara Di Pierro e Alceu Ravanello Ferraro para discutir a questão do analfabeto como sujeito estigmatizado na sociedade grafocêntrica. Buscou, por meio de levantamento bibliográfico de entrevistas e narrativas de Histórias de Vida, analisar esse preconceito. Concluiu que as pessoas que não sabem ler e não sabem escrever ou que têm pouco domínio da leitura e da escrita sofrem preconceitos e são estigmatizadas como cegas, incapazes e sem conhecimentos. No entanto, podem lutar, viver e vencer, apesar das marcas impostas pela sociedade excludente. Esse preconceito tem base histórica e não se resolve por meio da alfabetização, pois o maior problema no Brasil encontra-se nas desigualdades sociais e educacionais que excluem a população negra e pobre. A educação oferecida para essa minoria tem produzido analfabetos funcionais. Assim, a educação no Brasil precisa ser pensada do ponto de vista também dessas pessoas para poder atender à necessidade do nosso povo excluído.

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ABSTRACT

The present research had the objective of investigating the life stories of people of few letters marked by prejudice in Brazilian society. Its theoretical foundation was based, mainly, on Paulo Freire, Ana Maria de Oliveira Galvão; Maria Clara Di Pierro and Alceu Ravanello Ferraro, to discuss the issue of the illiterate as a stigmatized subject in the grafocentric society. It searched through bibliographical research, interviews and narratives of Life Stories to analyze this prejudice. It concluded that people who cannot read and do not know how to write or who have little mastery of reading and writing suffer prejudice and are stigmatized as blind, incapable and without knowledge. However, they can fight, live and win, despite the marks imposed by the exclusionary society. This prejudice has a historical basis and is not solved through literacy, since the greatest problem in Brazil lies in the social and educational inequalities that exclude the black and poor population. The education offered to this minority has produced functional illiterates. Education in Brazil needs to be also thought from the point of view of these people, in order to meet the needs of our excluded people.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Fotografia dos meus pais, Ano de 1953 ...18

Figura 2 – Minha mãe ... 19

Figura 3 – Minha mãe na alfabetização de adultos ... 21

Figura 1 - Caderno de aula de Venina, minha mãe ... 22

Figura 2 - Receita de pudim escrita pela minha mãe ... 23

Figura 3 - Bodas de ouro dos nossos pais. Fotografia com as filhas e uma netinha ...25

Figura 4 – Festa na Roça ...26

Figura 8 – Mãos que escrevem ... 32

Figura 9 – Elvira ... 33

Figura 10 – Mariana e Alberto ... 40

Figura 11 – Severo ... 47

Figura 12 – Carmela ... 53

Figura 13 – Anacleto ... 61

Figura 14 - Ilustração do preconceito ... 78

Figura 15 - Ilustração do livro A falsa medida do homem ... 88

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...12

2 MINHAS MEMÓRIAS ... 17

2.1 MEUS AVÓS E TIOS MATERNOS ...24

2.2 MEU PAI E SUA MÃE – DESENCONTROS ...24

2.3 NOSSA CRIAÇÃO, CAUSOS E POESIAS QUE MARCARAM NOSSA INFÂNCIA 25 2.4 ESCOLA E UNIVERSIDADE: MEU PRIMEIRO ENCONTRO ... 28

2.5 CONTRIBUIÇÃO DA FAMÍLIA E DO NUTHIC ... 31

3 HISTÓRIAS DE PESSOAS DE POUCAS LETRAS QUE VENCERAM AS MARCAS DO PRECONCEITO...32

3.1 AGORA SOU UMA PESSOA RICA! – HISTÓRIA DE VIDA DA ELVIRA ... 33

3.2 TEM COISA QUE PESSOA QUE ESTUDÔ NÃO SABE FAZÊ E EU SEI! – HISTÓRIA DE VIDA DA MARIANA ... 40

3.3 SEI UM BOCADO DE COISINHA! - HISTÓRIA DE VIDA DO SEVERO ...47

3.4 EU SÓ QUERIA LÊ A MINHA BÍBLIA! – HISTÓRIA DE VIDA DA CARMELA ...53

3.5 CONHEÇO GENTE QUE TEM ESTUDO, MAS NÃO TEM EDUCAÇÃO – HISTÓRIA DE VIDA DO ANACLETO ...61

4 FOI ASSIM QUE EU CAMINHEI...67

5 PRECONCEITO – ALGUMAS HISTÓRIAS DESONROSAS QUE PRECISO CONTAR ... 78

5.1 TEORIAS RACISTAS DOS SÉCULOS XVIII E XIX - BREVE HISTÓRIA DAS RAÍZES DO PRECONCEITO... 85

5.1.1 Carência Cultural – A teoria do Fracasso Escolar ... 97

5.2 ANALFABETO E ANALFABETISMO – UMA HISTÓRIA DE EXCLUSÃO E ESTIGMAS ...102

5.3 O ADULTO ANALFABETO E AS FRASES DEPRECIATIVAS... 112

6 PRECISAMOS ROMPER COM IDEIAS COLONIALISTAS – UM BASTA DAS HISTÓRIAS DESONROSAS ...117

8 A TÍTULO DE CONCLUSÃO ...121

REFERÊNCIAS ...124

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1 INTRODUÇÃO

Orora analfabeta1 Eu arranjei uma dona boa lá em Cascadura

Grande criatura, mas não sabe ler Nem tão pouco escrever Ela é bonitona, bem feita de corpo E cheia da nota Mas escreve gato com "j" E escreve saudade com "c" Pra você ver Ela disse outro dia que estava doente Sofrendo de estrombo Levei um tombo... caí durinho para trás Isso sim já e demais! Ela fala "aribú", "arioprano" e "motocicreta" Diz que adora feijoada "compreta" Ela é errada demais Vi uma letra "O" bordada na blusa Falei é agora Perguntei o seu nome Ela disse é "Orora" E sou filha do "Arineu" O azar é todo meu...

O Samba, cuja letra transcrevo acima, é muito conhecido nas rodas de gafieira pela sua melodia e letra bem-humorada. Ele apresenta a descrição de uma mulher com qualidades, mas, segundo o verso, com um sério “problema”, pois é analfabeta. Não sabemos se a tal Orora existiu, mas podemos, talvez, imaginar o constrangimento das Ororas, de ontem e de hoje, ao ouvirem sua história sendo contada e cantada entre gargalhadas, danças e piadas. Diante dos versos de um samba, podemos perceber que as pessoas que “falam errado” ou com pouca escolaridade são tidas não apenas como analfabetas, mas também se transformam em alvo fácil de discriminação.

As qualidades da Orora são claramente visíveis pelo seu amado, contudo, o analfabetismo a faz incapaz de receber mais elogios. Ela é analfabeta e isso já diz tudo: cega, incapaz de discernir o certo do errado, pobre de ideias, sem nenhum conhecimento, subalterna, defeituosa... vazia. O poeta parece falar preconceituosamente da Orora: “[...] mas não sabe ler, nem tão pouco escrever”, como se fosse um defeito. Assim, temos visto em nossa sociedade o analfabetismo como um “aleijão”. Segundo Galvão e Di Pierro (2007, p. 99), “o analfabetismo

1 Orora analfabeta-autor: Waldeck Arthur de Azevedo (Gordurinha) e Nascimento Gomes. Disponível

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não é uma doença, não é uma chaga, não pode ser responsabilizado pelo atraso ou pelo desenvolvimento de uma sociedade”. Será que o saber ler e o saber escrever garantiria ao analfabeto o lugar de não marginalizado em nossa sociedade?

Temos pessoas, portanto, que não foram letradas em um mundo em que a leitura e a escrita são de fundamental importância. A construção da imagem dessas pessoas costuma ser perversa e isso, possivelmente, conduz o analfabeto às recorrentes situações desconfortáveis que podem desencadear em situações constrangedoras que o estigmatizam. Infelizmente, há no nosso imaginário a equivocada ideia de que todos os adultos dominam o saber da escola, principalmente, o ler e o escrever. Também, normalmente, esses saberes são exigidos em lugares rotineiros, como bancos, mercados, lojas, entre outros. A sociedade letrada, então, reconhece a instituição escolar como lugar, quase único, de formação humana para a vida em sociedade.

