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TEM COISA QUE PESSOA QUE ESTUDÔ NÃO SABE FAZÊ E EU SEI! – HISTÓRIA DE

Figura 10 – Mariana e Alberto

Qualquer pessoa que chega à casa da Mariana é recebida pelo seu largo sorriso. Não foi diferente comigo em nenhuma das minhas visitas. Mesmo que eu estivesse interrompendo seus afazeres, Mariana se mostrava sorridente, muito disposta e receptiva. Essa é uma característica marcante da nossa participante de Setubinha, interior de Minas Gerais. Há mais de trinta anos, reside em Manilha, Município de Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro. Mariana é de “pele

escura”11, cabelos e olhos castanhos escuros, de baixa estatura e de mãos habilidosas para costura, cozinha e o cuidado de sua pequena horta. Mariana trabalhou na roça, em Setubinha, até os seus dezenove anos de idade. Em Belo Horizonte, foi babá e empregada doméstica. Depois de casada, trabalhou como costureira e, atualmente, aos sessenta e dois anos de idade, é proprietária de uma vendinha construída na parte da frente de sua casa. O comércio da Mariana atende mais ao público infantil e permanece aberta mesmo quando Mariana está nos afazeres domésticos. Esse costume me deixou um pouco preocupada, pois quando cheguei, a vendinha estava totalmente aberta e ninguém do lado de dentro do balcão. Mariana explicou: “Tem perigo, não. É só tocá a campainha ou gritá ‘dona Mariana’, que eu venho rapidin”.

Nos fundos da casa, Alberto, esposo da Mariana, construiu duas casinhas para alugar, uma cisterna e um forno à lenha para fazer deliciosos pães, bolos, rosquinhas e etc. A casa é de alvenaria, pintada de novo, bem organizada e aconchegante. Tudo foi construído por Alberto, que é pedreiro de profissão. Percebi que a essa casa não se aplica o ditado popular que diz “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”. Mariana e Alberto também tomam conta de um terreno ao lado de sua casa, e nesse espaço o casal organizou uma pequena horta, para o consumo familiar. Houve um tempo em que o casal criava animais domésticos, mas, atualmente, não há bichos no quintal, porque “come tudo que vê pela frente”, explica Mariana.

A História de Vida da Mariana começa em Setubinha, em um terreno de grande proporção que fora adquirido pelos seus pais quando resolveram se casar. O casal, muito jovem, começou a vida com muita dificuldade. Ele, um rapaz branco, cabelos lisos, magro, de família pobre, que se apaixonou por uma moça pobre como ele, contudo, negra. Essa união trouxe muitos problemas para os pais da Mariana. Ela conta: “meu pai casô com a minha mãe levando a ropa do corpo e não tinha nem uma estera velha. A família dele não queria o casamento, porque a minha mãe era escura. A mãe do meu pai era branquinhazinha de cabelo lisinho... Era uma gente pobre metida a besta”.

Em nenhum momento de nossa conversa, Mariana dirigiu-se aos pais de seu pai como avós. E, ficou muito claro que as famílias não se comunicavam. Ela narra:

A família do meu pai morava na mesma cidade, mas não visitava a gente. Depois que o pai do meu pai morreu e a mãe dele já estava velha e doente, minha mãe levô ela pra nossa casa. Aí a gente se deu bem. Não teve mais problema nenhum... ela ficou lá em casa com a gente... minha mãe cuidava dela...

Mariana relata que os pais não passaram pela escola formal e apenas seu pai sabia ler e escrever. Para ela, analfabeta é uma pessoa que não sabe escrever o próprio nome. A condição de analfabeto não é tida como um problema para Mariana, porque “tem coisa que pessoa que tem estudo não sabe fazê e eu sei...”, justifica.

