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Nos últimos duzentos anos, acreditava-sequeo crescimento da atividade industrial levaria a superação do caráter limitado das formas pré-industriais de interação do homem com a natureza. No entanto, após dois séculos de intenso crescimento econômico, os chamados “limites naturais”, “[...] exigem a superação de práticas agrícolas que a sociedade tende a considerar vulneráveis e nocivas em demasia” (VEIGA, 2003, p. 210).

Em face disso, pode-se dizer que não são os tais “limites naturais” os responsáveis diretos, tampouco as práticas convencionais, como costumam apregoar alguns ideólogos, os responsáveis pela insustentabilidade da vida no planeta. Mas a própria natureza destrutiva do capital, enquanto “contradição viva”, que impõe a subordinação da produção e do consumo aos imperativos da acumulação (SILVA, 2010, p. 48). Silva entende que:

[...] o capitalismo não pode sustentar-se indefinidamente, sem que os avanços tecnológicos e científicos por este obtidos resultem em crescente perdularidade e destruição. O assombroso aumento da produtividade do capital o faz senhor e voraz devorador dos recursos humanos e matérias do planeta para, em seguida, retomá-los como mercadorias de consumo de massa, cada vez mais subutilizados ou, diretamente, como armamentos com imenso poder destrutivo.

Para a autora, a dinâmica destrutiva desse sistema, mantém-se e aprofunda-se no mesmo ritmo das discussões que pautam a necessidade de preservação/conservação dos bens naturais. Ocorre, então, o investimento do Estado, no que diz respeito ao desenvolvimento de novas tecnologias, a intensificação dos processos de educação ambiental ou até mesmo a incorporação de indicadores socioambientais nas atividades mercantis, tal como ocorre nas empresas (SILVA, 2010).

Partindo do pressuposto de que é nas marcas de uma sociedade cindida em duas classes que a agricultura familiar camponesa se realiza como um modo de produção e de vida, a reflexão acerca da articulação entre a lógica destrutiva e suas repercussões para esse modo

de vida apontam o materialismo histórico e dialético como caminho metodológico para esta investigação.

Ao discutir a construção de uma categoria de análise no processo de apreensão do objeto, Ianni explica que o movimento dialético é sempre uma análise crítica sobre a história concreta dos seres sociais porque “primeiro parte da preliminar de que a realidade não se dá a conhecer a não ser pela reflexão demorada, reiterada, obstinada [...] essa observação de fato se demora sobre o objeto para desvendar, no objeto dimensões que não são visíveis, que não são dadas” (IANNI,1986, p. 3). Trata-se de um exercício de dedicação daqueles que buscam um acercamento da verdade.

Marx (1984, p. 14) formula assim a questão:

As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são dogmas, são premissas reais, e delas só na imaginação se pode abstrair. São os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto as que encontram como as que produzem pela própria ação. Estas premissas são, portanto, constatáveis de modo puramente empírico.

Quanto à questão do método em Marx29, Morais (2004, p. 49) sintetiza que o processo de conhecimento “[...] significa desvendar e reproduzir teoricamente o concreto real, no plano da consciência, como concreto pensado”. Nessa perspectiva, o concreto real se apresenta como uma unidade de múltiplas determinações cabendo à investigação e à exposição apanhar a racionalidade imanente ao objeto real, ou seja, apreender a sua totalidade, nesse aspecto que reside o critério de verdade do método.

Esse encontro - na análise da dinâmica da realidade por nós estudada –dá-se, prioritariamente, no cotidiano, terreno no qual os agricultores familiares e camponeses produzem e reproduzem as formas de praticar e viver agricultura, onde elaboram estratégias de organização social, vivem novas relações sociais e constroem saberes.

Na cotidianidade, eles participam com seu trabalho, necessidades, sentimentos, habilidades, sentidos, paixões, ideias, como homens inteiros30. Assim, vão tomando consciência da sua relação com o mundo objetivo, em sua totalidade e contradições, e se

29 O método não é uma receita, mapa, bula, mas como caminho, rumo, direção. Essa preocupação se justifica

quando se entende que a escolha do método é “[...] uma via de acesso que permite interpretar com maior coerência e correção possíveis às questões sociais propostas num dado estudo, dentro da perspectiva abraçada pelo pesquisador” (OLIVEIRA, 1998, p. 17).

30Entendemos conceito “o homem inteiro” da mesma forma como refletiu Santos (2009) que o concebe a partir

de diálogo feito com a Estética (1982) de Lukács. Conforme esclarece Santos, o filósofo húngaro entende que o homem inteiro é aquele imerso no cotidiano em toda a extensão de sua existência, em contraposição ao homem inteiramente que ultrapassa o imediatamente caótico da cotidianidade através, por exemplo, da ciências, da arte ou da religião. Uma vez elevado por sobre o cotidiano, o homem inteiro retorna a este solo enriquecendo-o com as objetivações superiores. Contudo, não há separação mecânica entre os dois momentos e ambos se processam na mesma esfera. Com efeito, o homem inteiro e o homem inteiramente existem a partir da cotidianidade.

reconhecendo como humano-genéricos, portanto, sujeitos históricos capazes de fazer escolhas, embora sempre dentro do campo de possibilidades posto no seu cotidiano, pela mediação da sua capacidade de produção. A esse respeito, assim expressa Heller:

A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja o seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais ‘insubstancial’ que seja que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente (1989, p. 17).

