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O Agravo de Instrumento nº 627.913-DF, julgado em 7 de outubro de 2004 pelo Superior Tribunal de Justiça, Ministra Relatora Eliana Calmon, tratava de agravo interposto contra decisão interlocutória proferida por Juiz Federal de 1ª Instância em ação promovida por pessoa jurídica contra Organizações das Nações Unidas, em relação ao procedimento de concorrência pública realizada por meio de cooperação financeira internacional, utilizando-se

de regras editalícias do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID.

A Juíza Federal da 4ª Vara do Distrito Federal concedeu liminar para suspender a entrega e abertura dos envelopes de licitação com recursos de cooperação técnica. O entendimento da magistrada era pela aplicação da Lei brasileira (Lei nº 8.666/93) e das disposições constitucionais no art. 37, CR88, bem como as do art. 9º, §§1º e 2º, da Lei de Introdução do Código Civil (Lei 12.376/2010 que alterou a emenda do Decreto-Lei nº 4.657/1942 para Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)201.

Segundo a magistrada, há patente ilegalidade no edital, na parte em que consigna a aplicabilidade dos procedimentos para a concorrência na forma indicada pelo BID e pelo PNUD, quando, na verdade, a licitação deveria obedecer aos ditames da Lei 8.666/93, conforme precedente do STJ, no REsp 215.988 (decisão de fls. 46/48, dos presentes autos) (Ag 627.913-DF, p. 3, grifo nosso).

Para tanto, a Juíza Federal cita o REsp 215.988/PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, Ministro Relator Humberto Gomes de Barros, em 04 de setembro de 2001. Tratou-se o julgado de contrato de prestação de serviços de transporte rodoviário aplicando disposições do tratado de ITAIPU202, cujos países signatários são Brasil e Paraguai, o qual dispõe sobre a regência especial para licitações e contratações pela hidroelétrica binacional. Fundamenta pela utilização de norma especial para licitação prevista em tratado celebrado com o Brasil, que possui força de lei federal (equiparação das normas internacionais a leis ordinárias), o que afasta a aplicação do Decreto-Lei 2.300/86 e da atual legislação brasileira sobre licitações (Lei nº 8.666/93).

Contudo, o Ministro Relator Humberto Gomes de Barros afirmou que nenhum dos dispositivos do tratado de ITAIPU ou do seu Estatuto autorizava o entendimento de que haveria norma especial a reger licitações e contratações. Seu voto remetia ao disposto no art. 9º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (ex-Lei de Introdução do Código Civil), no qual as obrigações contratuais obedecem à lei do local em que reside o proponente. Como o tratado de ITAIPU institui como sede da hidrelétrica Brasília e

201 Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. §1º Destinando-

se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato. §2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.

Assunção203, as normas a reger as contratações seriam as brasileiras204. Afirmava a aplicação de normas brasileiras, o procedimento licitatório deveria reger-se pelo Decreto-Lei nº 2.300/1986 na época, revogado atualmente pela Lei nº 8.666/93.

Observa-se que a decisão nega a aplicação de normas internacionais sobre licitações e contratações pelo fundamento da aplicação da lei a reger as obrigações resultantes do contrato, que obedece a do lugar em que residir o proponente, ou mesmo a lei do país em que se constituírem as obrigações (art. 9º, §§2º, Decreto-Lei nº 4.657/1942)205.

Retornando ao Ag 627.913-DF, a magistrada da Justiça Federal manteve entendimento de afastar imunidade absoluta à jurisdição brasileira frente a pedido de reconsideração da Organização das Nações Unidas – ONU, conforme o art. 88, I e II, CPC206.

Em sua defesa, a ONU alegou imunidade de jurisdição conforme a Convenção de Londres, assinada em 13 de fevereiro de 1946 (Decreto nº 27.784/1950), bem como ressaltou a previsão do art. 42, §5º, da Lei 8.666/93, no qual a aquisição de equipamentos eletrônicos, no montante específico, exige procedimento de compra especial, definido pelo BID, que figura como financiador do programa do PNUD no Estado do Paraná207.

