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3.3 Categorias fundamentais: agricultura familiar camponesa e transição agroecológica

3.3.1 Agricultura familiar camponesa: uma aproximação

Mas afinal,que vem a ser agricultura familiar? Em que medida o sujeito social que aí está se distingue do camponês tradicional, do agricultor de subsistência, do pequeno produtor? Estas categorias não são novas entre os estudiosos que se dedicam ao mundo rural, embora nos últimos anos tenham adquirido novas leituras (WANDERLEY, 2009).

No Brasil, a partir da década de 1990, ganha força o debate acerca da importância da agricultura familiar, sobretudo a partir da implantação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Essa percepção não é compartilhada por todos, visto que, para uns, o conceito de agricultura familiar32 define uma tipologia de beneficiário a partir da capacidade de atendimento. Para outros, a agricultura familiar contempla uma camada de agricultores que se adaptaram às exigências do mercado em contraposição aos “pequenos agricultores” que não se adaptaram a essas exigências, o entendimento é que as políticas públicas devem apoiar a formação desse segmento (WANDERLEY, 2009). Nessa perspectiva, explica Wanderley (2009, p. 186), “o agricultor familiar é um ator social da agricultura moderna e, de uma forma, ele é o resultado da própria atuação do Estado”.

Para Carvalho (2004, p. 16)33, a denominação “agricultor familiar” tem conotações ideológicas, não porque é insuficiente para dar conta da diversidade de formas sociais cuja reprodução está centrada no trabalho familiar, mas, sobretudo, porque se apoia em um “discurso teórico e político que afirma a diferenciação e o fim do campesinato em duas categorias”, uma baseada na transformação deste em empresa capitalista pelo desenvolvimento das forças produtivas e a outra a sua proletarização ou dependência permanente em relação às políticas públicas.

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Explicitamos mais a diante o posicionamento acerca da noção de agricultura familiar camponesa que orienta esse estudo.

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Extraído do “Campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil” (versão preliminar) organizado por Horácio Martins de Carvalho após o seminário de representantes da Via Campesina do Brasil. Curitiba/ Brasília, nov. de 2004. Disponível em: < http://www2.fct.unesp.br/docentes/geo/bernardo/INTERCAMBIO%20BRASIL%20CANADA%20COLOMBIA /O%20CAMPESINATO%20NO%20SECULO%20XXI.pdf >. Acesso em: 14 jun. de 2012.

Thomáz Junior (2008) chama-nos à atenção para o uso desse termo e dos sentidos conferidos nas atuais políticas desenvolvidas pelo Estado brasileiro. Assim como Carvalho (2004), o autor analisa que o deslocamento do termo camponês para o de agricultor familiar não se dá de forma despretensiosa. Há, para os autores, um processo que busca desqualificar o debate em torno da questão agrária e da luta pela terra e com isso transferir a solução dessas questões para o mercado. Retirando “[...] dos agricultores a [compreensão da] sujeição da renda da terra ao capital e, portanto, os aspectos econômicos de classe, esvaziando politicamente a necessidade de Reforma Agrária, alijando qualquer vínculo dos trabalhadores sem terra a essa lógica” (THOMÁZ JUNIOR, 2008, p. 291).

Buscando se aproximar da grande diversidade de formas sociais que comporta esse conceito, Wanderley (2009, p. 156) estabelece algumas hipóteses sobre essa questão, entre as quais:

a) Agricultura familiar é um conceito genérico, que incorpora uma diversidade de situações especificas e particulares;

b) Ao campesinato corresponde uma destas formas particulares da agricultura familiar, que se constitui enquanto um modo específico de produzir e de viver em sociedade;

c) A agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar- se a um contexto sócio-econômico próprio destas sociedades, que a obriga a realizar modificações importantes em sua forma de produzir e em sua vida social tradicional.

Para Wanderley (2009), o “agricultor familiar”, não rompe definitivamente com o “camponês tradicional”, há elementos de continuidade, o que despensa qualquer análise em termos de decomposição do campesinato. Na agricultura camponesa, tal como uma categoria genérica da agricultura familiar, a família é, ao mesmo tempo, proprietária dos meios de produção e assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Para a pesquisadora, o caráter familiar não é um simples detalhe descritivo. A esse respeito, ela ainda acrescenta que o “fato de uma estrutura produtiva associar família-produção-trabalho tem consequências fundamentais para a forma como ela age economicamente e socialmente”, há ainda particularidades que a especificam no interior do conjunto maior da agricultura familiar, estas dizem respeito aos objetivos da atividade econômica, às experiências de sociabilidade e à formação de sua integração na sociedade global (ibidem, p. 156).

