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2.3 Alternativas do capitalismo à questão ambiental e sua contraposição: Agroecologia

2.3.2 Contexto político brasileiro e o desafio do fazer agroecológico

Para apreendermos essa realidade sob o ponto de vista político, é fundamental, como demonstra Delgado (2010), retomarmos a década de 1990, período considerado crucial tanto pela continuidade do padrão dominante no meio rural no Brasil quanto pela gestação de uma visão alternativa acerca do significado do rural e de seu desenvolvimento e, portanto, pelas possibilidades de democratização das relações sociais e políticas no campo.

Esse cenário tenciona dois projetos políticos contraditórios e em disputa. Nas palavras de Delgado (2010), um projeto neoliberal, leia-se do agronegócio e o outro é o projeto democratizante, onde se insere o novo desenvolvimento rural baseado na agricultura familiar, cuja origem remonta a década de 1970.

A década 1990, mais especificamente no governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), foi marcada pelo desmonte do Sistema Nacional de Assistência Técnica, tendência seguida em função da crise financeira do Estado e do desmonte da política pública de regulação do Complexo Trigo Brasil, abrindo como explica Delgado (2010, p. 29)

[...] a porta para o abandono do sistema de politica agrícola baseado na coordenação do mercado interno e na intervenção direta nos mercados agrícolas e para a opção por uma estratégia de liberalização de mercado e de privatização de instrumentos de politica, que veio a ser implementada [...] numa conjuntura de abundancia de créditos internacionais para a economia brasileira - com efeitos negativos para a agricultura, principalmente a familiar.

Em seguida, Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002) governou de forma a coadunar com o projeto neoliberal, promoveu a abertura ao sistema financeiro e concedeu aos empresários rurais empréstimos a juros mais baixos do que os destinados para os agricultores familiares. A proposta desse projeto seguia as seguintes orientações (DELGADO, 2010,p. 33):

(1) de privatização do setor produtivo estatal e de redução do protagonismo do Estado no crescimento econômico, (2) de ênfase no papel ativo das empresas internacionais em mercados domésticos desregulados e liberalizados, através da abertura comercial, e (3) do papel estratégico das exportações agrícolas para enfrentar o estrangulamento recorrente da balança de pagamentos - especialmente em uma economia que se estava tornando mais aberta e desregulada – e alavancar a retomada do crescimento econômico.

Delgado (2010, p. 35) assevera que a relativa desindustrialização parece ter induzido nas décadas de 1980 e 1990 o retorno do país ao projeto de “vocação agroexportador” defendido historicamente pela elite agrária. Essa política consolidou a

agricultura moderna de exportação, favorecendo o agronegócio, definido a partir do caso

brasileiro, como: “[...] um bloco econômico e de poder bastante amplo e internacionalizado,

relacionado a diversas atividades agrícolas, agrárias e agroindustriais domésticas, e que inclui produtores e empresários capitalistas, latifundiários e setores industriais e financeiros nacionais e estrangeiros”.

Para Delgado (2010, p. 35), a análise concreta da economia, da sociedade e da política de agronegócio precede o rompimento com uma perspectiva de analise que o toma como um “bloco monolítico”, uma vez que se trata de uma realidade que precisa ser apreendida a partir da sua diversidade, heterogeneidade e de sua especificidade de componentes, sobretudo no que se refere a sua relação com o Estado e a sociedade.

Nossa intenção não é realizar uma análise profunda sobre atuação desses governos sobre o meio rural, contudo destacar algumas tendências e, portanto, situar as experiências da agricultura familiar camponesa na perspectiva agroecológica por nós investigada.

No governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007- 2010), verificou-se a continuidade do projeto neoliberal, especialmente em relação à agricultura e ao meio rural, materializada na defesa da convivência equilibrada entre o modelo do agronegócio e da agricultura familiar. Delgado (2010) ilustra essa tendência a partir dos seguintes elementos: a manutenção da lógica neoliberalizante assumida por Fernando Henrique Cardoso; a importância conferida ao agronegócio, que continuou determinando a agenda de negociações comerciais sobre a agricultura no país, em que pese a decisão governamental de permitir a produção de produtos transgênicos; verificou-se, também, a inflexão na importância assumida

pela reforma agrária. A esse respeito, o autor afirma que as políticas parecem dissociar a necessidade histórica de reforma agrária das políticas destinadas à agricultura familiar, o que faz o governo de Lula se aproximar do governo de Fernando Henrique Cardoso. De modo geral, houve um prosseguimento do padrão predominante de modernização da agricultura, “não obstante sua preocupação anunciada com a redução das desigualdades no campo, em espacial através da inclusão de agricultores até aqui excluídos do processo de modernização” (DELGADO, 2010, p. 41).

O que não significa dizer que não houve oportunidades, especialmente àquelas ligadas ao segmento da agricultura familiar e outas populações e povos que vivem no meio rural. Foi construído um aparato governamental22 para esse segmento. Nesse contexto, destacamos a reconstrução da Política Nacional de Assessoria Técnica e Extensão Rural23 (2003), a aprovação a Lei da Agricultura Familiar24 (2006) e a institucionalização da à Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária - PNATER25 e do Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária – PRONATER26 (2010).

