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A apreensão das determinações que a estrutura do sistema do capitalismo impõe sobre a agricultura e a questão ambiental na contemporaneidade exigem uma compreensão de sua gênese e de seu desenvolvimento no campo brasileiro. Gorender (1994, p. 16), inspirado em Marx, define assim o capitalismo:

[...] como um modo de produção em que operários assalariados, despossuídos de meios de produção e juridicamente livres, produzem mais-valia; em que a força de trabalho se converte em mercadoria, cuja oferta e demanda se processam nas condições de existência de um exercito industrial de reserva; em que os bens de produção assumem a forma de capital, isto é, não de mero patrimônio mas de capital, de propriedade privada destinada à reprodução ampliada sob a forma de valor, não de valor de uso, mas de valor que se destina ao mercado.

Essa definição estende-se também à agricultura, ainda que de forma incompleta, uma vez que ela se insere no sistema capitalista como um dos ramos da indústria, da tecelagem, da siderurgia, do ramo mecânico entre outros (GORENDER, 1994).

Sobre a instituição da propriedade nas mãos da burguesia, denominada por Marx (2003, p. 875) de acumulação primitiva, é decorrente “da expropriação da grande massa da população [os camponeses], despojada de suas terras, de seus meios de subsistência e desses instrumentos de trabalho” para transformar “[...] em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos” (MARX, 2003, p. 828).

O assalariado e o capitalista têm suas raízes na sujeição do trabalhador, isto é, na metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista9. Marx (2003, p. 829), assim descreve a pré-história do capitalismo:

Marcam época, na história da acumulação primitiva, todas as transformações que servem de alavanca à classe capitalista em formação, sobretudo aqueles deslocamentos de grandes massas humanas, súbita e violentamente privadas de seu meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como levas de proletários

9 O processo clássico de origem do capitalismo estudado por Marx não pode ser tomado como um processo

universal, uma vez que foi peculiar a Europa Ocidental, especificamente a Inglaterra. Ainda para o autor baseado em Marx o capitalismo nasce das entranhas do feudalismo beneficiando-se de formas de acumulação primitiva de capital, como o colonialismo e o trafico de escravos (GORENDER, 1994).

destituídos de direitos. A expropriação do produtor rural, do camponês, que fica privado de terras, constitui a base de todo o processo.

No Brasil pós-abolicionista, foi implantado um regime de trabalho baseado no trabalho livre, leia-se forçosamente livre, uma vez que com a liberalização da mão-de-obra escrava instituiu-se em 1850 a Lei de Terra10, impedindo que as terras fossem livremente ocupadas e ao mesmo tempo passando a acessá-las somente aquele que por ela pudesse pagar, desse modo, “cessado o cativeiro do trabalhador, foi necessário instituir o cativeiro da terra” (MARTINS, 2002, p. 167), pois o objetivo era garantir força de trabalho para atender a expansão da grande lavoura e não a redistribuição de terra, conforme demonstrou Martins.

A gênese do capitalismo no campo brasileiro, estudado por Gorender, consiste na transformação da renda da terra, seja pré-capitalista ou capitalista, em capital agrário. Conforme Martins (2002), houve uma espécie de pacto, onde a grande lavoura possibilitou a um só tempo a acumulação capitalista e a diversificação econômica. Se em outros países predominou a separação entre a propriedade do capital e a propriedade da terra e, ao mesmo tempo, a separação da classe dos capitalistas da dos proprietários de terra, no Brasil, revela o autor, ambos se fundiram. Martins (1993, p. 86) destaca como exemplo o governo militar que passou a subsidiar os grandes capitalistas, tornando-os, também, grandes proprietários de terra. E, atualmente, nos fala o autor que, “[...] os grandes bancos, os grandes industriais, as grandes empresas são proprietárias de terra, ou interessados na propriedade de terra mediante a associação com outros grupos econômicos [...]”. Daí resulta a especificidade da questão agrária brasileira, a do passado e a do presente.