A partir dessas reflexões, passamos a nos questionar: tendo como ponto de partida a Rede de Agricultores Agroecológicos e Solidários, quais são as características das trajetórias

dos agricultores familiares que estão vivenciando propostas inspiradas na agroecologia no Território dos Vales do Curu e Aracatiaçu? Quais são suas motivações e os principais desafios desse caminho? A partir da introdução de novas práticas de cultivo e manejo, quais mudanças na forma de se organizar e comercializar estão sendo tramadas? De modo geral, qual é a importância da agroecologia para viabilização econômica, social e ecológica da agricultura familiar camponesa?

Para tanto, recorremos novamente a Wanderley (2009, p. 156) para entendemos que o campesinato brasileiro tem características particulares, quando comparado ao conceito clássico de camponês. O sujeito que aí está, “é resultado do enfrentamento de situações próprias da história social do país”, nas palavras de Sabourin (2009, p. 281), de uma herança camponesa diversa:

[...] a dos pequenos agricultores livres do Nordeste da época colonial, que ocupam os interstícios entre as grandes fazendas, a dos vaqueiros que compraram algumas léguas após a lei da Terra, no Nordeste e Centro-Oeste, a de escravos africanos foragidos ou libertados; no Sul e Sudeste do país, a dos colonos camponeses europeus do século XIX e XX, oriundos da Alemanha, Itália, Polônia, Holanda e, por fim, a dos colonos japoneses produtores de hortaliças e frutas.

Acrescentamos ainda os moradores de fazendas (morada de favor) que compunha a grande massa de trabalhadores “livres” na lavoura de exportação da cana de açúcar no Nordeste.

Assim sendo, não é possível alinhar-se a uma conceituação que não leve em consideração a diversidade e heterogeneidade de identidades presentes nesse território. Uma definição conceitual sobre esses sujeitos sociais, seja como estratégia de análise ou de intervenção, deve se referenciar nas diversas situações geográficas (espaço), tradições, identidades construídas e contextos históricos nos quais o campesinato está presente.

Os termos “camponês” e “campesinato” passaram a compor o vocabulário brasileiro a partir dos anos de 1950. De origem política, foram introduzidos pelos movimentos populares de esquerda, no momento em que brotavam pelo país as lutas de trabalhadores do campo, fomentadas, principalmente, pelo Partido Comunista. Antes, aqueles, eram chamados de caipiras, caboclos, tabaréus, a depender da região que faziam parte. Estas expressões tinham sempre duplo sentido e, em seu conjunto, eram depreciativas, ofensivas. O personagem Jeca Tatu do escrito Monteiro Lobato ilustra bem essa visão (MARTINS, 1983).

Em 1964, o termo “camponês” foi banido do vocabulário oficial. O Estado ditatorial impõe grandes obstáculos às alternativas contidas nas organizações de pequenos

produtores e trabalhadores rurais autônomos, nesse contexto se destacam as Ligas Camponesas34 (SABOURIN, 2009).

Mas, até a década de 1970, o debate no Brasil acerca do campesinato, foi inspirado nos clássicos do marxismo, discutia-se a “natureza do campesinato e seu potencial histórico na transformação das sociedades modernas” (WANDERLEY, 2009, p. 12). O campesinato, de modo geral, era visto como uma categoria pré-capitalista, cuja presença nas sociedades modernas não passava de um resíduo, explica a autora. “Tendo em vistas sua importância numérica e seu peso econômico, nas sociedades em transição, os camponeses eram compreendidos como anticapitalistas, portadores de um grande potencial revolucionário” (ibidem). Duas perspectivas apontavam para o futuro do campensiato, uma que apostava na sua decomposição nas classes fundamentais do capitalismo (perspectiva Leninista) e a outra na sua diferenciação interna, o que presumia a extinção dessa categoria na sociedade.

Após a década de 1970, o debate se concentrou em torno da diversidade e complexidade do universo camponês e não mais em sua decomposição. Nesse mesmo período, consolidava-se a concepção da natureza capitalista da sociedade brasileira, o que possibilitou aos novos estudos (WANDERLEY, ibidem, p. 13).