O voto da Ministra Relatora Eliana Calmon analisa que não há haveres ou bens da ONU e não reconhece a imunidade de jurisdição ou de execução, conforme a Convenção de Londres de 1946. Além disso, como se trata de empréstimo internacional, entende que há compromisso do Estado do Paraná em restituir o valor em prazo futuro com acréscimo de juros, correspondendo, portanto, ao comprometimento de recursos de responsabilidade do

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ARTIGO XIX. O foro da ITAIPU, relativamente às pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas ou com sede no Brasil ou no Paraguai, será, respectivamente, o de Brasília e o de Assunção. Para tanto, cada Alta Parte Contratante aplicará sua própria legislação, tendo em conta as disposições do presente Tratado e de seus Anexos (grifo nosso).

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Desta forma, proponente do contrato a binacional ITAIPU, cujas sedes, segundo o artigo IV do Tratado que a instituiu, localizam-se em Brasília e Assunção, resta patente a aplicação da lei brasileira para regular as obrigações dele surgidas (REsp 215.988-PR, p. 5).

205 A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), na constituição de obrigações, define que se

aplica a lei do país em que se constituírem, admitindo aplicação da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato. Portanto, caberia a análise deste dispositivo em relação às normas e diretrizes aplicadas pelas organizações de cooperação financeira em licitações celebradas no Brasil.

206 Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando: I - o réu, qualquer que seja a sua

nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil; II - no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação.

207“3) é inaplicável a lei de licitações brasileira à hipótese dos autos porque a aquisição dos bens objeto da

concorrência origina-se do Projeto BRA/03/036, acordo suplementar firmado entre a ONU/PNUD e a República Federativa do Brasil, mais especificamente a pedido do Estado do Paraná, o qual tem como escopo promover a inclusão digital na educação básica daquele Estado. O procedimento de compra de computadores é apenas uma das fases do projeto e ficou a cargo da ONU/PNUD, segundo o art. 9º do PRODOC BRA/03/036, devendo ser realizado com recursos provenientes do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento (Acordo de Empréstimo 950 OC/BR), o qual exige, para compras acima de US$ 350.000,00, que sejam observadas suas próprias regras de seleção, sendo que a própria Lei 8.666/93, no art. 42, § 5º, autoriza a adoção de condições e normas dos organismos internacionais, quando decorrentes de acordos internacionais, na licitação para aquisição de bens;” (Ag 627.913-DF, p. 4-5, grifo nosso).

Estado brasileiro. Defendeu a Ministra Relatora a aplicação dos princípios do art. 37, CR/88 e das regras editalícias da Lei nº 8.666/93. Ao citar o art. 42, §5º, Lei nº 8.666/93, afirma que, apesar da autorização da dispensa de certas normas previstas na legislação brasileira, não poderá haver conflito das regras internacionais com o princípio do julgamento objetivo, nem mesmo evitar a aplicação dos princípios constitucionais da Administração Pública (art. 37,

caput, CR/88).

O dispositivo transcrito [art. 42, §5º, Lei nº 8.666/93], apesar de autorizar a dispensa de algumas das regras previstas da lei de licitações, bem como a adoção de outros critérios de julgamento fornecidos pelos organismos financeiros como exigência para a obtenção do financiamento, deixa claro Superior Tribunal de Justiça que essas condições não podem conflitar com o princípio do julgamento objetivo, não sendo demais alertar que disso também não pode implicar recusa no cumprimento dos princípios constitucionais previstos no caput do art. 37, da CF/88, a saber: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, como bem preleciona Marçal Justen Filho, em "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Ed. Dialética, 8ª ed., pág. 426.” (Ag 627.913-DF, p. 4-5, grifo nosso).

O julgado não apresenta uma linha de raciocínio exata, pois permite a aplicação em parte de norma externa e não discrimina qual parte deveria ser mantida, em relação à legislação geral de licitações brasileiras. Foi citada somente a necessidade de observância do princípio do julgamento objetivo durante o certame. Contudo, o princípio alegado poderia se encontrar em total observação mesmo se disposto em norma externa diferente da literalidade da legislação brasileira. O objetivo da reserva expressa no art. 42, §5º da Lei Geral de Licitações é assegurar que os princípios norteadores do Direito Público sejam observados.