É pelo mundo rural e pela penetração das relações capitalistas de produção na agricultura e na pecuária, que as análises devem iniciar, assim justificam Chesnais e Serfati (2003, p. 14):

Ali se situa um dos fundamentos mais cruciais do modo de produção e de dominação ao qual estamos submetidos e que se encontra também a origem de um dos mais permanentes mecanismos de agressão aos metabolismos sobre os quais a reprodução física da sociedade humana repousa. Estamos em presença de uma esfera em que o capital financeiro prossegue, mais ferozmente ainda, sua busca simultânea de lucro e de forças renovadas de dominação social. Ele se apoia num processo que remonta aos primórdios do capitalismo, mas que conheceu fases de trégua que, hoje, fazem figura da "idade de ouro".

10 A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850 – Lei de Terras dispõe sobre normas do Direito Agrário brasileiro.

Trata-se de uma legislação específica para a questão fundiária, que estabeleceu a compra como a única forma de acesso à terra. Esta Lei foi regulamentada em 30 de janeiro de 1854, pelo Decreto Imperial n°1318.

O modo de produção capitalista, concentrador de riquezas, alterou radicalmente as relações entre a sociedade e a natureza. Deslocou a satisfação das necessidades humanas (valor de uso) para a produção de excedentes, estratégia necessária ao consumo e acumulação de lucro (valor de troca). Mészáros (2002) chama esse fenômeno de “taxa decrescente do valor de uso das mercadorias”, isto é, se produz cada vez mais mercadorias, porém com uma menor vida útil.

O capitalismo tem levado ao extremo essa relação. Como expressão desse avanço, destacam-se a destruição da força de trabalho e a degradação da natureza. Nas palavras de Mészáros (2002, p. 18),

Sob as condições de uma crise estrutural do capital, seus conteúdos destrutivos aparecem em cena trazendo uma vingança, ativando o espectro de uma incontrolabilidade total, em uma forma que prefigura a autodestruição tanto do sistema reprodutivo social como da humanidade em geral

A consciência da interconexão entre as destruições ecológicas e as agressões contra as condições de existência dos agricultores e agricultoras tem sido pauta dos movimentos camponeses contemporâneos. Dentre eles, destacamos a Via Campesina, organização internacional autônoma que congrega organizações de camponesas, pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas cujas ações de mobilização têm denunciado entre outras questões os impactos negativos àsáude humana e ao meio ambiente provocados pelo uso abusivo dos agrotóxicos, assim como pautado a insustentabilidade do modelo agrícola dominante, no caso brasileiro, baseado no agronegócio.

Com efeito, nas décadas de 1970 e 1980, a problemática ambiental, ganha força na agenda de diferentes segmentos da sociedade mundial. As duas grandes crises do petróleo ocorridas em 1973 e 1979 contribuíram “para alertar ainda mais sobre o perigo que representaria a aproximação aos limites físicos do planeta, e o risco que suporia a transferência do modelo produtivista dos países industrializados aos países em desenvolvimento”11 (COSTABEBER. 2012, p. 17).

A publicação de A Primavera Silenciosa, de Raquel Carson, em 1962, representou um marco para o movimento ambientalista da década de 1970 ao denunciar os efeitos do uso de substâncias químicas, como agrotóxicos e insumos industriais sobre a qualidade de vida das populações. Esses estudos foram duramente atacados pelas indústrias produtoras de

11Trecho da tese de doutorado de José Antônio Costabeber (1998) intitulada de Accioncolectiva y processos de transición agroecológica em Rio Grande do Sul, Brasil.

agrotóxicos, o que não evitou que essa obra tornar-se um clássico na literatura ambientalista. De acordo com Lisboa (2009), até a publicação dessa obra, os produtos da indústria química eram vistos com entusiasmo.