Evidenciar as trajetórias individual e coletiva, as relações com o Estado e as políticas públicas, com o mercado, as realidades específicas e o esforço de transformar coletivamente as formas de praticar agricultura a partir dessa esfera essencial da vida requer um movimento de ida e volta, o que significa dizer que na ”ida” o movimento vai do empírico ao abstrato e na “volta”, do abstrato ao concreto (MORAIS, 2004).

Esse movimento parte do cotidiano enriquece e volta para o próprio cotidiano, para entender melhor essa dialética Lukács31assinala que (1982 p. 11):

Se nós representarmos a cotidianidade como um grande rio, pode ser dito que dele se desprendem em formas superiores de recepção e reprodução da realidade, a ciência e a arte, e essas se diferenciam e se constituem de acordo com suas finalidades específicas, e alcançam sua forma pura nessa especificidade – que nasce das necessidades da vida social – para logo, em consequência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens, desembocar novamente na correnteza da vida cotidiana. Essa, por sua vez, se enriquece constantemente com os resultados superiores do espírito humano, o assimila as suas necessidades cotidianas práticas, dando assim lugar a questões e a exigências que originam ramificações de formas superiores de objetivação.

Com o entendimento de que a vida dos agricultores se dá na cotidianidade, as mudanças que nossa investigação busca desvelar junto às experiências vividas por esse grupo de pessoas, que, por sua vez, experimenta a transição agroecológica, apresentam como recorte à dimensão do social, que no entendimento de Siliprandi (2002 p. 39):

[...] abrange a dimensão produtiva e econômica, não só na preocupação com os resultados físicos ou financeiros, ou no entendimento do por que se adota ou não uma certa tecnologia; mas na forma como se organiza essa produção, nas relações de poder que estrutura na ação das pessoas, nas implicações que os processos de organização social trazem para as mudanças concretas na vida de todos.

Desse modo, ao reconhecer o sujeito e garantir sua centralidade na pesquisa, não se nega a importância da dimensão econômica. Como bem formulou Iamamoto (2010) em

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A tradução da Estética I de Lukács é fruto das reflexões produzidas pelo grupo de estudos Trabalho, educação, ciência e arte no cotidiano do ser social, vinculado ao Instituto de Estudos e Pesquisa do Movimento Operário da Universidade Estadual do Ceará (IMO-Universidade Estadual do Ceará).

diálogo com Marx, o mundo não pode ser compreendido unicamente através da experiência subjetiva. Portanto, o entendimento adotado para esta pesquisa é que a problemática deve ser analisada a partir da dialética objetividade-subjetividade. Com efeito, as determinações objetivas e a subjetividade dos sujeitos não podem ser concebidas separadamente. A subjetividade, explica-nos Saffiotti (apud BURGUIGNON, 2008), dá-se na relação entre o indivíduo e as estruturas culturais. Assim, a condição de vida e trabalho dos agricultores envolvidos com novos formatos de produção é, ao mesmo tempo, a história de suas relações sociais. Para Marx (1984), os homens ao produzirem seus meios de vida, produzem indiretamente sua vida material.

O ponto de encontro das experiências aqui estudadas é a Rede Agricultores Agroecológicos e Solidários do Território dos Vales do Curu e Aracatiaçu. Essa escolha fundamenta-se no estudo da ação social coletiva, como um elemento fundamental para compreendermos a consolidação de novos estilos de agricultura sustentável. Essa ação coletiva ou práxis libertadora proporciona, de acordo com Iamamoto baseado em Lukásc, “[...] a transformação dos explorados em sujeitos históricos conscientes [...]” (2010, p. 269). Iamamoto inspirada em Löwy (2010, p. 269), fala ainda que essa ação coletiva, embora não negue a cotidianidade, considerada categoria incomprimível da vida social, “conduz a sua suspensão durante o movimento revolucionário, e, sobretudo, ao mais largo prazo, à superação da natureza reificada das relações sociais no cotidiano”.

Para Lefebvre (1991), o cotidiano não é só um conceito, mas um fio condutor para captar, penetrar e definir a sociedade, situando o cotidiano no global. Como refletimos com Guimaraes Rosa na epígrafe desse capítulo, “[...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. A travessia revelará o que tem alimentado o movimento afirmativo sobre uma nova forma de produzir, materializado nas experiências de transição agroecológica, que combina as respostas econômicas e sociais imediatas postas pelos camponeses com a sua perspectiva estratégica de transformação do mundo (CARVALHO, 2009).