Mariana está se referindo aos saberes que adquiriu fora da escola. Sendo uma mulher nascida e criada no trabalho da “roça”, aprendeu a preparar a terra para o plantio; aprendeu o tempo certo para a semeadura e colheita; aprendeu tear o algodão para confeccionar tapetes e cobertores, com sua avó materna e suas tias. Trabalhou como costureira, babá e empregada doméstica. Esses saberes, Mariana entende que nem todas as pessoas possuem. Seu pai, por exemplo, lidava com a terra e com a comercialização de seus produtos; sua avó materna e tias sabiam trabalhar todo o processo na confecção de tecidos. Mariana conta:

No meu tempo, quando eu era criança, minha avó fazia aquelas manta de algodão pardo e tapete... fazia coberta pra gente. O algodão que era branco podia ser tingido da cor que quisesse... Ela fiava o algodão. Tinha um descaroçadô de algodão... era igualzinho o cilindro de fazê pastel. Os dente do tiar12 era feito de madeira... Minha avó e a minha tia... as duas fiava o algodão... tingia o algodão. Ela ia passando o algodão e a gente ia pegando a sementinha do outro lado. A gente aprendeu com elas... era muito bom. Minha avó fazia, pra gente, coberta. Fazia o colorido que ela queria. Então, eu achava que o povo de antigamente era muito inteligente... Mas minha avó não passô pela escola. Meu pai passô muito poco. Meu pai vivia da roça e a gente trabalhava muito... Plantava arroz, feijão, aipim pra fazê tapioca. A gente vendia pra comprá o sal e o mais a gente tinha. Meu pai saía cedin de casa pra vendê... era muita laranja, muito aipim... Mas meu pai sabia lê muito poco... Minha mãe não sabia escrevê nem o nome. Naquele tempo, professô era difícil... Era só pra filho de fazendero... Mas eu acho que a pessoa que sabe lê hoje em dia tem um bom emprego e sabe se expressá melhó.

Mariana estudou até a terceira série primária, atualmente, quarto ano do ensino fundamental. Ela e os irmãos passaram por pouco tempo pela escola, devido à falta de escolas nas proximidades de sua casa e ao trabalho com os pais, na roça. Explica:

Meus irmão estudaro muito poco, só pra assiná o nome. A gente ajudava na roça e na cozinha. Eu não gostava de cascá abobra casca de caré13. Duía muito a mão da gente. Fui matriculada na escola com onze ano. A gente trabalhava até onze hora e vinha pra casa, tomava banho e ia pra cidade. A escola era na cidade. Frequentei escola até a terceira série, naquele tempo, quando apareceu escola naquele lugá... Foi quando surgiu escola por lá. Não estudei poco só

12 Tear 13 Jacaré.

por causa do trabalho. A professora só dava aula até a terceira série e depois tinha que ir pra cidade e eu não queria ficá na casa da minha tia. Eu até dizia que estudei poco porque era preguiçosa, mas não era isso não. Era muito longe, como daqui até Alcântra. Era um morro e a gente ia descalço mesmo, não tinha ropa de colégio, era ropa comum mesmo. Eu não estudei mais porque a professora dava aula pra sessenta criança, né? Então, a gente não tinha mais oportunidade de aprendê. A gente fazia cópia bem rápido, porque ela tinha que passá no quadro pra outra turma. E era tudo junto ali... Era muito difícil, muito difícil pra ela dá conta de sessenta criança. Ela pegava na mão pra elas cobrir e era muito difícil pra ela. Eu tinha vergonha de perguntá e eu era muito vagarosa. Aquele que era mais esperto, quando ela passava por perto, pegava na mão dela pra perguntá... Eu estudava dentro da igreja. Igreja de Santa Luzia, no Centro de Setubinha.

