• Nenhum resultado encontrado

Figura 12 – Carmela

A História de Vida da Carmela começa numa casinha de estuque, com um oratório, muita fome, muito chão para andar e enxada para trabalhar. “Uma vida muito miseráve”, poderia ser o título dessa história, pois essa frase foi repetida inúmeras vezes durante grande

parte da nossa conversa. E não poderia ter sido diferente. Carmela, mesmo sendo uma mulher muito alegre e cheia de vida, fez uma trajetória muito difícil até concluir que “a vida agora tá ótima”. Ela nasceu e foi criada numa cidadezinha do estado do Rio de Janeiro denominada Cachoeiras de Macacu. Atualmente, Carmela diz que “De lá pra cá, a vida mudou muito em Cachoera. Em toda casa tem uma televisão, tem luz e tudo... Mas nem sempre foi assim”.

A dureza do trabalho da roça fez de Carmela uma forte mulher com muito vigor e histórias (algumas vezes tristes) para contar. É hospitaleira e centrada em tudo que faz. Mãe, avó e bisavó, muito amada e respeitada na família. Ótima cozinheira. Carmela é uma mulher bonita, pele morena, baixa estatura, rosto redondo, cabelos lisos e grisalhos pintados de preto e de um sorriso contagiante. Seu sotaque é característico do chamado homem e mulher do campo. Ela é filha do casamento de um caboclo e de uma mulher de pele branca. Eram sete filhos, sendo cinco do casal e dois apenas por parte do pai. Carmela nunca trabalhou fora de casa, mas, desde os sete anos de idade, conheceu o trabalho pesado da enxada, assim como os seus irmãos. Depois dos onze anos, passou a trabalhar seis dias da semana. Conta com indignação:

Desde sete ano de idade, a gente ia trabalhar na roça. Quando fiz onze ano de idade, era obrigada a trabalhá na roça a semana toda. Quando a gente calçô o primeiro sapato, eu tinha onze ano de idade, isso porque eu e minha irmã combinamo com papai o seguinte: ô pai, a gente trabalha segunda, terça, quarta, quinta e a sexta e sábado o sinhô dá pra gente, pra nós ter nossas coisa. A gente tirava lenha, fazia o balão de carvão. Você não sabe o que é balão de carvão, Leni? Não sabe. Nem meus filho sabe. Aí a gente fazia o balãozinho pequeno, meu pai botava fogo, a gente tirava o carvão e ia vendê na cidade. A gente ia pra Japuíba a pé... A pé pra Japuíba. [...] Era uma vida muito miseráve, uma vida muito triste. Quando lembro da minha vida hoje, eu vejo que a minha vida era muito miserável. Muito miserável. A vida agora tá ótima! Naquele tempo, a gente não tinha nada... não tinha ropa, não tinha calçado. Minha mãe pegava saco pra gente vesti e nós andava descalço... era um barraco de estuque, não tinha prato, nem tale. O prato era coité e o garfo era de bambu, porque não tinha nada. Meu irmão chegou a trabalhá nessa fazenda... era pequenininho e trabalhava espremendo limão, porque naquela idade não podia fazê mais coisa. Não aguentava. Depois, trabalhô carregando terra quando tava abrindo pra fazê a estrada.

O pai de Carmela conseguiu emprego de contador em uma fazenda próxima. Ele não sabia ler e nem escrever, como todos da família. “Era uma companhia que prestava serviço na fazenda”, narra, “Meu pai não sabia a letra ‘a’ e trabalhava de contadô. Por que que era contadô? Porque ele conhecia todo mundo lá... então, ele tinha um caderninho... Ele fazia um risquinho quando a pessoa ia trabalhá e uma cruzinha quando a pessoa faltava. Era assim a vida da gente...”.

Embora o trabalho fosse numa fazenda, os empregados da companhia não tinham permissão para o plantio de subsistência. Carmela conta que só puderam plantar e criar galinhas, patos e porcos muitos anos após a chegada da família: “meu pai conseguiu comprá um pedacinho de chão nessa fazenda quando os dono resolveram vendê e aos pouco... meu pai foi comprando pedaço por pedaço de chão”. Contudo, não havia permissão para o plantio e criação de animais domésticos:

Por isso que nós passava fome... Eles era muito ruim... Não deixava plantá nada. Minha mãe quis comprá um espaço bem distante pra podê plantá escundido. Por isso que hoje a gente tem esse sítio, que ficou pra família. Foi de pedacinho em pedacinho que meu pai comprô. Comprô barato, mas era desse jeito. Não podia fazê nada. [...] Quando meu pai levava comida pra companhia, aí todo mundo tinha comida, quando ele não levava, não tinha nada pra comê. Meu pai trabalhô nessa companhia por muitos ano e tinha dia que nós comia couve com sal... posso falá, Leni? Tinha dia que a gente comia couve com sal e outro dia comia banana verde com sal (fala em sussurros). Hoje em dia, a gente tem tanta coisa pra comê. A gente pode até escolhê. Eu passei por isso tudo... Pode tê tido história igual, mas piô que a vida que eu tinha num teve. A nossa vida era muito miseráve... Muito miseráve...