[...] explicar a reprodução histórica do campesinato e o então processo considerado de “persistência” de um amplo setor de pequenos produtores familiares, numa agricultura que se modernizava e se capitalizava rapidamente, mais não como resíduo de relações pretéritas, mas como um produto gerado pelas formas dominantes do próprio capitalismo brasileiro.

Ainda que não seja o nosso objetivo fazer uma análise profunda sobre o campesinato e para tanto existe uma ampla bibliografia disponível, tanto de estudos clássicos quanto contemporâneos, consideramos necessário sublinhar alguns aspectos importantes para nosso exame. Para nós, como já dissemos, os camponeses são sujeitos históricos, expressões vivas das contradições da luta de classe (THOMAZ JÚNIOR, 2008). Ao mesmo tempo em que estão subordinados ao capital, conseguem manter as possibilidades de reprodução não capitalista, por meio do trabalho baseado na família e na afirmação de valores sociais cuja racionalidade se diferencia da racionalidade do capital.

34Essas lutam se expressaram diferentemente em todo pais, no Nordeste elas ganharam visibilidade em torno do que ficou conhecido como Ligas Camponesas. Sobre a história das ligas recomenda-se a leitura do livro “O que são as ligas camponesas”, escrito por Francisco Julião e, publicada pela Civilização Brasileira em 1962 e o vídeo em VHS “Cabra marcado para morrer” dirigido por Eduardo Coutinho, o documentário resgata a memória dos fatos políticos no nordeste , foi gravado em dois períodos, em 1964 (quando interrompido) e em 1983 (20 anos depois).

Dito isso, não resta dúvidas, os camponeses são sujeitos ativos do mundo contemporâneo, sua presença no início do século XXI contraria o terrível prognóstico de seu desaparecimento. Estudos comprovam que a maioria dos produtores, ainda é formada por camponeses ou pequenos agricultores familiares. “Estima-se que cerca de 960 milhões de hectares de terra cultivada (cultura anuais e permanentes) na África, Ásia e América Latina, dos quais 10 a 15 % são geridos por agricultores tradicionais” (ALTIERI, 2012, p. 162). Existe, portanto, uma atualidade no estudo da agricultura familiar camponesa.

Considerando a especificidade da formação da história do espaço agrário brasileiro, a heterogeneidade, como já registrado, aparece como a principal característica desse segmento, que, teimosamente, como frisa Wanderley (2009), resiste e se reproduz entre nós contrariando todas as previsões da modernidade, da industrialização, da urbanização. Mas afinal, quem são os camponeses? São aqueles que combinam família-produção-trabalho, fazem do rural seu lugar de vida, onde tiram seu sustento e o fazem aliando diversos tipos de atividade (extrativista, agrícola e não agrícola). Nessa condição, encontram-se os seguintes sujeitos sociais (WANDERLEY, 2009, p. 40):

[...] pequenos ou médios agricultores, proprietários ou não de terras que trabalham; os assentados dos projetos de reforma agrária; trabalhadores assalariados que permanecem residindo no campo; povos das florestas; dentre os quais; agroextrativistas; caboclos, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, açaizeiros; seringueiros, as comunidades de fundo de pasto, geraiseiros; trabalhadores dos rios e dos mares, como os caiçaras, pescadores artesanais; e ainda comunidades indígenas e quilombolas.

Não obstante, os aspectos econômicos são insuficientes para explicar o processo de permanência desses sujeitos ao longo da história. Necessitam ser considerados na reprodução social da família camponesa aspectos ligados a identidade local, as relações de reciprocidade, a ética, a convivência com a natureza, o local de trabalho (pertencimento) e a família (SABOURIN, 2009; CARVALHO 2010). Nesta investigação compartilhamos da compreensão que a agricultura familiar camponesa é uma forma de vida muito mais complexa, trata-se de um “universo portador de um patrimônio sócio–cultural”, como afirma Lamarche (1993 apud WANDERLEY, 1996, p. 3) “não é um mero elemento da diversidade, mas contém em si mesma, a diversidade”.

Thomáz Júnior (2008) registra que a diferença ente o camponês brasileiro e o camponês europeu é o seu modo de vida, uma vez que o seu acesso a terra ocorreu, e ocorre, de forma precária e conflituosa. Daí vem sua importância em muitas das lutas camponesas de ontem e de hoje. A esse respeito encontramos em Marx (1984, p 15):

O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, em primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a reproduzir [...] Como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são, coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das contribuições materiais da sua produção.

