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Agricultura orgânica: Princípios e práticas

No documento PROJETO VIDA NO CAMPO (páginas 89-94)

Agenda 21 Brasileira em ação

16. Agricultura orgânica: Princípios e práticas

No final do século XIX, predominava no setor produtivo e na comunidade agronômica o otimismo diante das teorias de Justus von Liebig, que introduziu a prática da adubação química na agricultura. Entretanto, vários pesquisadores punham em xeque o “quimismo” de Liebig e ressaltavam a importância dos processos biológicos para a manutenção da fertilidade do solo. As descobertas de Loius Pasteur no campo da microbiologia permitiram comprovar a importância de determinados organismos vivos na decomposição da matéria orgânica e nos processos de fixação biológica de nitrogênio. Charles Darwin publicou em Londres, em 1881, os resultados de suas pesquisas sobre o papel das minhocas na produção do húmus vegetal.

Os trabalhos de Pasteur e Darwin suscitaram a curiosidade e a investigação de outros pesquisadores das ciências agronômicas. Em 1911 R.H. King, então chefe da Divisão de Manejo de Solos do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, publicou, em Londres,

Fazendeiros por quarenta séculos. King descreve suas observações a respeito das práticas

agrícolas orientais e afirma que esses povos conseguiam, há vários séculos, manter uma agricultura permanente e sustentável, capaz de suprir as necessidades de vastos contingentes populacionais. A chave dessa agricultura era a constante e extensiva reciclagem de materiais orgânicos das mais variadas fontes, que, além de elevar a produtividade das lavouras, reduzia a erosão e a perdas de nutrientes (Merril, 1983; Bonilha, 1994).

Seguindo os passos de King, o pesquisador inglês Albert Howard formulou os princípios, que podem ser considerados o ponto de partida para uma das mais difundidas vertentes alternativas, a agricultura orgânica. Entre 1905 e 1930, Howard trabalhou na Índia e estudou os diferentes métodos empregados pelos camponeses indianos para reciclar os materiais orgânicos. Suas pesquisas levaram à formulação de um sistema de produção baseado na manutenção da fertilidade dos solos por meio da compostagem natural dos mais variados resíduos orgânicos. Howard mostrou que o solo não é apenas um conjunto de substâncias, tendência proveniente da química analítica; nele ocorre uma série de processos vivos e dinâmicos essenciais à saúde das plantas.

A recepção dos trabalhos de Howard junto a seus colegas ingleses foi péssima. Afinal, suas propostas eram totalmente contrárias à visão “quimista”, que predominava no meio agronômico da época. Em 1940, Howard publicava Um testamento agrícola, obra que só foi aceita por um grupo muito restrito de dissidentes do padrão predominante.

Durante décadas, as práticas que valorizavam a fertilização orgânica foram rotuladas como “retrógradas” e sem validade científica. Mas, no final dos anos 60, tornavam-se mais evidentes os danos ambientais provocados pela agricultura moderna. A constatação de que os alimentos e o leite materno continham resíduos de produtos químicos utilizados na agricultura –

como o DDT e o BHC – soou como um alarme para a população e para parte da comunidade científica. Nos anos 70 a hostilidade em relação às práticas “alternativas” foi aos poucos se transformando em curiosidade.

Em todo o planeta crescia o número de organizações não governamentais comprometidas com o princípio de agricultura orgânica e das demais vertentes alternativas. Em 1972, era fundada em Versalhes, na França, a International Federation on Organic Agriculture Movement – IFOAM (Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica), reunindo cerca de quatrocentas organizações. Suas principais atribuições eram a troca de informações entre as entidades associadas, a harmonização internacional de normas técnicas e a certificação de produtos orgânicos.

Nos anos 80, a noção de agricultura orgânica já apresentava um campo conceitual mais preciso e, em 1984, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) reconheceu sua importância formulando a seguinte definição:

“A agricultura orgânica é um sistema de produção que evita ou exclui amplamente o uso de fertilizantes, praguicidas, reguladores de crescimento e aditivos para a alimentação animal compostos sinteticamente. Tanto quanto possível, os sistemas de agricultura orgânica baseiam-se na rotação de culturas, estercos animais, leguminosas, adubação verde, lixo orgânico vindo de fora da fazenda, cultivo mecânico, minerais naturais e controle biológico de pragas para manter a estrutura e produtividade do solo, fornecer nutrientes para as plantas e controlar insetos, erva daninhas e outras pragas” (USDA, 1984:10)