Nessa década, a onda ambientalista12 começou a chamar atenção da sociedade, também, para os impactos danosos causados pelos testes atômicos, usinas nucleares, indústrias químicas e agrotóxicas. Os movimentos ambientalistas13 desse período passam a pautar a proibição e uso de substâncias tóxicas, herbicidas, pesticidas, agrotóxicos (LISBOA, 2009).

Os sinais de esgotamento dos recursos naturais, antes considerados inesgotáveis chamam atenção, pouco a pouco, para a questão ambiental, ainda que de forma difusa. Baseado em Silva (2010, p.67), entendemos por questão ambiental “um conjunto de deficiências na reprodução do sistema, o qual se origina na indisponibilidade ou escassez de elementos do processo produtivo advindos da natureza, tais como matérias-primas e energia e seus deslocamentos ideopolíticos”.

Outra produção importante para esse debate foi a publicação em 1972 do relatório “The limitsofgrowth” (Os limites do crescimento) pelo Clube de Roma. O documento anunciava, catastroficamente na perspectiva de Faladori e Tommasino (2000), que a continuação do ritmo de crescimento levaria a uma catástrofe ecológica e humana, sobretudo pela escassez de recursos naturais.

As teses do Clube de Roma apontavam o crescimento demográfico e a pressão que este tem sobre os recursos naturais da terra como um problema a ser enfrentado por toda a sociedade. No entanto, não questionava o consumo dos países centrais, ao mesmo tempo, culpabilizava os “pobres” pela degradação do planeta.

12 Lisboa comenta Alier ao buscar diferenciar as diferentes tendências que compõe o movimento ambientalista

internacional, propõe dividi-la em três correntes. A primeira carrega o nome de culto à natureza selvagem, possuía o caráter preservacionista e conservacionista, surgiu no final do século XIX e início do século XX , defendia fundamentalmente os ambientes naturais do avanço da modernidade. A segunda corrente agrega aqueles que consideram importante a conservação dos recursos naturais e, acreditam ser possível conciliar atividades econômicas e técnicas menos poluidoras de recursos naturais, ela é chamada por Alier de modernização ecológica. Por ultimo, a terceiro grupo , é formado por povos que lutam para preservar o meio ambiente em que vivem , são geralmente alvo de interesses políticos e econômicos, essa terceira corrente foi classificada pelo autor de ecologismo dos pobres, nela encontram-se os “povos indígenas e populações tradicionais - como extrativistas, pescadores artesanais, quilombolas e agricultores familiares – bem como, operários e moradores de áreas urbanas degradadas”. Lisboa esclarece que essa última corrente está em sintonia com o movimento de justiça social, nascido nas regiões urbanas degradadas no sul dos EUA (LISBOA, 2009, p. 130).

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Cabe lembrar que “os movimento ambientalistas têm como antecessores históricos os movimentos feministas, pacifistas, hippies etc.- movimentos de “contracultura” de larga visibilidade na década de 1960 - portadores de ideais de contestação às noções de progresso, de industrialização e de consumo, embora também estivessem aí implícitas outras problemáticas como as que dizem respeito à participação das mulheres, às contribuições da ciência e às questões étnicas” (SILVA, 2010, p. 83).

Para Silva (2010), o documento é conservador e de inspiração neomalthusiana14, na medida em que associa a miséria e a degradação ambiental ao crescimento populacional. De acordo com os ideólogos do Clube de Roma (SILVA, 2010, p.169), “a pobreza não resulta da desigualdade social, mas ao contrário: são as expressões desta última [...] que explicam o aumento da pobreza e da depreciação das condições de vida na sociedade industrial”.

O relatório trouxe à cena as graves consequências do uso indiscriminado e irracional dos recursos naturais, denúncias antes restritas aos movimentos ambientalistas e, sinalizou ainda a “impossibilidade de crescimento ilimitado num sistema que depende da existência de recursos naturais finitos” (SILVA, 2010, p 67).