De acordo com Cipiniuk (2014, p. 32),

A escola é reconhecida como elemento fundamental para veiculação do método social legítimo de educação, estabelecido por meio de um contínuo esforço de imposição de princípios sociais, portanto, que não são inatos ao ser humano. Assim quando a escola exerce adequadamente sua função educacional, isto é, papel complementar na preparação e formação do ser social, ela perpetua e consagra características fundamentais à própria existência da sociedade.

Sabemos que muitas pessoas tidas como analfabetas, em nossa sociedade, nasceram e/ou foram criados na zona rural. Sabemos também que, nos grandes centros urbanos, o analfabetismo é alarmante. De acordo com Melo e Lira, “[...] há uma enorme discrepância no que tange à conquista da educação como direito de todos. Enquanto na população rural, o índice de analfabetismo entre os adultos (acima de 15 anos) é de 25,8%, na população urbana, é de 8,7%” (2010, p. 2). Em muitos casos, o analfabetismo se perpetua por gerações. Segundo Galvão e Di Pierro, nas “[...] famílias em que os adultos também não estudaram, os saberes adquiridos no trabalho costumavam ser mais valorizados que os conhecimentos veiculados pela escola” (2007, p. 16).

Os trabalhos artesanais, a pesca, entre outras ocupações; embora complexas, nem sempre exigem, obrigatoriamente, leitura e escrita. Para muitas pessoas do mundo rural, o contato com a escrita é muito restrito e os relacionamentos interpessoais se limitam aos do trabalho, onde a comunicação oral é frequente. Contudo, é possível que algumas apresentem maior conhecimento de operações matemáticas simples sem ao menos soletrar uma palavra. Todavia,

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a leitura de mundo é vasta. Essas pessoas, ao chegarem à cidade, se deparam com outra realidade e se dão conta que lhes falta “a leitura da palavra”, como expressa Paulo Freire (1989). Para Paulo Freire, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” e ponto. “Não há cegueira, não há mente vazia, para que o alfabetizador fosse ‘enchendo’ com suas palavras as cabeças supostamente ‘vazias’ dos alfabetizandos” (FREIRE, 1989, p. 32).

Em A importância do ato de ler, Paulo Freire observa:

Ao ir escrevendo este texto, ia "tomando distância” dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo” [...]. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e revivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra (FREIRE, 1989, p.9).

O argumento de Freire é importante para o nosso debate sobre o adulto analfabeto e a pessoa de poucas letras e em relação aos estigmas que recebem em nossa sociedade. A alfabetização pensada por Paulo Freire é conscientizadora, por isso não interessa apenas saber ler e escrever as palavras, mas também o mundo com criticidade, de modo que traga mudança para a realidade. Como observamos nas falas “eu tenho a escola do mundo” e “quero aprender a ler e a escrever para mudar o mundo” (FREIRE, 1967, p.119), o autor entende o analfabeto adulto como um “oprimido” e produtor de cultura ativa, atuante. Seus escritos nos ajudam refletir a realidade das pessoas que vivem subjugadas pelo opressor e que, pela luta consciente, podem ser libertadas das garras da opressão. Livres “querem ser, mas temem ser”, diz Freire (1987, p.35). Uma vez livre, nasceria um homem novo. Segundo Paulo Freire, “a libertação por isto é um parto. É um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo” (FREIRE, 1987, p. 35). Novo homem é o homem alfabetizado, pois por meio da leitura e escrita pode mudar sua vida, ter consciência de sua situação de oprimido e lutar contra ela. “Só assim nos parece válido o trabalho da alfabetização, em que a palavra seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como uma força de transformação no mundo” (FREIRE, 2009, p. 150).

Por perceber o grande desafio de mudar a condição marginalizada do adulto de poucas letras na sociedade contemporânea, penso que essa pesquisa é importante para suscitar mais discussões em torno do tema e ajude a superação do preconceito em relação a essas pessoas no nosso país. Acredito, desse modo, que “as pesquisas [...] podem, também, fornecer elementos teóricos para a concretização de práticas pedagógicas que possibilitem a inserção mais efetiva

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daqueles que não sabem ler e escrever em uma sociedade marcada pela presença da escrita” (GALVÃO; DI PIERRO, 2007, p. 71). Por isso, investiguei histórias de vidas de pessoas de poucas letras marcadas pelo preconceito na sociedade brasileira, especificamente, caracterizei e analisei a construção histórica do preconceito. O trabalho teve um cunho teórico-bibliográfico com base em material e documentos produzidos sobre o tema proposto e, posteriormente, realizei uma pesquisa empírica que consistiu em entrevistas com pessoas consideradas pouco escolarizadas, que passaram ou não por programas de alfabetização de jovens e adultos. As entrevistas foram analisadas à luz das discussões teóricas realizadas.

A estrutura dessa dissertação segue em oito partes, sendo essa a primeira. Na segunda parte, narro minhas memórias de escola atravessadas pelas memórias da minha família e meus familiares e sua relação com o meu objeto de pesquisa. A trajetória de vida de minha família e dos meus familiares está repleta de episódios que remontam o preconceito construído historicamente em relação não só às pessoas de poucas letras, mas também, ao pobre, ao negro, à mulher e à criança.

Na terceira parte, apresento as Histórias de Vida dos meus participantes: Elvira, Mariana, Severo, Carmela e Anacleto. Narro cada história, sem interrupções de análise, em alguns momentos, reportando-me às minhas memórias. Os nomes dos participantes são fictícios, exceto o de Elvira.

Na quarta parte, apresento a narrativa do percurso que fiz para alcançar os objetivos propostos no projeto; justifico a minha escrita, de cunho científico e ao mesmo tempo pessoal; falo dos primeiros autores, das dificuldades no campo e das sugestões da banca de qualificação, que, juntamente com as orientações da professora Zoia Prestes, procurei seguir.

Na quinta parte, procurei, brevemente, caracterizar o comportamento intolerante e discriminatório que exclui uma minoria em sociedade, como introdução das histórias desonrosas da humanidade que preciso contar brevemente. Dividi essa parte nas seguintes seções: 5.1, para apresentar a Ideologia do Determinismo Biológico dos escritos de Sthefen Jay Gould (1991), A falsa medida do homem, identificando as raízes do preconceito que hierarquizou, classificou e quantificou pessoas a partir dos séculos XVIII e XIX no Ocidente; 5.1.1, para tratar do surgimento das teorias construídas a partir das teorias racistas desenvolvidas na década de 1970 nos EUA: Teorias da Carência Cultural e do Fracasso Escolar; 5.2, para trazer a construção das raízes histórias do preconceito em relação às pessoas que não sabem ler e escrever no Brasil, destacar o analfabeto e o analfabetismo como ditos problemas sociais e demonstrar a exclusão e os estigmas que se tornaram comuns na vida das pessoas de

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poucas letras; e 5.2.1, como continuidade, para apresentar o conceito de estigma desenvolvido por Erving Goffman (1968). Os estigmas são termos depreciativos usados contra algumas pessoas, no nosso caso, as pessoas que não sabem ler e escrever. A partir dessa parte, as falas dos participantes se tornam protagonistas, como embasamento desses estigmas em sociedade. A quinta parte foi oportuna para trazer assuntos que atravessaram as Histórias de Vida, como a marginalização das favelas e favelados, o aborto e os conceitos de analfabeto e analfabetos funcionais.

Na sexta parte deste estudo, procuro trazer uma visão panorâmica dos estudos pós-coloniais e das Epistemologias do Sul, projetos que trazem, entre outros teóricos importantes, o nome de Boaventura de Sousa Santos. O autor defende que é preciso romper com as ideias colonialistas e questiona se é possível pensar outras epistemologias além das ocidentais, dessa forma, sendo pertinente repensar as Ciências Sociais, pois as que temos são eurocêntricas e, por isso, devem ser problematizadas.

A sétima parte desse texto é apenas uma tentativa de conclusão, já que não é possível dar por finalizado o debate em torno do preconceito que foi construído em relação ao analfabeto em nosso país.