A vida de Carmela foi como a vida de muitas famílias pobres do nosso imenso Brasil. Famílias que criaram seus “minino” com muita dificuldade, em lugares esquecidos pelo poder público, como ela mesma diz,

“Sem nada, nada, nada... [...] Era um lugar que não tinha nada... Não tinha nada. A gente foi criado assim: Não tinha médico... Era curado com erva do mato. Era uma vida muito difícil, a vida da gente ... Mi-se-rá-ve. Ninguém ia a médico... Ninguém estudô. Entendeu? Não tinha nada naquele lugá. Tinha um trilho de trem e o burro passava no trilho carregando mantimento. Nós não tinha nada pra dormi, nem pra vesti. Nós se infiava no saco pra dormi. Devido ao lugar em que moravam, Carmela e seus irmãos não conheceram escola. Nem ao menos, alguém que soubesse o suficiente para ensinar. Um professor leigo ou professora, assim como a Dona Lica, minha primeira professora. Quando Carmela parou para pensar nessa situação, ficou meio constrangida diante de sua história e tentou explicar o que deve ter acontecido, para que a escolarização não aparecesse em sua história de criança:

É... acho que era muito longe, ou naquelas banda nunca tinha ido professô. [...] A vida da gente criança era só trabalho... só trabalho, mermo. [...] Eu não sabia lê... quando eu era criança, não sabia lê e nem escrevê. Aprendi depois de velha. Lá em casa, todo mundo aprendeu depois de velho. Eu aprendi com minha filha mais velha. Aprendi a lê. Escrevê só um poquinho. Acho mais fácil quando é letra de imprensa do que letra de mão. Engraçado, na escola eu

escrevia com letra de mão. Mas sempre tive dificuldade para escrevê. Acho que eu só consigo lê com letra de imprensa por causa da Bíblia.

Durante toda a nossa conversa, Carmela não fez menção aos momentos descontraídos em família, como brincadeiras, festas, danças. Depois que perguntei dessa parte de sua vida, foi só alegria e descontração ao responder:

Lá na roça, tinha muita festa, muito forró. A gente gostava muito de dançá. Eu gostava muito... Tinha festa na casa dos vizinho e era tudo com muito respeito, ninguém pagava nada. Agora tudo é dinheiro. Não tinha bagunça e não podia entrá ninguém bebido. Eles dava pra gente café com beiju. Não podia dançá agarradinho nem com o namorado. Quando tinha festa nas casa, a gente não via bebida. Era muita dança. Eu gostava muito. A nossa diversão também era ladainha e macumba... A gente ia em tudo. A diversão da gente era essa. Era isso que a gente conhecia.

Lembrei-me do meu tempo de criança e das festas a que íamos na casa de um vizinho. As festas eram devotadas aos santos católicos: São João, São Pedro e Santo Antônio, de junho a julho. A família do meu vizinho era numerosa. Na sala, havia um oratório, bancos de madeira nos cantos e uma mesa grande, também de madeira, com doces e bolos feitos em casa. Quase todos os convidados ficavam assentados nas cadeiras e nos bancos. De vez em quando, serviam, em copinhos pequenos de vidro, uma bebida para os adultos. As crianças ficavam ao redor de uma imensa fogueira, nos fundos do quintal. A diversão consistia em jogar, na fogueira, aipim e batata doce para assar. Antes que queimassem, meu pai e outros adultos retiravam e repartiam com a criançada, que comia ainda quente. Quase não tínhamos tempo de lambuzar as batatas e os aipins no melado. A ladainha também fazia parte do evento. Depois, os adultos dançavam até a madrugada. Meus pais sempre gostavam desses encontros: todo mundo de roupa nova, cabelos penteados, mas nem todos calçados.