Nesse processo de incorporar à problemática ambiental a agenda econômica e social, destaca-se a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 1972. No mesmo ano, foi realizada em Estocolmo, Suécia, a Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e Meio Ambiente. Na ocasião, foram definidos novos conceitos e estratégias relacionadas às ideias de “desenvolvimento” e “meio ambientes” 15.

Os defensores do desenvolvimentismo apontam o crescimento econômico como condição para a melhoria das condições de vida da população em contraponto às concepções neomalthusianas do Clube de Roma, ao mesmo tempo em que celebraram o “progresso” produzido indústria. O texto final expressa o acordo entre estas duas correntes quando afirma a proteção ao meio ambiente humano como fundamental, ao mesmo tempo em que coloca o desenvolvimento econômico e social como caminho para assegurar as melhores condições de trabalho e de vida na terra (SILVA, 2010).

A incorporação da problemática da crise ambiental, bem como as questões de preservação e conservação dos recursos naturais expressas na declaração, estavam longe de sugerir uma alteração que fosse ao ritmo da produção, consumo e mudanças no padrão de vida dos países desenvolvidos. Seu mérito, então, consistiu em dar maior visibilidade à “questão ambiental”, já que permaneceram praticamente intocadas as causas da “questão ambiental” e sua relação como o modo de produção capitalista (SILVA, 2010).

14 Segundo Malthus a população cresce conforme uma progressão geométrica, enquanto a produção de alimento

cresce seguindo uma progressão aritmética. Embora posteriormente esta formulação tenha se mostrado equivocada, sua proposição quanto a contenção do crescimento populacional como garantia de meios de sobrevivência para todos, mostrou-se bastante influente. Segundo Silva (2010, p. 168) ao relacionar as variáveis: população, produção de alimentos e poluição, os neomalthusianos constataram que os países de desenvolvimento industrial avançado têm as menores taxas de natalidade, ocorrendo o inverso com os de industrialização tardia, levando estes últimos a exercerem uma maior pressão sobre os recursos naturais, levando os ideólogos do capital a justificarem os problemas ambientais como sendo criados por razões externas aos processos produtivos.

15Foram ainda criados nesse encontro o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a Comissão

Nesse contexto, cabe destacar a concepção de Ecodesenvolvimento utilizada em 1973, por Maurice Strong, então diretor executivo PNUMA e, posteriormente, ampliada por Ignacy Sachs (1994, apud FOLADORI & TOMMASINO, 2000, p. 43), o qual estabeleceu os seguintes princípios básicos deste conceito, a saber:

i) satisfação das necessidades básicas, ii) solidariedade com as gerações futuras, iii) participação da população envolvida, iv) preservação dos recursos naturais e meio ambiente em geral, v) elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurança social e respeito a outras culturas, vi) programas de educação, vii) defesa da separação de países centrais e periféricos para garantir o desenvolvimento dos últimos.

A concepção de “ecodesenvolvimento” passou assim a ser amplamente difundida, dando o tom das discussões a respeito da questão ambiental, até ser, posteriormente,substituída pelo termo “desenvolvimento sustentável”.

Vinte anos após a primeira Conferência Mundial, foi realizada a II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano (Convenção RIO-92), ocasião em que, de acordo com Leff (2000), tentou-se dissolver as contradições entre meio ambiente e desenvolvimento, por meio do estabelecimento de um plano de ação mundial voltado a “questão ambiental” - Agenda 21. A Rio-92 evidenciou-se como uma etapa importante no contexto da proteção ambiental a nível planetário, complementam Chesnais e Serfati (2003, p.36), mas confirma o reforço dos “direitos” do capital sobre a natureza.

Decerto, ela reconhece que os camponeses e as comunidades utilizaram e conservaram os recursos genéticos, desde tempos imemoriais, mas não lhes concede nenhum direito de gestão ou de propriedade sobre esses recursos. De fato, a conferência consagrou os direitos de propriedade intelectual sobre o vivente, legitimando em escala internacional aquilo que os grupos americanos tinham começado a obter em seu país desde o início dos anos oitenta.