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2 MINHAS MEMÓRIAS

Na verdade, as narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as encontramos em todo o lugar. Parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade de contar; contar histórias é uma forma

elementar de comunicação humana,

independentemente do desempenho da linguagem estratificada, é uma capacidade universal. Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam experiências em sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social. (JOVICHELOVICH; BAUER, 2011, p. 90)

A proposta de elaboração de um memorial pareceu-me uma forma de recordar, sem ressentimentos, momentos que ajudaram na construção de minha história. À medida que vou recordando, também vou me transportando para um tempo distante e de grande relevância para minha vida. Há muita emoção no recontar das histórias contadas pelos meus pais: da pobreza em que viviam, da pouca ou nenhuma comida e da (quase) ausência da escola formal. Toda essa memória esteve guardada dentro de mim, mas só agora ganhou significado e um novo olhar. Em um dos nossos encontros do NUTHIC (Núcleo de Tradução, Estudos e Interpretação das obras dos representantes da Teoria histórico-cultural, coordenado pela professora Zoia Prestes), quando estudávamos o livro Pensamento e fala, de L. S. Vigotski, a professora Zoia fez uma pergunta retórica que me chamou atenção: “será que temos que ressaltar sempre o que falta na pessoa ou podemos começar com o que ela já tem?”. A questão girava em torno do desenvolvimento da criança e de como perdemos tempo ressaltando o seu defeito e não a sua possibilidade de desenvolvimento. Foi nesse momento que pensei no adulto de poucas letras e do como é discriminado por não dominar a escrita e a leitura. Ele é visto como alguém que não tem possibilidades de se desenvolver, como se não tivesse nenhum conhecimento que pudesse ser aproveitado. Resolvi, então, perguntar para a professora: “podemos pensar do mesmo modo em relação ao adulto?”. “Sim, Leni”, ela respondeu. Nesse momento, o meu objeto de pesquisa ficou evidente, contudo, eu ainda não havia feito a relação com a trajetória escolar de minha família. Por isso, acreditei que o tema teria surgido pelo interesse que sempre tive pela aproximação com pessoas estigmatizadas na sociedade, e o adulto tido como analfabeto é um tipo entre inúmeros.

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Depois, em uma aula ministrada pelas professoras Mylene Santiago e Angélica Piseta, na disciplina Temas de pesquisa, do nosso programa, foi mencionado que no memorial, muitas vezes, o objeto de pesquisa é identificado. Quando ouvi essa fala, não encontrei fundamento, pelo menos em relação ao meu objeto. Logo depois, ao fazer uma releitura do meu memorial, descobri a pertinência dela. Constatei, então, que minhas memórias apontam diretamente para o meu objeto. Assim, entendo a relevância de trazer as minhas lembranças de escola ou ausência dela na trajetória de minha família e familiares, pois explicam minha inquietação pelo objeto que proponho pesquisar: Adulto analfabeto ou pessoa de poucas letras? Cantando e Contando Histórias de Vidas marcadas pelo preconceito.

Figura 5 - Fotografia dos meus pais – Ano de 1953

Nasci em São Gonçalo, Município do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1960, em um quartinho alugado, sem sanitário (o sanitário era coletivo), que ganhou o apelido de “quartinho do amor”, porque foi ali onde nasceram as cinco primeiras filhas do casal. No mesmo quintal, havia outros quartos alugados por outras famílias. Há muito que esses quartinhos foram derrubados e no lugar de vários quartinhos foi construída uma casa grande. Enquanto vivemos

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ali, parecia que a vida era um mar de rosas, pois dormíamos bem juntinhos numa grande esteira de palha.

Venho de uma família pobre, de pai policial militar, autoritário, de poucas letras, amante da boa música brasileira. Minha mãe, uma mulher submissa ao marido, também de poucas letras, que vivia para o lar e para a prole que, por sinal, aumentava de ano a ano. No total, somávamos oito filhos: sete meninas e um menino que fora adotado aos dois anos de idade. Alguns perguntavam “por que adotar uma criança com tantas outras em casa?”. A resposta a essa pergunta muitas vezes nos incomodou, pois, para o meu pai, bom era ter filhos homens e não mulheres. Por esse motivo, fomos criadas como soldados, que não podiam chorar, nem reclamar, e que sempre deveriam estar prontos para a guerra. Essa parte de nossa história nos marcou profundamente, no entanto, não ganhará ênfase nesse texto.

Figura 6 - Minha mãe

Minha mãe era uma mulher negra, de pequena estatura, que passou pela escola o suficiente para escrever o seu nome e outras poucas palavras. Tinha total noção de sua realidade na sociedade letrada e, provavelmente, por isso tenha agasalhado em seu coração o desejo de ter filhas professoras. Trabalhou em uma fábrica de fósforos, em algumas fábricas de sardinha e em confecção de roupas femininas. Sentia-se inferiorizada por não ter o domínio da escrita e leitura devido às rotineiras críticas do meu pai, que nos dizia “a mãe de vocês é analfabeta”.

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Procurou, pelo menos, aprender a escrever o seu nome, para se livrar do constrangimento de ouvir essa frase do meu pai e também para não ter que sujar o polegar.

Minha mãe costumava dizer que quase não estudou porque as letras ficavam “embaralhadas” à sua frente e que sentia dores fortes de cabeça sempre que tentava estudar. Ela ignorava os reais fatores que contribuíram para a sua pouca escolarização, inclusive, a miopia severa que a acompanhou desde a sua meninice. Só descobriu o problema depois de seus filhos crescidos. O seu português era “ruim” e muitas palavras pareciam inventadas por ela. Sempre que aprendíamos uma palavra que a nossa mãe pronunciava “errada”, rapidamente corríamos para corrigi-la e isso nunca foi problema para ela, mas para o meu pai e para alguns tios era ofensa ser corrigido por crianças. Na velhice, minha mãe ocupou os bancos escolares na alfabetização de adultos em um programa social de sua igreja, próxima à nossa casa.

O retorno à escola foi para ela e para toda a família um grande acontecimento, principalmente, porque ela teve a oportunidade de ser alfabetizada pela filha caçula. Depois da alfabetização, ousou muitas vezes ler em público, mas o meu pai achava tudo isso vergonhoso e sempre que a minha mãe iniciava a leitura para um público que não fosse familiar, ele saía do ambiente, pois temia os “tropeços” de minha mãe. Porém, naquele momento da vida, minha mãe já havia superado as críticas do marido. Ela retornou à escola em 2006 e, dois anos depois, estávamos fazendo o seu sepultamento em 17 de abril de 2008, ano em que completaria, em outubro, os seus setenta e seis anos de idade.

Minha mãe superou o câncer de mama, aos setenta anos de idade e acabou encerrando a sua vida, cinco anos depois, em consequência de um atropelamento. Nesse acidente, perdeu a perna direita e permaneceu em coma durante quatro longos dias. Hoje, estamos vivendo das recordações dos nossos bons momentos em família, de sua gostosa comida, das suas lições e ensinamentos. Também das broncas severas, principalmente, quando alguém não comia toda a comida do seu prato ou quando jogávamos o pão no lixo. Essas coisas eram imperdoáveis. Ela reclamava sem parar, dizendo que o pão era sagrado e jogá-lo no lixo era não reconhecer a bondade de Deus. Lembrar de tudo isso é muito bom, não posso deixar de recordar o seu bom humor, a sua risada gostosa, suas expressões “engraçadas” e sua alegria em ter a família reunida.

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Figura 7 - Minha mãe na alfabetização de adultos, em 2005. À esquerda, minha irmã Lúcia, sua filha e professora.

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Figura 8 - Caderno de aula de Venina, minha mãe

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2.1 MEUS AVÓS E TIOS MATERNOS

Minha avó materna aprendeu a ler já bem idosa. Talvez, sua maior motivação para a leitura tenham sido os livrinhos e revistas que colecionava desde a infância. Essa coleção tão bem guardada surgiu com seu pai que ganhava livros e revistas de pessoas que viajavam no trem em que trabalhava. Minha bisavó faleceu quando a minha avó era ainda criança e, por isso, foi obrigada a acompanhar o seu pai nas viagens de trem que ele, como maquinista, tinha que fazer. Assim, passou longos anos de sua vida fora da escola, porém, ficava encantada ao ver as gravuras dos livros e das revistas que chegavam até ela. Meu avô materno morreu com mais de oitenta anos, sem saber ler e escrever. Eles foram pais de nove filhos e a maioria estudou muito pouco. Alguns dos meus tios foram submetidos ao trabalho das fábricas ainda em idade escolar. Os homens ganharam a vida como pedreiros e apenas dois meninos fizeram o curso de soldador. As mulheres foram lavadeiras, costureiras e passadeiras de roupas. Esses trabalhos eram feitos em suas residências e eram ditos “trabalho para fora”.