Lá em casa era desse jeito: não faltava comida, não faltavam causos, cantoria e nem danças. Roupas e sapatos novos, só uma vez por ano, quando minha mãe insistia em comprar. Ela fazia tiras do papel de embrulho de pão e ia medindo pé por pé dos filhos. O uniforme da escola era usado também para ocasiões festivas. Depois que o meu pai comprou uma vitrola, não precisava mais de dias marcados para festas. A vitrola estava sempre ligada e ele dançando com minha mãe e uma filha de cada vez. Lá, em casa, podia faltar outras coisas, mas não faltava o som da vitrola do meu pai. Com essa história da Carmela posso ouvir até o Martinho cantando:

Lá na Roça (Martinho da Vila) Bendito, louvado seja Bendito, louvado seja

Lá na roça, no mês de Maria (Bendito, louvado seja) Festejamos de noite e de dia

Na barraca do Zebedeu O leiloeiro sou eu

Então quando é noite de luar Se ouve o cantador a cantar E todo mês de Maria Na roça temos alegria Festejamos em todo o arraiá Cantador cantando,

Crianças brincando,

Outros na capela de joelhos rezando Vamos levando a vida

Que Deus do céu mandou Agradecendo a vida

Vou me embora já desta cidade Vou pra roça buscar liberdade Aqui nem posso respirar Ai, que saudade de lá

Aqui se mata até por dinheiro O povo da roça é mais maneiro Lá a gente é mais gente E a felicidade

Lá é total e permanente Cantador cantando, Violeiros tocando,

Outros na capela de joelhos rezando Agradecendo a vida

Que Deus do céu mandou Vamos levando a vida Que Deus do céu mandou Que Deus do céu mandou, ô ô ô Que Deus do céu mandou, ô ô ô ô Que Deus do céu mandou, ô ô ô ô

Além das festas, Carmela conta que havia outra diversão muito interessante naquele lugarejo: as luzes acesas dos faróis dos poucos carros que passavam na estrada:

Era desse jeito que a gente vivia... Nunca saía de lá pra nada. Lá não tinha carro, nem ônibus. Fui andá de ônibus, pela primeira vez, quando tinha catorze ano. Eu não sabia nada. A gente gostava de ir pra estrada só pra vê os carro passando. A luz era muito bonita. A gente gostava. Era assim: a gente corria pra rua, ficava esperando os carro... ia passando e a gente olhando... era muito bonito. Só saí de lá depois de casada, muito tempo depois.

Pois é, o tempo de criança foi embora e chegou o dia da família conhecer o namorado de Carmela. Contudo, ela relata que não foi fácil convencer o pai que a filha queria se casar:

Casei com dezenove ano. Essa história é engraçada. Meu pai não queria o meu casamento. Dizia que o meu noivo não ia dá conta de me sustentá. Mas, depois, era só elogio pra ele (risos). Fui morá em Santíssimo, no Rio de Janeiro... A vida continuou difícil, mas um poquinho melhô que o meu tempo de soteira. Nessa época, eu ainda não lia nada e nem escrevia. Era muito ruim quando alguém descobria que eu era anarfabeta. Meu cunhado zombô muito de mim, por causa disso. Por não sabê nada, a gente leva nome de burro... Na minha carteira profissional escreveram anarfabeta, Muito feio isso, né? Eu não sabia escrevê meu nome. Eu usava o meu dedo e o meu cunhado gostava de falá sempre isso: ‘olha só que feio, esse anarfabeto na sua carteira’. Ele sempre foi assim, coitado.

Para Carmela, há problema em ser analfabeto quando a pessoa almeja um emprego, pois “fica muito difícil sem sabê lê e escrevê”. A resposta de Carmela está de acordo com o que experimentou na vida:

Nunca trabalhei fora de casa... mas depois fiquei muito incomodada por não tê estudado. Muito incomodada... Não que fosse problema... eu acredito que não é problema sê anarfabeto. É um problema sim, pra trabalhá fora. Você vai arrumá um trabalho, mas um emprego é muito difícil. Fica muito difícil pra gente arrumá um emprego... fica muito difícil até pra pegá condução. Conforme eu não sabia nem lê o nome do ônibu, as vezes perguntava pros otro pra podê pegá os ônibu, mas enquanto eu era criança... era nova, não sabia lê e escrevê. Eu me sentia uma pessoa inútil, porque não sabia lê. Quando ia levá meus filho na escola, pedia pra alguém me avisá... me avisá quando vinha o ônibu. Eu não estudei por falta de colégio, mas, na minha época, tinha gente que podia estudá e os pai dizia que era pra escrevê carta pra namorado. Meu pai mermo dizia isso. Meu pai era muito rígido. Só fui pra escola depois que meus filho casaro. Eu queria estudá mais um poco, pra aprendê mais, né? Eu não aprendi mais, porque a minha filha mais velha parô de dá aula... aí eu parei. Mas eu queria aprendê a lê a minha Bíblia... agora sei um poquinho. Eu ia pra igreja e lá eu via todo mundo lendo e eu não sabia. Eu via que eles ficava com um livrinho na mão pra cantá e eu achava aquilo muito interessante. Eu pensava: será que eles tão lendo mermo? Eu só queria lê a minha Bíblia e aqueles hino, como esse aqui.

