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O Agravo de Instrumento nº 1.371.230-CE, julgado em 15 de março de 2011 pelo Superior Tribunal de Justiça, tratava de recurso interposto contra decisão interlocutória proferida por Juiz Federal proposta por empresa inabilitada em licitação envolvendo recursos externos provenientes do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. A questão gira em torno da inclusão do BID no polo passivo como litisconsorte necessário, uma vez que foi alegada a sua participação no julgamento das propostas, e pela exigência da aplicação de suas normas para a aquisição de bens e contratação de obras.

Conforme se vê do item 1.11 do documento intitulado "Política para Aquisição de Bens e contratação de obras financiadas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento" (fl. 20), ao BID seria dado revisar os procedimentos de aquisição, documentos, avaliações de proposta, recomendações de adjudicação e contratos, de maneira a assegurar que a licitação fosse efetuada de acordo com os procedimentos acordados (Ag 1.371.230-CE, p. 9, grifo nosso).

Além disso, antes da adjudicação pela autoridade superior do órgão administrativo do Poder Executivo do Estado do Ceará, previa-se o posicionamento do BID em relação à licitação, podendo negar o julgamento ou concordar por meio da “não objeção”.

Mais ainda, no Apêndice 1 daquele mesmo documento, item 2 (c), prevê-se a obrigação de o mutuário (no caso, o Estado do Ceará) fornecer ao Banco, antes mesmo da decisão final referente à adjudicação do objeto da licitação, um relatório pormenorizado contendo a avaliação do resultado e outras informações, a partir do qual o BID poderia "concluir pela inadequação da adjudicação proposta" ou emitir a sua correspondente "não objeção". (fl. 49) (Ag 1.371.230-CE, p. 9, grifo nosso).

Portanto, dois pontos centrais foram alegados: a exigência de normas específicas de

licitação e a emissão da não objeção pelo BID. A parte autora entendeu que a participação

do BID era evidente no processo licitatório realizado pelo Estado do Ceará, em que a atuação do BID era superior ao simples encaminhamento de recurso. Exigia-se, portanto, a adequação do certame às suas regras de julgamento. A decisão da autoridade superior do processo licitatório ficava subordinada ao julgamento final do BID, que poderia discordar de todo o certame ou mesmo concluir pelo prosseguimento da adjudicação do objeto da licitação ao

proponente melhor classificado (“não objeção”).

Ressalta-se que o teor do permissivo legal no art. 42, §5º, Lei no 8.666/93 não foi objeto de questão, reconhecendo a possibilidade de exigência de regras alienígenas à licitação em território brasileiro.

O Ministro Relator Arnaldo Esteves Lima, em seu voto, analisa se houve a participação do BID na classificação ou desclassificação da licitante impugnante e citou a resposta do BID:

Certamente que o BID revisa procedimentos, contratos, editais; por óbvio que verifica a congruência dos referidos documentos às suas políticas e à legislação local. […] Mas a atividade do organismo tem caráter nitidamente homologatório: recebe os documentos e informações do agente licitante/mutuário, verifica se estão em termos com as normas e políticas internas e legislação local e, verificada a estrita observância, não se opõe. Se apurada a existência de alguma desarmonia, o BID determina a regularização; em casos extremos, inviável a correção, dá abjeção à adjudicação, exercitando sua prerrogativa de só financiar se tudo estiver de absoluto acordo com a lei e sua regulamentação interna. […] No caso específico destes autos, a Comissão de licitação que coordena a LIL nº 01/2009/CCC/SEFAZ/CE promoveu o detalhamento de todos os dados, documentos e demais circunstâncias que permearam o processo. Baseando-se em estudos diversos, a Comissão informou ao BID que um determinado consórcio havia se sagrado vencedor. A função do BID foi averiguar se documentos e procedimentos estavam em consonância com

o edital, aditivo, impugnações, política e normas internas. E estavam, daí sua "não objeção". Não foi o BID que determinou a exclusão desta ou de outra empresa participante do processo. (Ag 1.371.230-CE, p. 11- 12, grifo nosso).