A terra, portanto, é o meio de sobrevivência da família camponesa, tanto do ponto de vista material quanto simbólico, enquanto que na agricultura do tipo capitalista, a terra é objeto de negócio, instrumento de exploração do trabalho alheio e de especulação. As empresas do tipo capitalista supõe a necessidade do lucro, para estas, a terra é objeto de negócio, instrumento de exploração do trabalho alheio e de especulação (PAULINO, 2005). Para a autora, essa dualidade entre “terra de negócio” versus “terra de trabalho” explicita o caráter contraditório do desenvolvimento capitalista, que, por sua vez, oferece condições para o desenvolvimento das duas formas de propriedade da terra, embora nessa relação prevaleça à subordinação da propriedade camponesa à capitalista, dominante e hegemônica na formação econômica e social brasileira (ibidem).

No entanto, essa diferenciação não exclui a presença de excedente na agricultura familiar camponesa, nem tampouco significa um retorno à economia de subsistência, nem seu isolamento diante ao mercado (CARVALHO, 2010). Essas questões devem ser entendidas da seguinte forma: enquanto as empresas capitalistas acumulam para aumentar os seus lucros, a unidade camponesa busca satisfazer as necessidades da família, em alguns raros e nomeados casos, procura, com o pouco que lhe sobra, melhorar a eficiência da reprodução social do que produz.

Mendras, citado por Wanderley (2009, p. 157), acrescenta cinco características das sociedades camponesas:

a) uma relativa à autonomia em face da sociedade global; b) a importância estrutural dos grupos domésticos,

c) um sistema econômico de autarquia relativa;

d) uma sociedade de interconhecimento e a função decisiva dos mediadores entre a sociedade local e a sociedade global.

Em recente revisão dos estudos do campesinato, Ploeg (2010) procura responder qual o lugar que os camponeses ocupam nas sociedades atuais. Ele aborda o campesinato não como um remanescente do passado, mas como sujeito social do nosso tempo e da sociedade. No Brasil, essa realidade envolve milhões de famílias e, no mundo, cerca de um quarto de toda humanidade, acrescenta Carvalho (2010).

Em resenha realizada por Sabourin (2009, p. 32), encontramos a definição realizada por Ploeg acerca da “condição camponesa”, na qual a agricultura camponesa e/ou modo de produção camponês estão imersos: Ela é defina por seis características:

a) Uma relação de coprodução com a natureza;

b) A construção e autogestão de uma base autônoma de recursos próprios (terra, fertilidade, trabalho, capital);

c) Uma relação diferenciada com os mercados diversificados, resguardada certa autonomia;

d) Um projeto de sobrevivência e resistência à reprodução da unidade familiar; e) A pluriatividade

f) A cooperação das relações de reciprocidade.

No quadro abaixo, denominado por Ploeg (2009) de “Coreografia da condição camponesa”, podemos visualizar como estas características se conjugam para compor a natureza da agricultura camponesa.

Figura 1 - Coreografia da condição camponesa

Fonte: PLOEG (p. 18, 2009).

Observamos que os camponeses estão inseridos em um ambiente hostil e por vez submetidos a níveis diferenciados de dependência. A busca por autonomia, nessa leitura, passa pela criação e desenvolvimento de uma base de recursos autogerida envolvendo fatores de produção (terra, trabalho, gado, esterco, irrigação), como também fatores sociais

(conhecimento, redes, formação, etc.). Nessas condições, a relação do camponês com o mercado é de fundamental importância na busca de autonomia, mesmo porque a produção envolve custos monetários e a família não produz todos os itens que lhe são necessários (PLOEG, 2009). A produção e a reprodução da agricultura familiar camponesanecessitam também do apoio do Estado, isso como regra geral, explica Carvalho (2010), devido às condições desiguais com demais setores da economia. De modo, que para o autor sua possibilidade de reprodução, manutenção e de expansão dependem das politicas públicas e da ação dos movimentos e organizações sociais e sindicais (ibidem).

Sabourin (2009) diz que as unidades de produção que compõe o heterogêneo segmento da agricultura familiar no Brasil encontram-se revestidas de características camponesas. A trajetória do campesinato brasileiro, na percepção de Wanderley (2009, p. 168), se expressa na luta para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade e as principais estratégias na busca de autonomia são “as lutas por um espaço produtivo, pela constituição do patrimônio familiar e pela estruturação do estabelecimento como um espaço de trabalho da família”.

Postas estas questões, faremos, a seguir, algumas considerações sobre as noções de autonomia e de resistência, consideradas fundamentais para esse estudo.