No Brasil, o questionamento sobre os impactos ambientais da agricultura moderna partiu, quase simultaneamente, de pesquisadores como Adilson Paschoal, Ana Maria Primavesi e Luis Carlos Pinheiro Machado. Além do engenheiro agrônomo José Lutzemberger, que largou a carreira na indústria agroquímica para tornar-se um dos primeiros “ativistas ambientais” do país. Obviamente as idéias desses pesquisadores foram desprezadas e até ridicularizadas pelos defensores do padrão produtivo baseado no emprego elevado de insumos químicos e genéticos. Mas progressivamente crescia em diferentes setores da sociedade o interesse por práticas produtivas capazes de conciliar eficiência econômica com conservação ambiental.

No final dos anos 70 era criado na Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de São Paulo o Grupo de Agricultura Alternativa, que discutia os problemas sociais, econômicos e ambientais da agricultura moderna. Foram os integrantes desse grupo e mais alguns produtores e pesquisadores que constituíram, em 1989, a Associação de Agricultura Orgânica (AAO). Em 1997 a AAO publicava a primeira versão do Manual de certificação que, juntamente com as Diretrizes para o padrão de qualidade orgânico elaboradas pelo Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural (IBD), de Botucatu, São Paulo, tornaram-se as

principais referências para a certificação de produtos orgânicos no país. A AAO reúne cerca de 300 produtores certificados e o IBD já certificou mais de 2.000 propriedades.

A articulação entre as organizações não governamentais “agroambientalistas” para estabelecer padrões de qualidade para os produtos orgânicos, biodinâmicos, naturais, agroecológicos, etc. levou o Ministério da Agricultura a publicar, em maio de 1999, a Instrução Normativa N.°07, que dispõe sobre a produção e beneficiamento desses produtos. De acordo com esse documento, é considerado sistema orgânico de produção:

“... todo aquele em que se adotam tecnologias que otimizem o uso de recursos naturais e sócio-econômicos, respeitando a integridade cultural e tendo por objetivo a auto-sustentação no tempo e no espaço, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energias não renováveis e a eliminação do emprego de agrotóxicos e outros insumos artificiais tóxicos, organismos geneticamente modificados – OGM/transgênicos, ou radiações ionizantes em qualquer fase do processo de produção, armazenamento e de consumo, e entre os mesmos, privilegiando a preservação da saúde ambiental e humana, assegurando a transparência em todos os estágios da produção e da transformação”.

Outro passo importante para o fortalecimento da agricultura orgânica no país foi a aprovação, em dezembro de 2000, do Projeto de Lei N.°659/99 pela Comissão de Agricultura e Política Rural do Congresso Nacional. A definição de agricultura orgânica nesse projeto assemelha-se à empregada na Instrução Normativa N.°07. É considerado sistema orgânico de produção: “todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis, tendo por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização ou a eliminação da dependência de energia não-renovável e de insumos sintéticos e a proteção ao meio ambiente...”.

As incertezas dos consumidores diante do mal da “vaca louca” ou dos produtos geneticamente modificados têm contribuído não apenas para a ampliação do consumo de alimentos orgânicos, como também para definições mais precisas das práticas e dos princípios, que orientam essa vertente da agricultura. Dentre as práticas mais comuns, destacam-se as seguintes: 1) integração da produção animal e vegetal; 2) uso de rações e forragens obtidas na unidade de produção ou adquiridas de fornecedores orgânicos; 3) consorciações e rotações de culturas; 4) uso de variedades adaptadas às condições edafoclimáticas locais; 5) adubação verde; 6) introdução de “quebra ventos”; 7) uso de biofertilizantes; 8) reciclagem dos materiais orgânicos gerados na propriedade; 9) manutenção de cobertura vegetal, viva ou morta, sobre o solo. Em geral, o emprego dessas práticas diminui radicalmente a incidência de pragas e de doenças nas lavouras. Mas, quando medidas “curativas” se fazem necessárias, os agricultores

orgânicos utilizam: 10) a prática da alelopatia; 11) as “caldas” e os produtos naturais de baixa toxicidade; 12) controle biológico.

