• Nenhum resultado encontrado

Figura 11 – Severo

Asa Branca (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira) Quando oiei a terra ardendo,

Qual fogueira de São João, E eu perguntei a Deus do céu, uai, Por que tamanha judiação?

Que braseiro, que fornaia, Nem um pé de prantação. Por farta d'água perdi meu gado, Morreu de sede meu alazão.

Inté mesmo a asa branca Bateu asas do sertão. Entonse eu disse adeus Rosinha, Guarda contigo meu coração.

Hoje longe muitas léguas, Numa triste solidão, Espero a chuva cair de novo

Pra eu voltar pro meu sertão. Quando o verde dos teus oio

Se espalhar na prantação, Eu te asseguro não chore não, viu, Que eu voltarei, viu,

Meu coração. .

Foi numa tarde de quarta-feira, que cheguei à casa do Severo. Ele voluntariou-se para a pesquisa, porém, recebeu-me com a frase abaixo, seguida do diálogo:

– Falo muito pouco. Como vai sê isso? Dei um sorriso e respondi:

– Não se preocupe, fale o tempo que quiser.

– Ah, então tá ... mas eu tô com pressa. Hoje vô falá só um poquinho e otro dia falo mais, tá?

– Tudo bem.

Severo é um homem calmo, de fala pausada e tímida. Estava preocupado porque a noite já estava “caindo e os bicho tá tudo do lado de fora”, explicou meio sem jeito. Ele cria galinhas, patos, codornas, um casal de peru e um jegue no local onde reside. Sua casinha é bem pequena, com cômodos necessários para uma pessoa solteira. Fora construída por ele, e o mobiliário, em sua maioria, é usado, fruto da sua boa amizade na vizinhança.

“A noite aqui nessas banda chega mais depressa. Vô recolhê os bicho”, disse ele. A “banda” a que Severo está se referindo é um loteamento de uma grande fazenda em Itambi, município de Itaboraí. A iluminação é precária, os vizinhos são poucos e há sempre o perigo de aparecer cobras em seu terreno. Ele não é proprietário do lote em que mora, apenas “toma conta” do espaço. O verdadeiro dono permitiu que Severo construísse um cômodo com um banheirinho nos fundos do quintal. É nesse lugar que mora o meu voluntário. Severo faz biscates de pedreiro e de qualquer coisa que aparece para fazer. Cuida de outros lotes e assim tira o seu sustento. Tinha dezenove anos de idade quando chegou ao Rio de Janeiro. Veio da Paraíba, há trinta e dois anos, em busca de trabalho. Assim que chegou, foi trabalhar de servente de pedreiro, em Jacarepaguá. Explica: “no Rio de Janeiro, tem muito trabaio”.

Foi com a certeza de um emprego certo que Severo migrou para um lugar que só ouvia falar que era bom. O dinheiro para a viagem foi economizado com muita dificuldade, fruto das poucas oportunidades de trabalho no interior da Paraíba. Logo que chegou ao Rio, foi morar num alojamento de rapazes que prestavam serviço para uma construção civil. Depois, “fui

pulando de gaio em gaio”, conta. Entre os lugares possíveis de moradia, estavam algumas favelas do Rio. Severo narra:

Vim trabaiá num alojamento da obra. Era muito home junto. Depois, fui pulando de gaio em gaio, morando aqui e acolá e até numa favela parei uns tempo. Era uma casinha alugada de um conhecido. Morava eu mais ele. [...] Aqui no Rio é assim. A gente chega aqui e vai direto pra obra. Durante o dia, era trabaio pesado e de noiti era forró e cachaça. Bebi muita cachaça e fumei muito cigarro. Era muito moço e num pensava em nada. Isso era todo dia. Com os pais e irmãos, Severo trabalhou na “roça” desde muito pequeno. Sua casa era feita de sopapo, como a maioria. Seu pai era um homem de cabelos pretos e lisos. Sua pele era “castigada” pelo sol. Sua mãe, uma mulher de “pele clara”, explicou: “Meu pai era assim, como eu. A pele desse jeito, castigada de tanto sol que pego. Minha mãe tinha pele clara”.

Severo e sua família sobreviviam de uma pequena plantação de várias espécies de plantas comestíveis, na esperança de que uma vingasse. Contou-me:

Meu pai plantava um pouco de tudo e ficava esperando pra vê se ia dá. A seca era braba e as planta não vingava. O pai dizia que, o jeito era saí com os minino pra trabaiá na cidade. Quando tinha sorte, a gente tinha comida e os vizinho também. Meu pai plantava pra vende, mas ninguém tinha dinhero pra comprá. Aí, ele dava tudinho... a terra era dura demai e não tinha água por perto. A gente andava até o açude e vortava pra casa com um poquinho de água barrenta. Quando tava bom, tinha farinha com leite pra cumê... quando tava ruim, tinha farinha com água e barro...

