• Nenhum resultado encontrado

Agricultura Familiar

No documento PROJETO VIDA NO CAMPO (páginas 131-136)

Agenda 21 Brasileira em ação

28. Agricultura Familiar

Histórico

A agricultura familiar brasileira foi marcada profundamente pelas origens coloniais da economia e da sociedade brasileira, com suas três grandes características: a grande propriedade; as monoculturas de exportação; e a escravatura. A fragilidade e a dependência social e política deste extrato de agricultores estão estreitamente relacionados com os eventos que proporcionaram o surgimento das grandes propriedades, a partir de 1850, e com os ciclos econômicos (açúcar e café).

O início da modernização da agricultura, somente após a metade da década de 1960, fez com que trouxesse para o Brasil as indústrias de tratores e equipamentos agrícolas, fertilizantes químicos, rações e medicamentos veterinários, dentre outros.

A partir da constituição desses novos ramos da indústria agrícola, novos mercados também surgiram. O Governo implementou um conjunto de políticas agrícolas destinadas a incentivar a aquisição dos produtos desse novo ramo da indústria, acelerando o processo de incorporação de modernas tecnologias pelos produtores rurais.

Este modelo de desenvolvimento que caracterizou a agricultura brasileira, gerou uma grande concentração de terras e de renda no meio rural, marginalizando, do processo, mais de dois terços da população, que vivia no campo.

O resultado deste modelo tem se refletido, de maneira geral, apesar de aumento na produção, no agravamento de desemprego (no campo e na cidade ), no aumento dos preços dos alimentos, na degradação do meio ambiente e, na ocupação desordenada do território nacional, a queda na qualidade biológica dos alimentos e o progressivo desaparecimento das tradições culturais no meio rural.

Importância

Um trabalho realizado conjuntamente pelo Incra e FAD fez uma radiografia da situação do campo brasileiro com base no Censo Agropecuário de 1996. Segundo o Censo, existem no Brasil 4.859.864 estabelecimentos rurais, ocupando uma área de 356,6 milhões de hectares. De acordo com a metodologia adotada pelos pesquisadores, 4.139.369 do total dos estabelecimentos são considerados familiares, ocupando uma área de 107,8 milhões de hectares, sendo responsáveis por R$18,1 bilhões do Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional – VBP total, e recebendo apenas R$937 milhões de financiamento rural. Os agricultores patronais são representados por 554.501 estabelecimentos, ocupando uma área de 240 milhões de hectares. Os agricultores familiares representam, portanto, 85,2% do total de estabelecimentos, ocupam 30,5% da área total e são responsáveis por 37,9% do Valor

Bruto da Produção Agropecuária Nacional, recebendo apenas 25,3% do financiamento destinado à agricultura. Segundo a metodologia utilizada para caracterizar essas pessoas, “a agricultura familiar pode ser definida a partir de três características centrais: 1) a gestão da unidade produtiva e os investimentos nela realizados são feitos por indivíduos que mantêm entre si laços de sangue ou de casamento; 2) a maior parte do trabalho é igualmente fornecida pelos membros da família; 3) a propriedade dos meios de produção (embora nem sempre da terra) pertence à família e é em seu interior que se realiza sua transmissão em caso de falecimento ou de aposentadoria dos responsáveis pela unidade produtiva”.

A região Sul é a mais forte em termos de agricultura familiar, representada por 90,5% de todos os estabelecimentos da região, ou 907.635 agricultores familiares, ocupando 43,8% da área e produzindo 57,1% do VBP regional. Nesta região, os agricultores familiares ficam com 43,3% dos financiamentos aplicados na região. O Centro-Oeste apresenta o menor percentual de agricultores familiares entre as regiões brasileiras, representando 66,8% dos estabelecimentos da região e ocupando apenas 12,6% da área regional e 12,7% dos financiamentos. A área média das propriedades também varia de região para região: no Nordeste elas são de 16 hectares, enquanto no Centro-Oeste chegam a 84 hectares. Em todo o Brasil, 87% dos estabelecimentos familiares possuem menos de 50 hectares. “Mesmo dispondo de apenas 30% da área, a agricultura familiar é responsável por 76,9% do Pessoal Ocupado (PO). Dos 17,3 milhões de PO na agricultura brasileira, 13.780.201 estão empregados na agricultura familiar. Na região Sul a agricultura familiar ocupa 84% da mão-de- obra utilizada na agricultura; no Centro-Oeste ela é responsável por apenas 54%. Os agricultores familiares produzem 24% do VPB da pecuária de corte, 52% da pecuária de leite, 58% dos suínos e 40% das aves e ovos produzidos. Em relação a algumas culturas temporárias e permanentes, a agricultura familiar produz 33% do algodão, 31% do arroz, 72% da cebola, 67% do feijão, 97% do fumo, 84% da mandioca, 49% do milho, 32% da soja, 46% do trigo, 58% da banana, 27% da laranja, 47% da uva, 25% do café e 10% do VBP da cana-de- açúcar”.