Mariana fala sem ressentimentos do seu tempo de criança, mesmo tendo que trabalhar duro como adulta. Seu pai cuidava daquelas terras que Mariana, ora acredita que foram compradas pelo pai, ora acredita que os pais eram posseiros. Eram setenta alqueires de terras para agricultura, criação de gado bovino e suíno, e outros animais domésticos. Relata:

A gente não sentia a pobreza, porque era muita fartura. Meu pai plantava muito. Era muito feijão, muito arroz. Era aqueles caxote de arroz que a gente subia de escada, pra entrá lá dentro. Era arroz com casca. A gente não tinha calçado, não tinha ropa nova, mas tinha terra pra trabalha... Até hoje tem muita terra... Meus irmão ainda cria boi por lá. Quando o meu pai vendia laranja e farinha, meu pai comprava corte de pano e minha tia fazia calça comprida pros home, pra mulhé não. Mas eu lembro que a gente usava o uniforme da escola pra saí. Não tinha otra ropa. No começo, a minha casa era de pau a pique, mas tinha quarto pras meninas, quarto pros meninos e quarto da minha mãe e do meu pai. No tempo de laranja, era muita laranja. A gente sacudia o pé de laranja e caía muita coisa. A fartura era muito grande. Mas, minha mãe contava que no tempo da minha vó e da mãe dela, foi muito difícil. A mãe da minha vó viveu no tempo dos escravo e ela foi criada numa fazenda. O chefe da casa tinha muita gente trabalhando pra ele... mandava em todo o mundo. A mulhé dele era mais ruim que ele. Um dia, minha vó saiu pra pegá fruta, quando chegô em casa, sabia que ia apanhá da patroa... Minha vó era criança e chegou do pomá com uma fruta na mão e falô pra patroa: “Bá, olha aqui, trouxe uma fruta pra você”... Aí a patroa saiu jogando tudo em cima dela reclamando: “por que você demorô tanto?”.

Nessa fazenda, a avó de Mariana nasceu, cresceu e teve os filhos. Seus primeiros filhos eram, também, filhos do patrão. Eles nasceram, cresceram e continuaram trabalhando na mesma fazenda. Mariana relata:

Tanto que a gente tem tia escura e tia mais clara, porque era filhas do patrão. Minha mãe não. O irmão mais velho era branco e tinha mais estudo. Quando o patrão da minha mãe morreu, esse irmão vendeu tudo que pôde e fez da casa da fazenda, casa de prostituição. Uma dona, que era prostituta na casa, falô pra minha mãe que não era bom ficá ali... Seu irmão tá fazendo assim, assim, assim... Minha mãe era muito pequena, tinha um irmão de catorze ano e otros

bem pequenininho ainda. Daí fizero uma casinha de folha de palmeira, lá no final da grota... Só depois que minha mãe conheceu meu pai. [...] Meu pai morreu muito cedo e minha mãe tinha uns trinta e pocos anos... Uns trinta e cinco anos, mais ou menos. Minha mãe não casô de novo. Meu pai tava colhendo laranja... Caiu de uma altura muito grande e não tinha médico por perto. Mas ele continuou trabalhando. Aí foi ficando cada vez mais doente. Tinha um vizinho que ia lá em casa e dava banho nele. Depois ele parou de andá... Acho que teve um AVC, um derrame, né? E foi morrendo. Meu pai era muito conselheiro, muito carinhoso... Ah, eu gostava muito do meu pai. Eu era pequenininha e lembro dele cascando cana pra gente. Nunca bateu nos filho, mas minha mãe batia muito... Coitada, ela ficava o dia todo com a criançada fazendo bagunça na cabeça dela.

Mariana saiu de casa aos dezenove anos, rumo à Belo Horizonte, para trabalhar de babá em casa de “uns conhecidos” de sua tia, como diz:

Quando eu saí da minha cidade, eu tinha dezenove pra vinte ano. Eu fui pra cidade, porque a minha tia arrumô um serviço pra mim na casa de uns conhecido. Ela já morava em Belo Horizonte e eu fui trabalhá de babá. Depois, minha tia mudô pro Rio de Janeiro, pra trabalhá numa casa no Flamengo. Ela morava e trabalhava nessa casa. Tempos depois, minha tia casô e veio mora aqui em Manilha. Naquele tempo, Itaboraí era mais roça ainda. E, quando ela ficou doente, eu vim pra tratar dela. Acabei conhecendo o Alberto, por aqui. [...] Meu emprego foi de babá, mas eu lavava, passava, cuidava de criança. Pra trabalhá de babá não precisava tê estudo, mas eu tive colega que conseguiu estudá... otros não. Eu tenho um primo que conseguiu estudá. Ele morava mais perto que eu. Pegava a lamparina... O tempo tava escuro... Era cinco e meia da manhã... Hoje em dia, é advogado em Tiófilo Otoni. Ele veio pra Setubinha e de Setubinha foi pra Tiófilo Otoni. Ele foi criança na roça como eu... Tralhando na roça... Dando duro, né? Eu fico muito feliz por ele... Eu gostava de plantá, gostava de vê crescê... Era muito bonito vê aquelas planta nascê e crescê. Não vejo problema em gosta dessas coisa... Nunca me senti discriminada por isso. Nunca me senti discriminada por tê estudado poco... Nunca. Mas a minha mãe foi discriminada porque não sabia assiná o nome. Minha mãe, quando tava vendo o papel das terra lá, né? O advogado pediu pra ela assiná e ela disse que não sabia, aí o advogado disse: não sabe escrevê nem o nome? Por isso, minha mãe queria que a gente estudasse, pra gente não ficá burra como ela. Pra não precisá chapa o dedo no lugá da assinatura. Graças a Deus, nunca precisei fazê isso. Sei lê e escrevê, apesá de tê muitas letra que ainda confundo. Eu confundo o S com o C... As otra letra não (risos). Procurei a estudá depois de adulta, porque eu queria sabê mais... queria lê a Bíblia. Faz falta estudá mais um poco. Fico chateada quando não sei se é o C ou S (risos). Mas é só com o C e o S (risos). Aí estudei num curso da igreja mesmo. Melhorei bastante. Sei lê e sei escrevê. Eu cheguei fazê um curso pra trabalhá com criança da igreja, aqui em Itaboraí. Foi ótimo. Fui pra casa com meu diploma na mão, toda feliz (risos).

Entrevista da Mariana 1-Nome (fictício) R: Mariana 2-Idade: R: 62 anos. 3-Naturalidade:

R: Estado de Minas Gerais. 4-Profissão:

R: Costureira

5-Seus pais sabiam ler e escrever? R: Não.

6-Até que ano estudaram? R: Não estudaram.

7- Por quê?

R: Acho que não tinha escola por perto.

8-Você sabe dizer o que é uma pessoa analfabeta? R: É uma pessoa que não sabe escrevê o próprio nome. 9-Você acha que ser analfabeto seja um problema? Por quê?

R: Não é problema, porque tem coisa que pessoa que tem estudo não sabe fazê e eu sei. 10-Você considera que saber ler e escrever seja importante?

R: Sim.

11-Caso você tenha vindo do interior do Estado ou de outro Estado: Por que saiu de sua cidade?

R: Saí pra trabalhá. 12-Em que ano saiu? R: 1970, com 19 ano.

13-Qual foi o seu primeiro emprego? R: Empregada doméstica.

14-Havia necessidade de saber ler? R: Não.

15- Você frequentou escola? R: Sim.

16-Quanto tempo você estudou? R: Uns dois ou três ano.

17-Alguma vez, você, se sentiu incomodado por ter frequentado pouco a escola? R: Sim.

18- Você já se sentiu discriminada por isso? R: Não.

19- Conhece alguém que já foi discriminado pelo mesmo motivo? R: Sim.

20- Você sabe ler? R: Alguma coisa 21- Sabe escrever? R: Muito pouco.

22- Você já procurou ou frequentou algum curso de Educação de Adultos (EJA)? Por quê? R: Sim porque eu queria sabê mais... queria lê a Bíblia.

R:

24- Você gostaria de ter estudado mais um pouco? Por quê? R: Sim.

25- Você se considera uma pessoa analfabeta? R: Não.