2.2 MEU PAI E SUA MÃE - DESENCONTROS

Meu pai era policial militar do Distrito Federal, mas, com a mudança da capital para Brasília, resolveu permanecer no recém-criado Estado da Guanabara – território que corresponde, atualmente, ao Município do Rio de Janeiro. Meu pai foi criado apenas por sua mãe (que era mãe solteira), não passou pela escola formal e conta que aprendeu a leitura e a escrita nos jornais que usava para embrulhar o carvão que vendia nas ruas. Sua mãe aprendeu a ler (não a escrever) depois que passou a fazer parte das Testemunhas de Jeová (TJ), talvez, com aproximadamente cinquenta anos. Meu pai ganhou as ruas ainda menino, para morar e trabalhar. Depois de vender de carvão, trabalhou em um manguezal e também cuidou de cavalos em uma fazenda, entre outras ocupações. Mas, na maioria das vezes, andava de um lado para o outro procurando uma atividade que lhe resultasse em alguns “trocados”, para prover o seu sustento. Nessa mesma época, aos dez anos de idade, adquiriu o vício do cigarro. Ele não morava efetivamente com a mãe e também não encontrou ninguém que o acolhesse realmente.

Minha avó só levou o meu pai para morar com ela quando casou com Álvaro, um homem que se tornou amigo do meu pai e que nós aprendemos a amar como um avô. Nessa época, meu pai já havia completado quatorze anos de idade. Aos dezessete anos, ingressou na Polícia Militar (PM) e ali se destacou na banda de música – tocava clarim – e como atleta na modalidade

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natação. Serviu ao regimento de cavalaria da PM, e o período em que cuidou de cavalos o ajudou na adaptação. Adquiriu posição econômica um pouco melhor que o restante da família de origem e também da família de minha mãe. Muito mais do que os títulos que recebeu, ganhou admiração e respeito.

Figura 10 - Bodas de ouro dos nossos pais. Fotografia com as filhas e uma netinha.

Da esquerda para a direita, em pé: Leia, mamãe, papai, Lucelena, Leila, Mª Lúcia (minha sobrinha, filha de Lúcia). Sentadas: Lenir, Luciene, Lúcia e eu.

2.3 NOSSA CRIAÇÃO, CAUSOS E POESIAS QUE MARCARAM NOSSA INFÂNCIA

Fomos criados – sete meninas e um menino – com muitas regras e disciplinas de quartel. Por isso, a vida com meu pai foi e ainda é muito difícil, pois aprendeu a ser exigente nas pequenas coisas, como, por exemplo, impor aos filhos uma “leitura impecável” (expressão muito comum em suas falas). Todos os dias, escolhia uma filha para ler em voz alta o seu jornal e não era permitido soletrar ou gaguejar na leitura. Essa intolerância pode ser uma das explicações para que alguns de seus filhos não avançassem na escola. Enquanto uns desistiram no meio do caminho, outros cursaram uma faculdade somente depois dos quarenta anos, assim

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como eu. Quando estava em casa, meu pai gostava de ajudar a minha mãe nas tarefas domésticas, lavava e passava roupas, cozinhava e reunia as crianças para o banho. Nos fundos do nosso quintal, colocava as meninas enfileiradas (o banho do menino era em outro momento), jorrava um jato de água fria que saía de uma mangueira, depois nos ensaboava com bucha vegetal e sabão de coco. Mais outro jato de água era jorrado sobre nós e o banho terminava. Ao lado, outra fila era formada para que ele completasse a tarefa penteando os nossos cabelos. Possivelmente, tudo isso representava o seu jeito de nos acariciar. Contudo, minha mãe reprovava essa atividade e sempre observava ao longe e calada.

Um dia, um vizinho pensou em organizar uma festa junina em nossa rua; mas, para tanto, precisaria de crianças, adolescentes e jovens para ensaiar as danças. Então, resolveu pedir ao meu pai permissão para que suas filhas participassem da brincadeira. A primeira resposta do meu pai foi um “não” bem enfático. Após isso, foram muitas idas à minha casa sem sucesso. Quando o rapaz já estava desistindo, meu pai cedeu à pressão. Depois, se sentiu importante, pois se não liberasse as filhas, a festa à caipira não se realizaria. No final, deu tudo certo, embora seu semblante sempre se mostrasse fechado na hora do ensaio, valeu à pena ver as filhas felizes na única diversão que o lugar tinha para oferecer. Eu até virei rainha caipira. Olha aí!

Figura 11 – Festa na Roça. Da esquerda para a direita: Lúcia, Luciene, eu, Leila, Lenir e Lucelena. Faltam Leia e Ângelo.

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Em meio ao rigor, havia os muitos momentos de carinho, recreação e muitas gargalhadas. Como não tínhamos permissão para levar coleguinhas para casa, os nossos pais nos levavam à rua para brincar, sempre à noitinha. Era a nossa oportunidade de sairmos do “quartel”. Muitas crianças compartilhavam desse nosso momento de lazer: bandeirinha, pique esconde, amarelinha, pular corda. Nas noites de chuva, costumávamos brincar, em casa, de cantar, declamar poesias e teatrinho, sempre acompanhados pelos nossos pais.

As meninas

Arabela abria a janela. Carolina erguia a cortina. E Maria olhava e sorria: “Bom dia!”. Arabela foi sempre a mais bela, Carolina a mais sábia menina e Maria apenas sorria: “Bom dia!”. Pensaremos em cada menina que vivia naquela janela, uma que se chamava Arabela, uma que se chamou Carolina. Mas a nossa profunda saudade é Maria, Maria, Maria, que dizia em voz de amizade: “Bom dia!” (Cecília Meirelles).

Meu pai era quem iniciava e organizava boa parte dos nossos momentos de lazer, com suas histórias e causos. Seus causos eram sempre curtos e engraçados. Não sabemos se eram inventados ou se também os ouviu de pessoas que passaram em sua vida. Normalmente, as personagens eram negras: pessoas que foram escravizadas, gente pobre, gente sofrida, gente de alguma forma marcada em nossa sociedade. Ainda hoje, muitos causos fazem parte dos nossos encontros. Com o passar do tempo, nós (os filhos) percebemos que o tratamento conferido ao negro é estereotipado e preconceituoso, embora sejamos todos negros, inclusive o meu pai. Constatamos, então, que em muitos casos, o próprio negro renega suas origens.

Um causo2

Numa região que fica entre o Estado do Rio de Janeiro e o Estado do Espírito Santo, havia um povoado descendente de escravos, que conservava alguns costumes do tempo da escravidão. Um dos costumes era sair bem cedinho aos sábados, em direção à cidade e, principalmente, para se reunir na venda3. Ali, compravam o marafo4, o fumo de rolo, os mantimentos e também aproveitavam para conversar. Usavam dois picuás5, que eram duas sacolas unidas com um nó pelas bordas e lançadas ao ombro. De modo que uma sacola

2 Causo que meu pai costuma contar e que não sabemos de quem é a autoria. Causo: Narração, geralmente

oral e curta, que relata um acontecimento verdadeiro; caso, conto, história. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=causo . Causo é uma história (representando fatos).

3 Lugar onde se comprava alimentos e outros artigos.

4 Cachaça: Bebida feita da cana de açúcar. Disponível em:

https://www.geledes.org.br/palavras-de-origem-africana-no-vocabulario-brasileiro /

5 Saco de tecido grosseiro, em que se leva roupa ou comida em viagem; sapicuá. Disponível em:

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ficava na frente e a outra na parte de trás, para facilitar o transporte das compras. Certa vez, como de costume, os “negos” estavam na venda quando apareceu um “neguinho”, não muito alto, de pele bonita, pés descalços, sem camisa, apenas vestindo uma calça branca com uma faixa vermelha na cintura. Educadamente, dirigiu-se ao vendeiro, pediu um marafo e observou que a turba6 o olhava com muita curiosidade perguntando um ao outro “quem será esse ‘neguinho’?”. Até que um preto tu7 falou baixinho:

– Eu vô priguntá! E se dirigiu ao rapaz:

– Sem querê matratá, vóis mecê pode dizê quem é e de ondi vem? O “neguinho” deu um salto enorme, rodopiou e respondeu cantando (ao mesmo tempo em que o rapaz cantava ouvia-se tambores rufando, mas ninguém sabia de onde vinha aquele som):

– Ah, cheguei agora! Vim de Santa Luzia de Carangola!