A grande maioria dos agricultores familiares - 68,9% - possui Renda Total do estabelecimento no intervalo entre zero e R$3000 ao ano. Outros 15.7% possuem Renda Total entre R$3000 e R$8000 ao ano. Apenas 0,8% dos agricultores familiares tem Renda Total superior a R$27500 ao ano.

Agricultores A,B,C e D – “considerando que a tipologia elaborada tem por objetivo estabelecer uma diferenciação socioeconômica entre os produtores familiares, e tendo em conta os cálculos efetuados, poder-se-ia, a grosso modo, associar os tipos A, B, C e D a , respectivamente, agricultores capitalizados, em processo de capitalização, em descapitalização e descapitalizados”. “Entretanto, entre os agricultores familiares do tipo D, também existem

agricultores mais capitalizados, os quais podem ter sido classificados neste grupo devido à frustração de safra, baixos preços de seus produtos no mercado ou a realização de novos investimentos nos quais as receitas ainda não estão superando as despesas”.

Considerando a média nacional, os tipos familiares A, B e C obtêm uma renda total por ha superior aos agricultores patronais, novamente demonstrando o potencial produtivo e econômico dos agricultores familiares. Em média, o tipo A produz R$269/ha, o tipo B produz R$103/ha e o tipo C obtêm R$60/ha, superior à média de R$40/ha obtida pelos agricultores patronais.

A participação em alguma forma de associação e cooperativa chega a 34,2% entre os agricultores familiares mais capitalizados e apenas a 5,7% entre os do tipo D. Novamente as regiões Sul e Sudeste são as que apresentam maior participação percentual dos agricultores familiares em algum tipo de cooperativa.

O maior grupo, formado por 44,1% dos estabelecimentos, comercializa menos de 50% do valor de sua produção, sendo classificados como pouco integrados ao mercado.

Entre os agricultores familiares, 76,9% utilizam-se apenas do trabalho familiar em seus estabelecimentos. Esses agricultores ocupam 58,5% da área e produzem 59,2% do VBP da agricultura familiar. Outros 4,8% dos estabelecimentos familiares combinam o uso da mão-de- obra familiar apenas com a contratação de trabalhadores temporários.

Comparativo entre os modelos patronal e familiar de agricultura

Modelo Patronal Modelo Familiar Completa separação entre gestão e trabalho Trabalho e gestão intimamente ligados

Organização centralizada Direção do processo produtivo assegurado diretamente pelos proprietários

Ênfase na especialização Ênfase na diversificação

Ênfase em práticas agrícolas padronizáveis Ênfase na durabilidade dos recursos e na qualidade de vida

Trabalho assalariado predominante Trabalho assalariado complementar Tecnologias dirigidas à eliminação das

decisões “de terreno” e “de momento”

Decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade do processo produtivo A agricultura patronal, com suas levas de bóias-frias e alguns poucos trabalhadores residentes vigiados por fiscais e dirigidos por gerentes, engendra forte concentração de renda e exclusão social, enquanto a agricultura familiar, ao contrário, apresenta um perfil essencialmente distribuitivo, além de ser incomparavelmente melhor em termos sócioculturais. Sob o prisma da sustentabilidade (estabilidade, resistência e equidade), são imensas as

vantagens apresentadas pela organização familiar na produção agropecuária, devido à sua ênfase na diversificação e à maior maleabilidade de seu processo decisório.

Infelizmente, as vantagens de uma estratégia de desenvolvimento rural que priorize a promoção da agricultura familiar ainda não foram percebidas pela sociedade brasileira. A visão convencional considera que a maior eficiência técnico-econômica da forma patronal de produzir é um proveito que suplanta todos os outros. Daí a importância de uma avaliação concentrada no desempenho econômico dessas duas formas básicas de produção agropecuária.