Observa-se que o BID alegou que a sua participação no certame era de caráter homologatório, ou seja, não correspondia ao Banco realizar o julgamento de habilitar ou inabilitar as empresas, mas tão-somente de verificar o procedimento e os documentos apresentados conforme suas regras e a legislação aplicada no Brasil.

O eminente Ministro Relator concordou com o posicionamento do BID, incluindo a afirmação de que a empresa foi inabilitada por descumprimento de regra do próprio edital, e não por julgamento do BID pela sua inabilitação210. Tratou-se de decisão técnica de julgamento da própria Comissão de Licitação, cabendo ao BID apenas a função de financiamento e de fiscalização das etapas do processo licitatório.

Segundo entendimento do Ministro Relator, a participação do BID consistiria apenas como um órgão fiscalizador, ao que se poderia comparar com o Tribunal de Contas, cuja função é primar pela regularidade dos certames que envolvem recursos públicos.

Dessa forma, entendeu o Ministro Relator que o BID não incidiu na relação jurídica de direito material entre Estado do Ceará e licitante impugnante, não sendo justificável a presença do Banco no polo passivo da lide.

Da mesma forma, o Ministro corroborou com a decisão proferida pela Juíza Federal estabelecendo duas relações jurídicas no certame: a primeira entre licitantes e o Estado do Ceará, regidos pelas normas do edital; e entre o Estado do Ceará e o BID, regidos pelos termos do acordo de empréstimo firmado, estando este submetido às normas de Direito Público Internacional. Do acordo de empréstimo, cabiam ao Estado do Ceará a implementação do projeto e a realização do certame, ao passo que o Banco era responsável

210“A decisão administrativa tomada pela Comissão da licitação, e aqui me parece ser o ponto nodal da

questão, ainda que passível de melhor exame pelo Poder Judiciário diante dos fortes argumentos de nulidade apresentados pela empresa EBCO, não sofreu qualquer ingerência por parte do BID”. (Ag 1.371.230-CE, p. 12, grifo nosso).

pela concessão do recurso e fiscalização da implementação, cujo objetivo era garantir que o recurso fosse destinado unicamente para o fim pactuado211.

Dessa forma, o julgado negou a participação do BID como litisconsórcio necessário, ou seja, não foi verificada nenhuma participação do Banco no julgamento de inabilitação da licitante autora.

Apesar de não ter sido questão debatida no julgado, observa-se que o Ministro Relator, ao citar a decisão da Juíza Federal, estabelece duas relações jurídicas em licitações com recursos externos: relação entre Administração Pública e licitantes e relação entre

Administração Pública e Organização Internacional. Somente para a segunda ficou

expressa a subordinação ao acordo de empréstimo e, como consequência, às normas de Direito Internacional. Todavia, uma vez que a Lei de Licitações, em seu art. 42, §5º, permite a utilização de normas estrangeiras, a relação entre licitante e Administração Pública reger-se-á pelas regras externas exigíveis pelas organizações internacionais de cooperação financeira.

Nesse ponto, ocorrendo conflito quanto à decisão de julgamento, ou de interpretação das regras, as disposições do acordo de empréstimo também seriam utilizadas para solucionar o conflito de aplicação normativa.

Pela interpretação da hierarquia de normas, os tratados que não se reportam a questões de direitos humanos são equiparados a leis ordinárias e, portanto, submetidos à primazia da Constituição Federal. A exemplo do julgado (Ag nº 1.371.230-CE), a questão foi decidida em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro.

Observa-se que na relação jurídica entre Administração Pública e licitantes, mesmo em licitações com regras externas, aplica-se o ordenamento jurídico brasileiro. Não se questionou ou mesmo se considerou se a questão deveria ser apreciada pela organização internacional, uma vez que caberia a esta a competência de fiscalização e regularidade do processo licitatório.