Então, todos os homens caíram num sono profundo, menos o vendeiro. Só recobraram os sentidos quase ao escurecer. E, à medida que iam acordando, perguntavam ao vendeiro:

– Quem é aquele “neguinho”? Ao que o homem respondia: – Não vi ninguém!

Desse modo, até o dia de hoje, ninguém sabe quem era aquele rapaz. Uns dizem que o tal neguinho era uma entidade da religião de matriz africana, outros acreditam que era um cazumbi8, mas tem gente que jura que era o Saci-Pererê, mas alguém sempre corrige:

– Saci-Pererê não tem duas pernas!

Os causos contados por meu pai conseguiam quebrar a austeridade e fazer com que ele ganhasse o nosso carinho, respeito e atenção. Atualmente, meu pai – aos noventa e um anos de vida – é lúcido e saudável, embora conviva com as consequências do enfisema pulmonar que adquiriu aos cinquenta anos.

2.4 ESCOLA E UNIVERSIDADE: MEU PRIMEIRO ENCONTRO

Aos quarenta e nove anos, pisei a Universidade Federal Fluminense (UFF) como aluna do Curso de Pedagogia no ano de 2009. Cheguei com muita vontade de estudar, mas com medo de não conseguir me formar. Porém, aos poucos, ganhei segurança. Hoje, guardo na memória

6 Grande quantidade de pessoas reunidas; multidão, turbamulta, turbilhão. Disponível em:

http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=turba

7 Tu: diz-se do negro tido como sendo bruto. Boçal. Grosseiro. Oposto ao negro bom e passivo. Preto tu.

Disponível em: https://www.geledes.org.br/palavras-de-origem-africana-no-vocabulario-brasileiro/

8 Fantasma; Alma penada. Disponível em:

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momentos prazerosos do meu tempo de criança, da minha primeira escola e da minha primeira professora e tudo que impulsionou a minha chegada ao mestrado em Educação da UFF.

Eu daria tudo que tivesse pra voltar aos tempos de criança. Eu não sei pra que a gente cresce se não sai da gente essa lembrança. [...]. Que saudades da professorinha que me ensinou o bê a bá, onde andará Mariazinha, meu primeiro amor, onde andará? Eu igual a toda meninada, quantas travessuras eu fazia, jogos de botão pela calçada. Eu era feliz e não sabia [...]. (Meus Tempos de Criança)9

O meu primeiro encontro com a escola foi uma experiência encantadora. Lembro-me de uma cozinha, com um fogão à lenha, panelas e paredes escurecidas pela fumaça; da minha primeira professora e do seu esforço em ensinar e cozinhar ao mesmo tempo. Dona Lica era o seu nome, ou alcunha, não sei. A turma era composta por dez alunos, talvez. Todos ficavam assentados em banquinhos de madeira em redor de uma mesa também de madeira envelhecida. A casinha era pequena e feita de pau a pique.

Dona Lica tinha um ar sério, compenetrado e ao mesmo tempo amável. Era negra, bonita, de idade avançada (assim eu imaginava), cabelos presos e arrumados. Suas mãos trêmulas acariciavam o meu rosto sempre que eu chorava por algum motivo. A minha idade, não lembro, talvez uns cinco anos. Acho que só fui colocada ali para diminuir o trabalho de minha mãe em casa. Era muito bom quando chegava àquela escolinha. Dona Lica recebia os seus alunos com um sorriso de poucos dentes e, quando ensinava, colocava a sua mão sobre a nossa, direcionando-nos às primeiras letras. Hoje, tenho quase certeza de que dona Lica sabia apenas o bê-á-bá que nos ensinava e esse tipo de escola era muito comum em meu tempo de criança, por volta do ano de 1965.

O tempo da escola da dona Lica passou e eu fui matriculada em uma escola maior e repleta de crianças. Estou chamando de escola maior apenas uma sala, em uma rua em frente à minha casa. Na fachada, estava apenas escrito em letras grandes “ESCOLA”, que funcionava de manhã com a professora Marilza e à tarde com a professora Hortência, a minha professora. Dona Hortência era morena, bonita, cabelos cacheados e soltos, uns trinta anos talvez, atenciosa e muito amável. Estudei nesse lugar durante algum tempo e depois eu e minhas duas irmãs mais velhas fomos matriculadas no Colégio Estadual Dr. Adino Xavier, também em São Gonçalo. A

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escola era grande, com muitos alunos e muitas salas de aula. Ali, fiz o meu Jardim de Infância. Recordo-me do pátio, da hora do recreio e de como era bom correr até cair e chorar. Lembro-me que sofri preconceito por ser uma Lembro-menina gorda e negra, mas naquela época parecia comum. Eu sofria calada e me sentia a garota mais feia da escola.

Aos sete anos de idade, eu e minhas irmãs mais velhas fomos matriculadas na Escola Estadual Dr. Luiz Palmier. Nessa escola, estudei todo o primário, hoje chamado de ensino fundamental. O segundo grau (atual ensino médio) cursei no Instituto de Educação Clélia Nanci (IECN), que ficava ao lado da escola Doutor Luiz Palmier e foi profissionalizante. Cursei o técnico em laboratório médico, que me habilitou a trabalhar em laboratórios de análises clínicas, mas nunca considerei a profissão interessante na verdade. Mesmo assim, a exerci durante um tempo. Anos depois, três irmãs cursaram o normal superior e minha mãe pôde experimentar o que era ter filhas professoras. Contudo, eu ainda não havia despertado para a profissão docente. Em 1980, após dois vestibulares frustrados, passei para o curso de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Infelizmente, não acreditei na minha classificação, o que me fez não procurar saber o resultado. Isso me trouxe muita frustração, porém, prossegui com outras prioridades que foram preenchendo o meu tempo. Casei, tive um casal de filhos e com eles experimentei (e ainda experimento) momentos muito importantes que me ajudaram nas escolhas que acabei fazendo.

Ao acompanhar a vida escolar dos meus filhos, percebi o quanto tudo com eles era prazeroso. As idas e vindas à escola me aguçaram o querer voltar aos estudos, mas como seria, já que naquele momento priorizava o tempo com os filhos? Agasalhei esse desejo no meu coração até 1998, ano em que iniciei o curso de Educação Cristã e meu marido, o curso de Teologia no Seminário Teológico Batista de Niterói (STBN), no estado do Rio de Janeiro. Estava com 38 anos de idade. A educação cristã foi muito importante para a minha atual formação. Apaixonei-me pela prática da leitura, pela profissão docente e comecei um trabalho de contação de histórias nas igrejas. Porém, essa formação seria apenas para o trabalho eclesiástico e, naquela altura da vida, comecei a pensar na formação acadêmica. O meu marido, depois que terminou a formação teológica, passou para o Curso de Direito na rede privada. Eu não pensava em ensinar religião numa escola de ensino regular e lembro que quando surgiu uma oportunidade, recusei. O meu trabalho cristão é feito na esfera da minha igreja e isso sempre esteve claro para mim.

Desde 2002, tenho atuado como educadora cristã e, atualmente, estou envolvida na educação cristã de crianças e adultos numa pequena congregação em Manilha, Itaboraí, no

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estado do Rio de Janeiro. Assim que iniciei, percebi que há um grupo de adultos que mal passou pela escola, mas esse fato, aparentemente, não os incomoda. Porém, à medida que vou ouvindo suas histórias e observando suas dificuldades, chama-me a atenção o perfil dessas pessoas. A maioria é oriunda da região Nordeste do país e/ou da zona rural, negros e mulatos, pobres e que iniciaram muito cedo o trabalho subalternizado. Contudo, são pessoas resolvidas sob muitos aspectos, cheias de sonhos, realizações e com muita vontade de viver. Tudo que conseguiram em suas vidas, atribuem à bondade divina. As histórias dessas pessoas são muito parecidas com as histórias da minha família e esse fato me inquieta, por isso, tenho procurado aproveitar ao máximo o conhecimento que acumularam ao longo da vida.