Uma boa comparação pode ser estabelecida por meio de duas amostras, formadas pelos estabelecimentos dos estratos de área “20 a 100 ha" e “500 a 10.000 ha", bastante representativas dos segmentos familiar e patronal. Apesar dos primeiros disporem de uma área de apenas 58 milhões de hectares, contra os 150 milhões dos segundos, esse confronto mostra:

1) que as lavouras são três vezes mais importantes no segmento familiar e que nas lavouras permanentes essa relação chega a cinco vezes;

2) que o segmento familiar tende a prevalecer na criação de pequenos animais, sem deixar de ter também certo peso na pecuária bovina;

3) que, apesar de muito parcial, a modernização tecnológica do segmento patronal é superior à do segmento familiar;

4) que na oferta agropecuária, o segmento patronal supera o familiar em quatro importantes produtos: carne bovina, cana-de-açúcar, arroz e soja; mas que o inverso ocorre no fornecimento de 15 outros importantes produtos: carnes suínas e de aves, leite, ovos, batata, trigo, cacau, banana, café, milho, feijão, algodão, tomate, mandioca e laranja.

Algumas estimativas baseadas em projeções dos censos agropecuários indicam também que, apesar de disporem de uma área três vezes menor que a detida pelas fazendas do grupo patronal, os estabelecimentos de caráter familiar têm quase a mesma participação na produção total. E por terem sistemas de produção mais intensivos, permitem a manutenção de quase sete vezes mais postos de trabalho por unidade de área. Enquanto na agricultura patronal são necessários cerca de 60 hectares para a geração de um emprego, na agricultura familiar bastam 9 hectares.

Vale a pena lembrar que a produção familiar tornou-se um elo fundamental da modernização de cadeias agroindustriais devido essencialmente à sua flexibilidade estrutural, tanto no que diz respeito ao processo produtivo, como às fontes de renda. Embora sua grande vocação seja a policultura associada à pecuária, ela pode se adaptar, em alguns casos, a verdadeiros extremos, como certos tipos de “Monocultura”. E também pode, tanto chegar a depender inteiramente de vendas externas, quanto recuar ao completo auto-abastecimento.

A desintegração social e cultural é a contrapartida inevitável dos processos de integração econômica orientados pela bússola exclusiva do mercado. Foi assim na história da maioria das nações. Mas o que distingue o caso brasileiro é o fato de aqui ter se aprofundado ao longo do tempo, e não abrandado, uma dinâmica de exclusão social inédita no planeta. A concentração de patrimônio, da terra em especial, é um de seus pilares mais perversos, conforme admite estudo recente do Banco Interamericano do Desenvolvimento. O BID adverte que é impossível o desenvolvimento econômico estável num quadro de antagonismo social dilacerante como esse. Em resumo, o que ele diz é que é impossível estabelecer uma agenda compartilhada para o futuro num país em que boa parte da população foi excluída do passado e, agora, do presente. Apenas 1% dos estabelecimentos rurais do Brasil detém 44% das terras agricultáveis. Mais de 60% do crédito rural ficam com 4 mil grandes propriedades. A agricultura familiar, com 4,1 milhões de estabelecimentos, obtém apenas 25% do financiamento total, embora empregue 77% dos 17,3 milhões de brasileiros ocupados no campo. Desses, porém, 5,5 milhões vivem em estabelecimento com receita monetária anual de 98 reais. São totalmente descapitalizados. Produzem para subsistência e dependem de fontes externas à atividade para sobreviver. No processo de estabilização da moeda, nos anos 90, 400 mil produtores perderam suas terras, reforçando uma diáspora de 28,5 milhões de pessoas exclusas do campo entre 1960 e 1980. Algo como uma Argentina interna deixou de ser rural para ser a periferia urbana em menos de uma geração.

Na verdade, o eixo atual da política para a agricultura nacional consiste em fortalecer ainda mais o setor empresarial e exportador de produtos como soja, café, suco de laranja, celulose, frutas, visando o equilíbrio das contas públicas e o pagamento dos juros da dívida externa.

A insuficiência do PRONAF e a ineficiência da Reforma Agrária são atestadas com dados do próprio governo: de 1995 a 2001, 930 mil pequenos produtores e produtoras tiveram que abandonar suas terras, o que aumentou a concentração fundiária; entre 9 e 13 milhões de habitantes rurais terão que abandonar o campo nos próximos anos, por falta de condições de trabalhar, produzir e viver. Serão os novos desempregados das periferias, das já saturadas, violentas e inseguras, metrópoles brasileiras.

Não se trata, portanto, de idealizar um tempo de remota harmonia campestre que nunca existiu. Para sobreviver no século 21, a agricultura familiar terá que se reinventar, romper o torniquete fundiário e social; diversificar as alternativas de renda e de emprego e diferenciar-se da grande produção para conquistar o promissor mercado dos alimentos orgânicos.

No documento PROJETO VIDA NO CAMPO (páginas 131-136)