211“enquanto a relação jurídica entre a Empresa Autora e o Estado do Ceará rege-se pelos documentos de

licitação, tais instrumentos definitivamente não vinculam o BID. A relação por ele entabulada com o Estado do Ceará rege-se unicamente pelo contrato de empréstimo por eles firmado, devendo observância às normas de Direito Público Internacional. Ainda que o objeto da licitação esteja subordinado ao financiamento por recursos do BID, não há nenhum liame jurídico estabelecido entre o BID e qualquer dos participantes da licitação. Eventual querela levantada por estes deve ser dirimida apenas com o Estado do Ceará, sem que, de forma alguma, a sua solução reflita impacto na relação estabelecida entre o BID e aquele ente federativo. [...] O excerto da GN 2349, que é o INCOTERM (Internacional Comercial Terms), aplicado pelo BID em todas as contratações internacionais que efetua nas Américas, prevê que compete ao mutuário a responsabilidade pela implementação do projeto e, por conseguinte, pela adjudicação e administração de contratos abrangidos pelo projeto. Por sua vez, o Banco, de acordo com o seu Convênio Constitutivo, tomará as medidas necessárias para assegurar que os produtos de qualquer empréstimo que conceda ou garanta, ou de que tenha participação, se destinem unicamente aos fins para os quais o empréstimo tenha sido concedido, dando

Poder-se-ia questionar se haveria uma instância de decisão quanto à discordância das decisões da Administração Pública baseadas em regras externas (estipulação de órgão arbitral específico), ou mesmo a necessidade de aplicar interpretação do BID. No julgado, não se observou a alegação pela parte autora de observância de nenhuma regra internacional a subsidiar as previsões editalícias estrangeiras.

Restam também considerações sobre qual seria o direito a ser aplicado na relação jurídica entre Administração Pública e licitantes. Além de as normas serem de origem externa, caberia também a análise inicial do acordo de financiamento entre o Estado do Ceará e o BID. A parte autora alegou a previsão de fiscalização do Banco por meio dos termos do acordo de empréstimo, e o Ministro Relator a apreciou devidamente. Neste ponto, as disposições do acordo foram interpretadas não conforme as regras de Direito Internacional, mas conforme o ordenamento jurídico brasileiro. Não houve a citação das regras de interpretação contidas na Convenção de Viena sobre Tratados, de 1969, devidamente ratificada pelo Brasil (Decreto nº 7.030/2009). Seria possível inferir, conforme o julgado, que a relação jurídica entre Administração Pública e licitantes seria regida pelo direito interno, argumento este que não prospera em virtude da existência de regras de interpretação de tratados internacionais com aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Com a devida vênia, o julgado não tratou de clarificar o entendimento sobre quais regras seriam aplicadas na relação entre Administração Pública e licitantes. Corrobora-se a justificativa de aplicação das regras de Direito Internacional para a relação jurídica entre Estado e Organização Internacional, em que o ato jurídico em questão é o acordo de empréstimo, entendido este como uma espécie de tratado internacional, sob fundamento no

art. 2º, 1, “a)”, na Convenção de Viena sobre Tratados, de 1969, em que o termo tratado é

entendimento qualquer que seja a sua denominação específica. Consistindo em tratado, as regras de Direito Internacional devem ser aplicadas ao caso. Quanto à segunda relação jurídica, entre Administração Pública e licitantes, o ato jurídico em questão é edital de licitação derivado de regra proveniente de organização internacional.

Conforme o art. 42, §5º, da Lei Brasileira de Licitações, as organizações internacionais financiadoras podem aplicar normas externas, afastando a legislação brasileira, desde que cumpridas as três exigências legais: (i) as normas externas devem ser exigíveis no acordo de empréstimo; (ii) devem obedecer ao princípio do julgamento objetivo; e (iii) devem constar de despacho motivado do órgão executor do contrato, e que este seja ratificado pela autoridade superior.

A aplicação deveria, portanto, respeitar também a interpretação do Direito Internacional, ressalvadas as exigências, as quais permitem a aplicação dos princípios gerais da Administração Pública presentes na Constituição Brasileira. Poder-se-iam interpretar as exigências no permissivo legal da Lei Brasileira de Licitações como exceções de aplicação do Direito Internacional. Dessa forma, mesmo cabendo a solução pelo Poder Judiciário brasileiro, uma vez que não há juízo arbitral exigível, deveriam ser interpretadas conforme dispõe o Direito Internacional.