2.5 CONTRIBUIÇÃO DA FAMÍLIA E DO NUTHIC

Meus filhos cresceram sabendo do meu desejo em estudar em uma Universidade Pública e desejavam que eu me realizasse. Assim, minha primeira filha, quando estava se preparando para o vestibular, insistiu que eu me matriculasse num cursinho preparatório e nós duas concorremos a uma vaga em um curso pré-vestibular comunitário. E, em 2008, minha filha passou no vestibular para o curso de Arquivologia da UFF. Em 2009, passei para o curso de Pedagogia e me formei em 2014. Um ano após o meu ingresso na academia, o meu filho passou para o curso de Filosofia. Todos na mesma instituição.

Em 2016, fui convidada pela professora Zoia Prestes para participar do NUTHIC. Aceitei o convite, porém, naquele momento, o interesse estava apenas nos debates promovidos pela academia. O grupo estava estudando o livro Imaginação e criação na infância, de L. S. Vigotski, e depois estudamos Pensamento e fala, do mesmo autor. A partir de algumas falas dos participantes e da professora Zoia, eu comecei a pensar no meu objeto de pesquisa. Embora os estudos focassem no desenvolvimento infantil, o meu interesse estava em direção ao adulto que não desenvolveu habilidades consideradas fundamentais em nossa sociedade, como a escrita e a leitura. Esta pesquisa, portanto, tem o objetivo de investigar pessoas de poucas letras marcadas pelo preconceito em nossa sociedade.

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3 HISTÓRIAS DE PESSOAS DE POUCAS LETRAS QUE VENCERAM AS MARCAS DO PRECONCEITO

Contar histórias implica estados intencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que confrontam a vida cotidiana normal. (JOVCHELOVICH; BAUER, 2011, p. 90)

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3.1 AGORA SOU UMA PESSOA RICA! – HISTÓRIA DE VIDA DA ELVIRA

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Cresci no Morro10 (Martinho da Vila)

Eu cresci no morro e me criei na cidade

Saí do submundo e penetrei no seio da alta sociedade E já hoje em dia pego o meu carro

E vou à boite, banquete, coquetel, não sou tatibitati Tenho argumento pra qualquer bacharel

Tenho argumento pra qualquer bacharel Mas quando eu chego no morro

Calço o meu charlote, dou o braço à escurinha Tomo uma bebida quente na tendinha

No jogo de ronda eu esqueço da vida Não é mole não

Mas eu sou considerado pela turma que descamba Pego o pandeiro e caio logo no samba

Já me disseram que eu sou um malandrão

Há oitenta e dois anos, no dia primeiro de fevereiro de 1937, no bairro do Cubango, Niterói, RJ, nascia Elvira. Ela é a quinta filha de uma família de sete filhos, sendo quatro meninas e três meninos. Elvira é sarará, de olhos verdes azulados. O pai era “russinho” de olhos azuis e a mãe, negra de cabelos lisos. Elvira era uma menina magra, de cabelos vermelhos, canelas finas, de voz estridente. A família morava num barraco na subida de um morro. Embora seus pais tivessem passado pela escola e soubessem ler e escrever “muito bem”, como diz, ela e a maioria de seus irmãos não estudaram enquanto crianças. Aos oito anos de idade, como a pobreza era muito grande, Elvira foi introduzida pelo seu pai no mundo do trabalho. Seu primeiro emprego foi em uma casa de família para lavar louças e limpar sardinhas, ela conta: “Eu tinha muito nojo... isso era muito ruim, muito ruim pra mim”.

Na casa, residia apenas um casal de idosos. Com o casal, trabalhava um senhor que Elvira chama de jardineiro. O jardineiro ensinou à menina afazeres que ela ainda não conhecia, como limpar sardinhas. “Eu limpava sardinha e chorava, porque eu não sabia fazer aquilo”, relata. Para lavar louças, a pequena subia em um caixote de madeira. Nessa residência, Elvira permaneceu até os seus doze anos de vida. E menciona: “Eu só lembro que ficava o tempo todo lá”. Essa experiência foi muito traumática para Elvira. Ela falava continuamente, sem permitir que eu a interferisse.

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Com a voz um pouco trêmula, questionava certas passagens de sua vida: “Por que apenas eu tive que sair de casa para trabalhar, enquanto meus irmãos ficavam em casa com meus pais? Por que era assim comigo? Por que, meu Deus?”. Contudo, não obteve respostas.

Essas perguntas foram repetidas várias vezes enquanto eu ouvia a sua história. Percebi que o momento era para Elvira falar, por isso, não a interrompi. Continuou: “Eu me achava rejeitada, não só pelos meus pais. Meus irmãos também faziam isso comigo. Isso sempre foi assim. Isso sempre foi assim. Eu não sei o que tinha com meus pais”.

Depois da casa dos idosos, Elvira trabalhou em outra casa de família em troca de uma bolsa de legumes. Nessa casa, seus padrinhos tiveram que se responsabilizar por ela. Elvira recorda que a sua mãe, em decorrência de um aborto, passou muito mal e que o médico disse que ela ficaria com uma “sequela”. Narra:

Minha mãe fez um aborto e passou muito mal. Eu acho que foi porque meu pai tava parado e já tinha muito filho pra sustentar. Coitadinha, quase morreu. Ela ficou com juízo fraco e passou a beber álcool (silêncio). Passou a beber álcool e a gente tinha que sair pra comprar e isso era muito triste, muito triste. Misturava com açúcar pra beber. E foi assim até o fim.

Logo depois, o pai da Elvira faleceu, deixando os filhos com a esposa doente. A situação agravou-se sobremaneira. “Nessas alturas, meu pai já tinha morrido. Então, eu fui trabalhar naquela casa pra ter comida lá em casa”, diz.

Elvira conta que continuou como braço forte na manutenção da família. Nesse momento de sua vida, a satisfação do trabalho, sem ver “a cor do dinheiro”, continuava muito difícil:

Era muito duro trabalhar e nunca ver a corzinha do dinheiro. O dinheiro, eles diziam que era pra descontar na comida. Quer dizer que no fim do mês eu nunca via nada, mas, se era pra alimentar a minha mãe e meus irmãos, eu não me incomodava. Lá não tinha criança e eu ficava lá direto.

Desse modo, a menina viveu de casa em casa, trocando o suor do seu trabalho por comida. Mesmo criança, ajudou na criação de muitas outras e trabalhava como gente grande. Algumas vezes, aproveitava para brincar um pouquinho, mas era sempre lembrada de que estava ali para trabalhar. Por esse motivo, Elvira conclui que teve uma infância muito difícil:

Só comecei a estudá direitinho mesmo, quando eu passei um período na casa da minha tia. Ela trabalhava numa casa que tinha uma criança que estudava numa escola de gente rica. Anexo a essa escola, tinha uma escola de gente pobre, que os pais dessa menina ajudava. Minha tia me matriculou nessa escola de pobre. É que dava uniforme e calçado das crianças ricas. Era lá que eu estudava. Mas não aprendi a ler e escrever e nem mexer com número. Bem mais tarde, eu estudei numa escola, ali no Cubango, era lá em cima (levanta o