Obviamente essa dúzia de práticas não deve ser entendida como um “cardápio”, a partir do qual se seleciona uma ou outra prática mais vantajosa. Afinal, a agricultura orgânica não é uma simples substituição de práticas predatórias por práticas mais “limpas”. Prioriza-se o manejo integrado de toda unidade produtiva, considerando-se os diversos fatores que compõe o agroecossistema. A propriedade deve ser entendida como uma série de organismo.

As experiências práticas no campo da agricultura orgânica e a revisão dos legados científicos sobre o tema, desde Pasteur até os trabalhos mais recentes, permitem destacar os princípios que orientam essa vertente. São estes: 1) o enfoque “sistêmico” da unidade produtiva; 2) a diversificação dos sistemas produtivos; 3) a conservação da biodiversidade e dos recursos naturais, particularmente o solo e a água; 4) a restrição ao uso de insumos sintéticos nocivos à saúde e ao ambiente (sementes geneticamente modificadas, agrotóxicos e fertilizantes químicos); 5) a valorização dos processos biológicos nos sistemas produtivos. Completa a relação de princípios 6) o sentido ético, que deve permear as relações sociais do empreendedor orgânico: ética em relação às populações que dependem dos recursos utilizados na produção agrícola, particularmente recursos hídricos; ética nas relações de trabalho; nas relações comerciais; e ética em relação aos consumidores.

A responsabilidade pela manutenção desses princípios não cabe apenas às organizações certificadoras ou a este ou aquele órgão público, mas a todos que se interessam por uma cadeia alimentar mais saudável.

Também como nas outras correntes agroecológicas, o solo é considerado um “organismo complexo”, repleto de seres vivos (minhocas, bactérias, fungos, formigas, cupins, etc.) e de substâncias minerais em constante interação e interdependência, o que significa que ao se manejar um aspecto (adubar, por exemplo), faz-se necessário considerar todos os outros (diversidade biológica, qualidade das águas subterrâneas, suscetibilidade à erosão, etc.) de forma conjunta. Este é o princípio da “visão sistêmica” na agricultura, também chamado “holismo”.

Na busca de manter a estrutura e produtividade do solo e de se obter um alimento verdadeiramente orgânico, é necessário administrar diversas áreas do conhecimento (agronomia, ecologia, sociologia, economia, entre outras) para que o agricultor, através de um trabalho harmonizado com a natureza, possa ofertar ao consumidor alimentos que promovam não apenas a saúde deste último, mas também do planeta como um todo.

Um sem-número de microrganismos propicia vida ativa ao solo, o qual sem eles seria apenas uma substância estéril. A parte viva do solo, os organismos edáficos, é composta pelos

mais diversos representantes do reino animal e vegetal. Os mais importantes são os microrganismos (ver quadro).

Entre os microrganismos vegetais (fitozoários), as bactérias formam o grupo mais rico em espécies e formas. Os actinomicetos e fungos também têm importância, ao passo que as algas não desempenham um papel relevante. Os microrganismos animais (protozoários) alimentam-se, em grande parte, de bactérias, regulando desse modo essa população. São protozoários os rizópodes, os flagelados e os ciliados.

Número de indivíduos e peso dos grupos de microrganismos mais importantes1 Grupo Indivíduos (média) Peso (g) (média) Microflora Bactérias 1 trilhão 50 Actinomicetos 10 bilhões 50 Fungos 1 bilhão 100 Algas 1 milhão 1 Microfauna Flagelados 0,5 trilhão - Rizópodes 0,1 trilhão 10 Ciliados 1 milhão - Ciclo biológico e fertilidade do solo

Os organismos edáficos são de suma importância para o ciclo biológico das matérias do solo. Eles decompõe substância orgânica morta e se transformam – devido ao seu curto ciclo biológico – para também ser parte da matéria a qual da origem ao húmus.

Graças à sua atividade mineralizante, os microrganismos tornam novamente disponíveis para as plantas os nutrientes fixados ao húmus. Essa função dos microrganismos é de grande importância para a manutenção da fertilidade do solo.

Podemos ainda citar outros representantes principais da fauna do solo. Microfauna (0,002 a 0,2mm) ameba; mesofauna (0,2 a 2,0mm) tardígrado, nematóide, ácaro, colembolo; macrofauna (1,0 a 20,0mm) larva de coleópteros, larva de dípteros e lepidópteros, diplópode, centopéia, verme; megafauna (acima de 20,0mm) minhoca.

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