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O RE 466.343/SP, julgado pelo Relator Ministro Cezar Peluso, em 2008, afirma que a prisão civil do depositário infiel foi considerada absolutamente inadmissível, dando nova interpretação ao Pacto de São José na Costa Rica e à hierarquia de normas de direitos humanos inseridas por tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro109.

No voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 466.343/SP, traçam-se as principais interpretações sobre a hierarquia das normas e convenções sobre direitos humanos em relação ao ordenamento jurídico brasileiro. Em específico, a análise do art. 7º, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos110, que proíbe a prisão civil decorrente de obrigações contratuais, exceto para o caso do alimentante inadimplente. O julgado alega inconstitucionalidade do próprio art. 5º, LXVII, CR/88, que proíbe a prisão civil por dívida, exceto no caso de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.

Essa disposição constitucional deu ensejo a uma instigante discussão doutrinária e jurisprudencial - também observada no direito comparado - sobre o status normativo dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, a qual pode ser sistematizada em quatro correntes principais, a saber:

a) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos;

b) o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais;

c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional;

d) por fim, a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos (RE 466.343/SP, p. 1137, grifo nosso).

Segundo o mesmo Ministro, a primeira interpretação – natureza supraconstitucional dos tratados sobre direitos humanos – seria difícil de adequar ao sistema brasileiro de supremacia formal e material da Constituição sobre todo o seu ordenamento jurídico, e mesmo anularia a própria possibilidade do controle da constitucionalidade dos tratados internacionais.

109 A Súmula Vinculante nº 25 do STF confirmou o posicionamento: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel,

qualquer que seja a modalidade do depósito”. Bem como a Súmula nº 419 do STJ: “Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel”.

110“7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Esse princípio não limita os mandados de autoridade judiciária

competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992).

A segunda interpretação baseia-se no art. 5º, §§1º e 2º, CR/88, no qual, ao possibilitar a incorporação de novos direitos por meio de tratados, a Constituição permitiria atribuir às convenções de direitos humanos a hierarquia de norma constitucional (art. 5º, §2º, CR/88), sendo-lhes assegurada a aplicabilidade imediata nos planos nacional e internacional a partir do ato de ratificação e dispensada qualquer intermediação legislativa (art. 5º, §1º, CR/88). Contudo, o Ministro esvazia seu fundamento ao remeter ao art. 5º, §3º, CR/88, fruto da Emenda Constitucional nº 45/2004, que equiparou os tratados sobre direitos humanos a emendas constitucionais, desde que submetidos a processo especial de aprovação no Congresso Nacional, que corresponde ao das emendas constitucionais. Portanto, os tratados já ratificados pelo Brasil anteriores à EC nº 45/2004 não podem ser comparados às normas constitucionais. Por outro lado, a referida emenda constitucional ressaltou que os tratados sobre direitos humanos possuem caráter privilegiado em relação aos demais.

Encadeia o voto do Ministro Gilmar Mendes à terceira interpretação, que equivale os tratados sobre direitos humanos a leis ordinárias. Afirma que não mais prospera o entendimento consubstanciado no RE 80.004-SE, julgado em 1977, no qual as antinomias entre direito interno e internacional seriam resolvidos pela regra da lex posterior derrogat legi

priori. O mesmo posicionamento foi ratificado pelo julgado 1.480-3/DF, julgado em 1997

pelo Rel. Min. Celso de Mello, que também preconizava a paridade normativa entre norma interna e internacional. Contudo, o art. 5º, §§ 1º e 2º, CR/88, estipulou posicionamento aberto para direitos e garantias fundamentais, dando contorno superior ao dos tratados ordinários em que o Brasil seja parte.

Por fim, o Ministro Gilmar Mendes entende que a interpretação que atribui a supralegalidade dos tratados de direitos humanos reconheceria seu caráter especial em relação aos demais tratados ordinários, bem como não desconsiderava a sua natureza de normas infraconstitucionais111.

Aos tratados e convenções internacionais que não dispõem sobre direitos humanos, prevalece o entendimento do Supremo Tribunal Federal de equiparação à lei ordinária, em conformidade com os julgados RE 80004-SE e ADI 1.480-3 – DF, incluso também o RE 466.343-SP que afasta o posicionamento supralegal dos tratados internacionais que versam matéria ordinária. A regra da equiparação entre a norma internacional e a lei ordinária reconhece a aplicação da regra de solução de antinomia da lex posterior derrogat legi priori e

111

Ressalta o eminente Ministro que a jurisprudência mais antiga do STF sobre a hierarquia dos tratados em relação ao ordenamento jurídico brasileiro era pela impossibilidade de revogação de tratado por lei interna posterior, caracterizada pelo monismo com prevalência do Direito Internacional.

da submissão ao controle de constitucionalidade dos tratados pelo Supremo Tribunal Federal

(art. 102, III, “b”, CR/88)112 .