A Vida Severina dessa família fez nascer, em Severo, o desejo de tentar um lugar melhor para se viver. Antes, esse desejo nasceu no coração do seu irmão mais velho. Deste, recebeu incentivo para também se aventurar. Os pais e os outros irmãos não comungaram da mesma ideia. Sempre que a família recebia notícias do irmão mais velho, o desejo de mudar para o Rio aumentava: “meu irmão falava que aqui no Rio tinha bastante comida e trabaio... Nunca tinha visto arroz e macarrão. A primeira vez que fiz macarrão fiz uma cola no fundo da panela (risos)... cumi. Num tinha outra coisa...”, relatou.

Severo conta que o seu novo emprego não exigiu leitura e escrita: “Nunca pediro que eu escrevesse. Mas eu sei escrevê e lê um poquinho”. Nele, precisa, apenas, cumprir exigências laborais. Diz ter estudado uns dois ou três anos, sem certeza, e não tem nada que certifique esse pouco tempo de escola.

Ele não sabe se os pais estudaram, porém, lembra que sabiam escrever o nome. Como era o filho menor, diz não saber se os pais aprenderam escrever na escola ou em casa. Depois da entrevista, contou que acha que talvez não tivesse escola na época em que seus pais eram

crianças: “não lembro, mas, acho que num tinha escola naquela época”. No entanto, em seu tempo, “a escola era longe, mas tinha”, disse.

Severo diz que nunca fora discriminado pelo pouco que estudou e não conhece ninguém que tenha sido discriminado pelo mesmo motivo. Veio para Itaboraí assim que ouviu que era um “lugar bom de se morar e barato”. Contudo, quando chegou em Itambi, ficou sem pouso definitivo por muito tempo. Fazia biscates e o pouco que conseguia ganhar gastava com o vício da cachaça e do cigarro. Embora Severo tenha esse histórico, sempre mostrou ser confiável e muito querido pelos vizinhos. Sua fama de trabalhador e honesto foi definitiva para que tivesse o tipo de vida que tem atualmente. Não foi difícil ganhar a confiança e simpatia dos moradores do local. Ele relata:

Consegui esse lugazinho pra morá ... Não bebo mais cachaça e gosto muito da minha vida, agora ... fiz meu barraquinho ... crio meus bicho e tudo mais ...Agora quero juntá um dinheirinho pra comprá uma carroça e vendê meus aipim, depois quero compra um pedacinho de terra aqui na fazenda.

Trago na memória a poesia de João Cabral de Melo Neto que, apropriadamente, se fez presente durante toda a nossa conversa:

Morte e Vida Severina O meu nome é Severino, como não tenho outro da pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria.

Como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos:é o Severino da Maria do Zacarias, lá da Serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos já finados,Zacarias, vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Entrevista do Severo 1-Nome (fictício) R: Severo. 2-Idade: R: 49 3-Naturalidade: R: Estado da Paraíba 4-Profissão: R: Armadô, pedreiro.

5-Seus pais sabiam ler e escrever? R: Não. Só o nome.

6-Até que ano estudaram? R: Não estudaram.

7-Por quê?

R: Não me lembro, mas, acho que não tinha escola. 8-Você sabe dizer o que é uma pessoa analfabeta? R: Não faço ideia.

9-Você acha que ser analfabeto seja um problema? Por quê? (Depois da explicação da palavra analfabeto)

R: Sim. A pessoa é errada de tudo.

10-Você considera que saber ler e escrever seja importante? R: Muito.

11-Caso você tenha vindo do interior do Estado ou de outro Estado: Por que saiu de sua cidade?

R: Falta de emprego. 12-Em que ano saiu? R: 1989

13-Qual foi o seu primeiro emprego? R: Ajudante de pedrero

14-Havia necessidade de saber ler? R: Não.

15- Você frequentou escola? R: Sim.

16-Quanto tempo você estudou? R: 3 ou 4 ano.

17-Alguma vez, você, se sentiu incomodado por ter frequentado pouco a escola? R: Sim.

18- Você já se sentiu discriminado por isso? R: Não.

19- Conhece alguém que já foi discriminado pelo mesmo motivo? R: Não.

20- Você sabe ler? R: Um pouco. 21- Sabe escrever? R: Um pouco.

22- Você já procurou ou frequentou algum curso de Educação de Adultos (EJA)? R: Não.

23- Se não procurou e nem frequentou a EJA: Por quê? R: Não. Porque já to com quase cinquenta ano.

24- Você gostaria de ter estudado mais um pouco? Por quê? R: Sim, naquela época. É melhó pra tudo.

25- Você se considera uma pessoa analfabeta? R: Não, porque sei um bocado de coisinha.