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braço direito apontando para o local) na esquina do morro. Eu não conseguia aprendê nada. Eu não passava de ano. Quando chegava na hora da matemática, aquilo não entrava, não entrava... não entrava na minha cabeça. Da primeira série, eu conseguia saí, mas, da segunda nunca saía. Acho que eu tinha que fazê algum tratamento. Aquilo não era normal. E sempre foi assim. Acho que eu tinha algum problema de cabeça ou alguma doença. Era um branco total, entendeu? Não era normal aquilo... não era normal. Eu me sentia muito mal com isso. Todo mundo conseguia, mas eu não. Eu passei tudo isso sem a minha mãe, mas ela tava lá. Quando eu fiquei mocinha, a minha mãe não tava comigo. Minha madrinha me ensinô a fazer higiene. Ela dizia “toma um banho meio frio”... E aquilo tudo, que você sabe. Minha mãe tava doente, mas todo mundo tava junto, menos eu. Por isso que eu digo que fui rejeitada. O melhó período da minha vida foi quando morei com a minha tia, lá em Laranjeiras, mas sempre me preocupando com a família. Minha mãe já tinha morrido e eu ganhava ropa, calçado e juntava uma parte pras minhas irmãs. Vinha pra Niterói, pegava o bonde lá, depois pegava as barcas e vinha sozinha pra casa dos meus irmãos. Eles moravam sozinho. Depois conheci uma família que me ajudou muito. Fui morar na casa deles e acabei casando com um rapaz da casa. Eu tinha uns dezesseis anos e ele era mais velho que eu, uns oito anos. Muito ciumento. Mas ali eu tive pai e mãe. Minha sogra e o meu sogro cuidaram de mim, foram meus pais, e eu também cuidei dos dois até a morte deles. Eles eram menos pobres que eu. Moravam numa casa muito grande e com muitos filhos. Eu me sentia mais filha que todos, porque, eles nunca deixaram ninguém me maltratar. Sempre agradeço a Deus por aqueles velhos. Depois que tive meus filhos, estudei numa escola e ali eu aprendi a matemática. Foi até um moço que sentô do meu lado e me ensinô a tal da matemática. Hoje não tenho mais problema com ela. Não preciso pegá o lápis pra fazê contas, igual nego aí. Faço tudo de cabeça. Estou com oitenta e um anos e não tenho mais problema com a matemática. Depois estudei na casa de uma vizinha e só fui melhorando na leitura, mas escrevê, eu não sei escrevê direito. Já fui muito discriminada por causa do meu jeito de falá. A pessoa olhava pra minha cara e ria. Agora eu leio muito jornal, falo bem melhor, tem gente que nem acredita que eu não estudei direito. Falo bem, mas escrevê... Mas faço cópia, muita cópia de tudo. Sofri muita discriminação na família do meu marido. Posso falá? Na família do meu marido tinha muita professora e eu era a pobretona semianalfabeta. Eu falava muito errado e isso era muito cobrado lá. Eu tinha vergonha de abrí a boca. Eles me chamavam de “neguinha do morro”. Eu era do morro sim, e daí? Essas coisa me deixava muito triste. Depois da minha sogra e do meu sogro, meus filhos me alegravam muito. Eu dançava e cantava com eles em casa e nas festas. Isso, herdei de minha mãe. E eu lembro que meu pai ficava revoltado, porque tinha um programa na rádio que só cantava chorinho. Minha mãe saía na frente com a vassoura dançando e as crianças saíam atrás. Nesse tempo, ela tinha saúde. Ela gostava de dançar e cantar o

Brasileirinho. Essa sempre cantava na rádio. Sabe como é? Eu sempre gostei

muito de ouvir músicas. Tem uma que fala da vida no morro. É assim: “Vai barracão, barracão de zinco...” (cantarolou). Acho que lembra muito a nossa vida. Minha mãe trabalhava na fábrica de vidro e meu pai, eu não lembro. A gente ficava em casa, mas eu saí logo. Foi como eu falei, tinha oito anos e não conhecia escola. Cresci analfabeta. A pessoa analfabeta é uma pessoa leiga de tudo. No meu modo de vê, é uma falta muito grande. Se você não soubé ler e escrever é muito ruim. Quando você vai num lugar que tem que escrevê, é muito ruim, mesmo. Você escuta te chamá de “burra”. Quando fui tirar o meu título de eleitora não sabia escrevê direito. Quando me deram uma folha

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pra preenchê... a única coisa que eu sabia escrevê era o meu nome. Fiquei desorientada, porque não sabia preenchê a ficha. Sempre que acontecia isso, pedia alguma pessoa para me ajudá. Eu era franca e falava: “não sei escrevê direito, você pode me ajudá?”. A pessoa me ajudava. Eu ficava muito incomodada com isso. Me sentia muito mal, muito humilhada. Acho que ser analfabeto não é problema e sim falta de oportunidade, falta de um colégio, de uma orientação. É muito importante sabê lê e escrevê. Fiquei com pena de não tê estudado mais. Eu queria ser professora. Meu sonho era ser professora. Gostava de contá história para os meus filhos antes de dormir. Juntava um monte de criança pra ouví minhas histórias, mesmo eu não sabendo lê direito. Sempre fiz isso. Meus filhos gostavam muito da mesma história que a minha mãe contava pra gente. Essa história, ela aprendeu com a madrinha e eu, de tanto ouvir, acabei aprendendo. Meus filhos falavam: “conta a história da menina pobre e da menina rica, conta!”. Era assim:

A menina pobre e a menina rica

Era uma vez uma menina pobre e uma menina rica. A rica ficava na casa da madrinha e a mãe da menina pobre trabalhava nessa casa. A menina rica sempre ganhava coisas boas da madrinha e a menina pobre não ganhava nada. A menina rica nunca emprestava nada pra pobrezinha. O sonho da menina pobre era ter uma boneca e a menina rica jogou uma boneca no lixo. Um dia, a menina pobre estava andando para a sua casa, quando avistou uma bonequinha jogada no lixo. A menina pegou boneca do lixo e levou para a sua casa. Deu banho na boneca e colocou pra dormir. De noite a bonequinha disse: quero ir ao banheiro. A menina pobre se assustou, mas, fez o que a boneca pediu. No dia seguinte, o banheiro estava cheio de moedas de ouro. E todo dia a boneca falava: quero ir no banheiro e aparecia um montão de moedas de ouro no banheiro. A menina pobre ficou muito bem de vida e todo mundo queria saber como aconteceu aquilo. Ela contou que era a bonequinha que fazia as moedas de ouro. A mãe da menina rica ficou sabendo da história e, com muita inveja, mandou a filha oferecer dinheiro pela bonequinha. Como a menina que era pobre não aceitou vender a boneca, a menina rica roubou o brinquedo. Bem tarde da noite, a bonequinha falou: quero ir ao banheiro. Aí, a mãe da menina rica levou a boneca para o banheiro e ficou a noite toda esperando aparecer as moedas de ouro. Quando olhou, você já sabe o que tinha, né? A mãe da menina rica ficou com tanta raiva que jogou a boneca no mato. O tempo passou, passou, e a menina que era pobre cresceu e ficou uma moça muito bonita. Um belo dia, um príncipe estava passando com o seu cavalo e parou para descansar e sentou na grama. O moço não viu que havia sentado em cima de uma bonequinha. Quando levantou sentiu que tinha uma boneca agarrada nele. Ficou desesperado. A rainha ofereceu dinheiro para quem conseguisse descolar a boneca do filho, mas ninguém conseguia. Até que a mocinha, que um dia foi uma menina pobre, resolveu ajudar o príncipe e conseguiu livrar o rapaz. O príncipe ficou muito feliz e se apaixonou pela mocinha. Os dois se casaram e a mocinha nunca mais ficou pobre.

Acho que eu queria que a menina pobre fosse eu. É, acho que era isso. A menina pobre era eu. E, sabe de uma coisa? Eu, hoje, me considero uma pessoa rica. Eu vivi muito tempo cuidando da casa dos otros, dos filhos dos otros e era horrível chegá de noite e tê que cuidá de tudo na minha casa. Os meus filhos saíam da escola e ficavam em casa esperando eu chegá. A casa era uma bagunça só. Quando meu marido ficô desempregado, eu guardava o meu almoço pra comê com eles, e as crianças, em casa. Trabalhava de segunda à sexta. Mas, agora na velhice, cuido das minhas coisas. Tenho a minha casinha,

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o meu dinheirinho. Faço o que quero. Eu gosto muito de acordá cedo e lê o meu jornal, fazer palavra cruzada... Antes, não podia... Eu era analfabeta e isso era muito horroroso. Eu leio muito, muito mesmo, mas, escrevê... acho muito difícil. Eu sei melhor lê do que escrevê. Acho que, daqui até o final da minha vida, vou fazer muita cópia. Eu gosto muito de lê, mas sinto muita dificuldade na hora de escrevê. Agora, eu sei falá melhó, mas, se tiver que escrever ... Ih, faço muita cópia por causa disso. Mas analfabeta não sou.