Carmela Cantarolou:

Saudosa Lembrança (Harpa Cristã)

Oh! que saudosa lembrança Tenho de ti, ó Sião

Terra que eu tanto amo Pois és do meu coração Eu para ti voarei

Quando o Senhor meu voltar Pois Ele foi para o céu E breve vem me buscar

Sim, eu porfiarei por essa terra de além E lá terminarei as muitas lutas de aquém Lá está meu bom Senhor, ao qual eu desejo ver Ele é tudo p'ra mim, e sem Ele não posso viver Bela, mui bela, é a esperança

Dos que vigiam por ti Pois eles recebem força Que só se encontra ali Os que procuram chegar Ao teu regaço, ó Sião Livres serão de pecar E de toda a tentação Diz a Sagrada Escritura Que são formosos os pés Daqueles que boas novas Levam para os infiéis E, se tão belo é falar Dessas grandezas, aqui Que não será o gozar A graça que existe ali! E concluiu:

Por isso fui aprendê na escola que a minha filha dava aula de noite. Hoje eu não sou mais anarfabeta, sô outra pessoa, sô rica... sô rica. Até Cachoera de Macacu mudô. Agora todo mundo lá trabalha de dia e de noite assisti televisão. Tá igualzinho a gente aqui, com internet, celular e tudo mais. Tá tudo mudado por lá.

Após a entrevista, Carmela preparou uma mesa para o lanche da tarde: café, pão com manteiga, biscoitos salgados e chocolate quente. Depois, foi ao quarto e voltou com um hinário cristão e falou “tá vendo esse livrinho preto, Leni? Agora consigo lê todos hino daqui”. Entrevista da Carmela 1-Nome (fictício) R: Carmela 2-Idade: R: 75 anos. 3-Naturalidade:

R: Estado do Rio de Janeiro 4-Profissão:

R: Do lar

R: Não.

6-Até que ano estudaram? R: Não sei.

7-Por quê?

R: Não tinha colégio.

8-Você sabe dizer o que é uma pessoa analfabeta? R: Não sabê lê e não sabê escrevê.

9-Você acha que ser analfabeto é um problema? Por quê? R: Não. Só pra quem quer trabalhá fora de casa.

10-Você considera que saber ler e escrever é importante? R: Sim.

11-Caso você tenha vindo do interior do Estado ou de outro Estado: Por que saiu de sua Cidade?

R: Saí de minha cidade muito depois de casada. Não lembro o motivo. 12-Em que ano saiu?

R: Não lembro.

13-Qual foi o seu primeiro emprego?

R: Nunca trabalhei fora. Quando era criança, trabalhava na roça e em casa. 14-Havia necessidade de saber ler?

R: Não.

15- Você frequentou escola? R: Só depois de “velha”.

16-Quanto tempo você estudou? R: Um ano.

17-Alguma vez, você, se sentiu incomodada por ter frequentado pouco a escola, ou não ter frequentado?

R: Muito. Me sentia inútil.

18- Você já se sentiu discriminada por isso?

R:Sim. Meu cunhado gostava de lembrar sempre que eu era “anarfabeta”. Fazia piadinha. 19- Conhece alguém que já foi discriminado pelo mesmo motivo?

R: Sim.

20- Você sabe ler? R: Um pouco. 21- Sabe escrever? R: Muito pouco.

22- Você já procurou ou frequentou algum curso de Educação de Adultos (EJA)? Por quê? R: Sim. Pra aprendê mais. Por causa da Bíblia

23- Se não procurou e nem frequentou a EJA: Por quê? R:.

24- Você gostaria de ter estudado mais um pouco? Por quê? R: Sim, pra melhorá na leitura.

25- Você se considera uma pessoa analfabeta? R: Não. Porque agora já sei lê.

3.5 CONHEÇO GENTE QUE TEM ESTUDO, MAS NÃO TEM EDUCAÇÃO – HISTÓRIA DE