A busca por autonomia é constante para os camponeses como forma de garantir produção e reprodução social da família, sobretudo em um contexto adverso caracterizado por relações de dependência, marginalização e privação. Essa busca apresenta-se de muitas e diferentes formas e, comumente, de maneira inter-relacionada nas lutas abertas e, com maior frequência, em ações aparentemente invisíveis como “[...] ocorre nos campos, currais e estábulos através de muitas decisões que precisam ser tomadas sobre a criação dos animais, a seleção de sementes, irrigação e o trabalho” (PLOEG, 2010, p. 61, tradução nossa). A noção de autonomia em Ploeg (ibidem) não está restrita a um estado de não dependência, ao contrário, ele se refere à autonomia do tipo relativa.

Wanderley, por sua vez, explica porque a autonomia da agricultura camponesa é sempre relativa (2009, p. 161).

A necessidade de reservar parte de seus recursos para as trocas com o conjunto da sociedade e para atender a suas imposições, termina por introduzir no interior do próprio modo de funcionamento do campesinato certos elementos que lhe são, originalmente, externos. De fato, o sistema de policultura-pequena produção é concebido como um todo, estruturado de forma a garantir a subsistência da família camponesa. Porém, ele não elimina a fragilidade da agricultura camponesa, nem impede a emergência das situações de miséria e de grandes crises: seus resultados dependem de suas causas aleatórias, de origem natural - os efeitos das intempéries - ou das implicações das relações político-sociais dominantes, especialmente a extração da renda da terra.

No caso do Brasil, esses sujeitos, na sua maioria, foram constantemente alijados das melhores terras e das condições para produzir (tecnologias, fomento agrícola entre outros). O Estado sempre teve um papel fundamental no sentido de apoiar a classe dominante e a reprodução das relações capitalistas, desde a Lei de Terras de 1850 até os dias atuais.

Assim em que medida a transição agroecológica, objeto dessa investigação, pode diminuir a dependência dos camponeses? Tomada como um processo amplo que vai além da convenção de sistemas convencionais em sistemas produtivos diversificados com menos dependência de insumos externos, a transição agroecológica implica também na “[...] reconexão da agricultura aos ecossistemas locais, na defesa de territórios e formas sustentáveis de vida [...] vinculada a formas de manejo e gestão dos recursos naturais dos povos e comunidades locais”. Estas, de forma geral, devem contribuir para o fortalecimento da autonomia dos agricultores familiares na produção e reprodução de sua base de recursos (SCHMITT & TYGEL, 2009, p. 105).

O fortalecimento da base de recursos ocorre, como observado ao longo da pesquisa, através da participação em redes sociotécnicas, pela ação social coletiva e não somente por meio dos recursos em si, nesse contexto as relações e os espaços de organização desemprenham um papel fundamental, no sentido da articulação e mobilização social (PLOEG, 2009).

Conforme Almeida (1999), a autonomia ocupa o centro das aspirações dos movimentos de contestação e, de modo específico, àqueles que integram os movimentos ligados às agriculturas de base ecológicas. Para o autor, a noção de autonomia está em contraposição ao de heteronomização35, isto é, a perca da auto regulação da agricultura camponesa. Por exemplo, as experiências de “agriculturas ecológicas”, de modo geral, caminham na contra mão da modernização que, permanentemente, ameaça a produção e reprodução camponesa, principalmente quando nega seus conhecimentos, saberes e técnicas tradicionais.

Ainda para o autor, essa noção se relaciona com uma espécie de reinvindicação- aspiração vinculada ao plano da produção, de modo particular, do trabalho. Nesse plano, Almeida (1999, p. 149) destaca três dimensões essenciais, quais sejam:

35Almeida toma emprestado de Ivan Illichi o termo heteronomização que significa na agricultura camponesa a

perda capacidade de sua auto regulação. “Em seu sentido etimológico é aquele ‘ que recebe do exterior as leis que regem sua conduta’ (ao inverso do que autonomia). Essa palavra vem do grego ‘heteros’ (outro) + ‘ nomos’ (lei)” (ALMEIDA 1999, p. 147).

a) a busca, por parte do trabalhador/agricultor, de uma autonomia na sua estrutura de produção, através de uma combinação entre energia e informação, esta aqui entendida no seu sentido mais amplo, reagrupando as atitudes o agricultor e os seus conhecimentos necessários à produção; b) uma autonomia baseada no espaço ou no