A par do julgado apresentado, observou-se que, em tratados sobre direitos humanos, houve o reconhecimento de sua supralegalidade e, caso aprovado como emenda constitucional, a sua constitucionalidade. Contudo, essa evolução na jurisprudência da Corte Constitucional brasileira não se estende aos demais tratados internacionais, prevalecendo o princípio da supremacia constitucional. Por outro lado, é mister ressaltar um processo lento e paulatino de normatização internacional que passa a ser incorporada pelo sistema jurídico brasileiro, relativizando o conceito de primado da norma constitucional.

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Conforme entendimento do Ministro Celso Mello: “As razões invocadas neste julgamento, no entanto, Senhora Presidente, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de "supralegalidade", como sustenta o eminente Ministro GILMAR MENDES, ou impregnadas de natureza constitucional, como me inclino a reconhecer), e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com as leis ordinárias)” (RE 466.343/SP, p. 1230, grifo nosso).

4 HIERARQUIA DE NORMAS NO DIREITO COMPARADO: PRIMAZIA DAS NORMAS COMUNITÁRIAS EUROPEIAS SOBRE AS NORMAS NACIONAIS

A União Europeia consiste em uma organização internacional formada no início da segunda metade do século XX, cujos esforços de integração, não apenas econômica e monetária, mas principalmente política e cultural, expandiram-se de forma sistemática pelo viés geográfico (28 Estados-membros) e jurídico, por meio da consolidação das competências das Instituições europeias e papel fundamental das sentenças do Tribunal de Justiça da União Europeia em reconhecer competências e princípios de caráter comunitário113.

É possível verificar, já na década de 1940, o estabelecimento da Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE), em 1948 (posteriormente transformada em Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE, em 1960, com a participação de países não europeus, tais como os Estados Unidos e Canadá), que possuía caráter de cooperação na área econômica, ao passo que, em 1949, surgia o Conselho Europeu de caráter eminentemente político. Contudo, a União Europeia surgiu pelos esforços de criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951 (Tratado de Paris), e da Comunidade Econômica Europeia (CEE) e Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA ou EURATOM), ambos em 1957 (Tratado de Roma). A partir da celebração dos tratados posteriores, a União Europeia consiste em exemplo de integração econômica e política, ao abarcar a promoção da união comercial e aduaneira, além de reconhecer direitos fundamentais e de caráter comunitário114.

113 Em complemento ao entendimento de direito comunitário: “O Direito Comunitário não é originalmente

constituído por um sistema de normas jurídico-positivas oriundas de uma única fonte de produção normativa, como se delas decorressem, desde sempre e exclusivamente, dos órgãos da própria comunidade. Ele é, na sua origem e formação, ponto de interseção entre (a) normas de direito nacional (intraestatal), (b) normas fundadas no direito internacional, como os tratados de Maastricht, Amsterdam e Nice (União Europeia) e, no âmbito do direito latino-americano, o de Assunção (MERCOSUL), e (c) e normas de direito internacional privado comum, não estatais, mas convencionais” (BORGES, 2005, p. XXXII).

114 Os referidos tratados fundadores da atual União Europeia promoviam a cooperação nos setores de carvão e

aço (CECA), que impedia que determinado país mobilizasse suas forças armadas sem o conhecimento dos demais, dissipando qualquer desconfiança ou tensão entre os Estados europeus integrantes. O Tratado de 1965 criou a Comissão Única e o Conselho Único para as três comunidades originárias. O Ato Único Europeu, de 1986, simplificou a tomada de decisões na perspectiva do mercado único (extensão da votação por maioria qualificada no Conselho). O Tratado de Maastricht, de 1992, cria a denominação “União Europeia” e introduz elementos para uma união política (cidadania e política externa coordenada). O Tratado de Amsterdam, em 1997, consolidou os tratados da UE (Maastricht) e CEE (Roma) e preparou a comunidade para adesões futuras de mais países. O Tratado de Nice, de 2001, promoveu reformas das instituições da UE. Por fim, o Tratado de Lisboa, de 2007, reforçou os poderes do Parlamento Europeu e repartiu competências (competências exclusivas da UE, dos países da UE, e as competências compartilhadas). Atualmente a União Europeia é constituída por 28 países europeus membros. A Croácia tornou-se membro em 2014, tendo a Macedônia, Islândia, Montenegro, Sérvia e Turquia como países candidatos e Albânia, Bósnia e Herzegovina e Kosovo como potenciais países candidatos. Disponível em <www.europa.eu>. Acesso em: 10 de março de 2014.

Para tanto, a União Europeia constitui-se em organização internacional com o objetivo de instituir uma união aduaneira e comercial, ampliando-se para uma união monetária. Além disso, verificam-se as disposições em seus tratados em facilitar a livre circulação de pessoas, garantindo a segurança dos seus povos, a criação de um espaço de liberdade, com a finalidade última de estreitar as relações entre seus membros, com respeito à dignidade humana, democracia e igualdade, não discriminação, pluralismo e respeito às minorias (Preâmbulo e art. 2.º, Tratado da União Europeia - TUE115).

Nesse sentido, a União Europeia é um importante estudo de caso para a análise do princípio da supremacia das normas comunitárias europeias sobre as normas internas dos Estados-membros, em especial o conflito decorrente entre o Direito Comunitário e o Direito Constitucional dos Estados-membros.