– Entrevista da Elvira 1-Nome: R: Elvira 2-Idade: R: 81 anos. 3-Naturalidade:

R: Estado do Rio de Janeiro 4-Profissão:

R: Do lar

5-Seus pais sabiam ler e escrever? R: Sim

6-Até que ano estudaram? R: Não sei.

7-Por quê?

R: Só sei isso deles. Era muito pequena.

8-Você sabe dizer o que é uma pessoa analfabeta? R: Pessoa leiga de tudo.

9-Você acha que ser analfabeto é um problema? Por quê?

R: Sim. Falta de oportunidade, falta de um colégio, de uma orientação. 10-Você considera que saber ler e escrever seja importante?

R: Muito importante.

11-Caso você tenha vindo do interior do Estado ou de outro Estado: Por que saiu de sua cidade? R: Saí da minha cidade pra morar com a minha tia.

12-Em que ano saiu?

R: Acho que foi por volta de 1950/1955, por ai. 13-Qual foi o seu primeiro emprego?

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R: Casa de Família.

14-Havia necessidade de saber ler? R: Não.

15- Você frequentou escola? R: Só depois de adulta.

16-Quanto tempo você estudou? R: Muito poco.

17-Alguma vez, você se sentiu incomodado(a) por ter frequentado pouco a escola? R: Sim. Muito humilhada.

18- Você já se sentiu discriminada por isso? R: Sim.

19- Conhece alguém que já foi discriminado pelo mesmo motivo? R: Sim.

20- Você sabe ler? R: Sim. Leio muito. 21- Sabe escrever? R: Muito mal.

22- Você já procurou ou frequentou algum curso de Educação de Adultos (EJA)? Por quê? R: Sim. Porque não sabia nada.

23- Se não procurou e nem frequentou a EJA: Por quê? R:

24- Você gostaria de ter estudado mais um pouco? Por quê? R: Sim. Pra melhorar na escrita, ter um bom trabalho. 25- Você se considera uma pessoa analfabeta?

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3.2 TEM COISA QUE PESSOA QUE ESTUDÔ NÃO SABE FAZÊ E EU SEI! – HISTÓRIA DE VIDA DA MARIANA

Figura 10 – Mariana e Alberto

Qualquer pessoa que chega à casa da Mariana é recebida pelo seu largo sorriso. Não foi diferente comigo em nenhuma das minhas visitas. Mesmo que eu estivesse interrompendo seus afazeres, Mariana se mostrava sorridente, muito disposta e receptiva. Essa é uma característica marcante da nossa participante de Setubinha, interior de Minas Gerais. Há mais de trinta anos, reside em Manilha, Município de Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro. Mariana é de “pele

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escura”11, cabelos e olhos castanhos escuros, de baixa estatura e de mãos habilidosas para costura, cozinha e o cuidado de sua pequena horta. Mariana trabalhou na roça, em Setubinha, até os seus dezenove anos de idade. Em Belo Horizonte, foi babá e empregada doméstica. Depois de casada, trabalhou como costureira e, atualmente, aos sessenta e dois anos de idade, é proprietária de uma vendinha construída na parte da frente de sua casa. O comércio da Mariana atende mais ao público infantil e permanece aberta mesmo quando Mariana está nos afazeres domésticos. Esse costume me deixou um pouco preocupada, pois quando cheguei, a vendinha estava totalmente aberta e ninguém do lado de dentro do balcão. Mariana explicou: “Tem perigo, não. É só tocá a campainha ou gritá ‘dona Mariana’, que eu venho rapidin”.

Nos fundos da casa, Alberto, esposo da Mariana, construiu duas casinhas para alugar, uma cisterna e um forno à lenha para fazer deliciosos pães, bolos, rosquinhas e etc. A casa é de alvenaria, pintada de novo, bem organizada e aconchegante. Tudo foi construído por Alberto, que é pedreiro de profissão. Percebi que a essa casa não se aplica o ditado popular que diz “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”. Mariana e Alberto também tomam conta de um terreno ao lado de sua casa, e nesse espaço o casal organizou uma pequena horta, para o consumo familiar. Houve um tempo em que o casal criava animais domésticos, mas, atualmente, não há bichos no quintal, porque “come tudo que vê pela frente”, explica Mariana.

A História de Vida da Mariana começa em Setubinha, em um terreno de grande proporção que fora adquirido pelos seus pais quando resolveram se casar. O casal, muito jovem, começou a vida com muita dificuldade. Ele, um rapaz branco, cabelos lisos, magro, de família pobre, que se apaixonou por uma moça pobre como ele, contudo, negra. Essa união trouxe muitos problemas para os pais da Mariana. Ela conta: “meu pai casô com a minha mãe levando a ropa do corpo e não tinha nem uma estera velha. A família dele não queria o casamento, porque a minha mãe era escura. A mãe do meu pai era branquinhazinha de cabelo lisinho... Era uma gente pobre metida a besta”.

Em nenhum momento de nossa conversa, Mariana dirigiu-se aos pais de seu pai como avós. E, ficou muito claro que as famílias não se comunicavam. Ela narra:

A família do meu pai morava na mesma cidade, mas não visitava a gente. Depois que o pai do meu pai morreu e a mãe dele já estava velha e doente, minha mãe levô ela pra nossa casa. Aí a gente se deu bem. Não teve mais problema nenhum... ela ficou lá em casa com a gente... minha mãe cuidava dela...

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Mariana relata que os pais não passaram pela escola formal e apenas seu pai sabia ler e escrever. Para ela, analfabeta é uma pessoa que não sabe escrever o próprio nome. A condição de analfabeto não é tida como um problema para Mariana, porque “tem coisa que pessoa que tem estudo não sabe fazê e eu sei...”, justifica.

Mariana está se referindo aos saberes que adquiriu fora da escola. Sendo uma mulher nascida e criada no trabalho da “roça”, aprendeu a preparar a terra para o plantio; aprendeu o tempo certo para a semeadura e colheita; aprendeu tear o algodão para confeccionar tapetes e cobertores, com sua avó materna e suas tias. Trabalhou como costureira, babá e empregada doméstica. Esses saberes, Mariana entende que nem todas as pessoas possuem. Seu pai, por exemplo, lidava com a terra e com a comercialização de seus produtos; sua avó materna e tias sabiam trabalhar todo o processo na confecção de tecidos. Mariana conta:

No meu tempo, quando eu era criança, minha avó fazia aquelas manta de algodão pardo e tapete... fazia coberta pra gente. O algodão que era branco podia ser tingido da cor que quisesse... Ela fiava o algodão. Tinha um descaroçadô de algodão... era igualzinho o cilindro de fazê pastel. Os dente do tiar12 era feito de madeira... Minha avó e a minha tia... as duas fiava o algodão... tingia o algodão. Ela ia passando o algodão e a gente ia pegando a sementinha do outro lado. A gente aprendeu com elas... era muito bom. Minha avó fazia, pra gente, coberta. Fazia o colorido que ela queria. Então, eu achava que o povo de antigamente era muito inteligente... Mas minha avó não passô pela escola. Meu pai passô muito poco. Meu pai vivia da roça e a gente trabalhava muito... Plantava arroz, feijão, aipim pra fazê tapioca. A gente vendia pra comprá o sal e o mais a gente tinha. Meu pai saía cedin de casa pra vendê... era muita laranja, muito aipim... Mas meu pai sabia lê muito poco... Minha mãe não sabia escrevê nem o nome. Naquele tempo, professô era difícil... Era só pra filho de fazendero... Mas eu acho que a pessoa que sabe lê hoje em dia tem um bom emprego e sabe se expressá melhó.

Mariana estudou até a terceira série primária, atualmente, quarto ano do ensino fundamental. Ela e os irmãos passaram por pouco tempo pela escola, devido à falta de escolas nas proximidades de sua casa e ao trabalho com os pais, na roça. Explica:

Meus irmão estudaro muito poco, só pra assiná o nome. A gente ajudava na roça e na cozinha. Eu não gostava de cascá abobra casca de caré13. Duía muito a mão da gente. Fui matriculada na escola com onze ano. A gente trabalhava até onze hora e vinha pra casa, tomava banho e ia pra cidade. A escola era na cidade. Frequentei escola até a terceira série, naquele tempo, quando apareceu escola naquele lugá... Foi quando surgiu escola por lá. Não estudei poco só

12 Tear 13 Jacaré.

Referências

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