Em 2003, o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, por meio da Secretaria de Agricultura Familiar – SAF, iniciou a reconstrução da Política Nacional de Assessoria Técnica e Extensão Rural (PNATER). A elaboração dessa nova política resultou de um processo de discussão entre as esferas do governo, os segmentos da sociedade civil e os movimentos sociais do campo. A PNATER foi fortemente influenciada pelas práticas inovadoras de ATER das ONGs, sendo, reconhecidamente, uma conquista resultante das lutas dos movimentos e organizações sociais do campo. A agroecologia aparece pela primeira vez

22

Em relação às políticas publicas de desenvolvimento rural baseados na agricultura familiar se destacam: o Plano Safra para a Agricultura familiar, a criação pela Conab, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa da Alimentação Escolar (PNAE) e, mais recentemente, o Programa Brasil sem Miséria (2011) destinado às famílias que se encontram abaixo da linha da pobreza (incluindo ainda comunidades e povos tradicionais e assentados da reforma agrária).

23 As atividades da ATER voltadas a atender agricultores familiares, assentados, quilombolas, pescadores

artesanais, povos indígenas e outros passam a ser coordenadas pela SAF/MDA, como estabelece o decreto nº 4739 de 13 de junho de 2003.

24

A lei Nº 11.326, de 24 de junho de 2006, estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Nela considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que prática atividade no meio rural e que atende um conjunto de requisitos que contemplam a heterogeneidade de caraterísticas desse segmento.

25

Lei Nº 12.188, de 11 janeiro de 2010.

26 Para essa lei, entende-se por Assistência Técnica e Extensão Rural: serviço de educação não formal, de caráter

continuado, no meio rural, que promove processos de gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e dos serviços agropecuários e não agropecuários, inclusive das atividades agroextrativistas, florestais e artesanais; (BRASIL, 2010).

em uma política pública nacional, sob a forma de princípios norteadores para as ações de assistência técnica e extensão rural, como segue (BRASIL, 2004):

Contribuir para a promoção do desenvolvimento rural sustentável, com ênfase em processos de desenvolvimento endógeno, apoiando os agricultores familiares e demais públicos descritos anteriormente, na potencialização do uso sustentável dos recursos naturais.

Adotar uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar, estimulando a adoção de novos enfoques metodológicos participativos e de um paradigma tecnológico baseado nos princípios da Agroecologia.

Desenvolver processos educativos permanentes e continuados, a partir de um enfoque dialético, humanista e construtivista, visando à formação de competências, mudanças de atitudes e procedimentos dos atores sociais, que potencializem os objetivos de melhoria da qualidade de vida e de promoção do desenvolvimento rural sustentável.

Apesar dos avanços alcançados no campo agroecológico, observa-se um retrocesso na PNATER. Petersen e Caporal (2012), ao discutirem as Políticas públicas e agroecologia no Brasil, avaliam queum conjunto de proposições de caráter metodológico, introduzidas na lei de Ater (2010), contradizem os princípios básicos para o desenvolvimento de serviços de Ater baseados na perspectiva agroecológica. Não houve um esforço para o aperfeiçoamento da política, ao contrário, houve a reedição de uma abordagem difusionista, em que os editais públicos de contratação dos serviços de Ater, por exemplo, continuam apostando em práticas individualizadas e, totalmente na contramão dos avanços metodológicos estimulados pelas dinâmicas territoriais de inovação agroecológica. Os movimentos sociais rurais e representantes do segmento da agricultura familiar denunciam não haverem participado da reelaboração da política, de modo que esta não reflete as demandas postas pelos sujeitos implicados nestas ações.

Nesse mesmo período, o Brasil passou a ostentar o titulo de campeão mundial no consumo de agrotóxicos, sendo que, em 2008, movimentou 6, 62 bilhões de dólares “[...] para um consumo de 725,6 mil toneladas de agrotóxicos - o que representa 3,7 quilos de agrotóxicos por habitante. Em 2009, as vendas atingiram 789.974 toneladas, e em 2010 ultrapassaram a casa de 1 milhão de toneladas” 27 (RIGOTTO, et al., p. 219, 2011).

Em se tratando da assistência técnica, na pesquisa de campo realizada junto a agricultores familiares, no sentido de subsidiar as reflexões trazidas no presente trabalho, foram destacados dois aspectos: um diz respeito à dificuldade para acessar os serviços de

27 A Via Campesina em 2011 encabeçou a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e nesse mesmo sentido

o diretor Sílvio Tendler lançou o filme O Veneno Está na Mesa, ambos discutem o trágico efeito à agricultura brasileira do uso de agrotóxicos. É uma alerta e ao mesmo tempo uma convocatória a sociedade brasileira para se envolver nessa discussão.

assistência técnica e o segundo diz respeito à descontinuidade da assistência prestada. Dona Rita, da comunidade de Cimuaba, no município de Tururu-CE, situa esse problema da seguinte forma:

É muito difícil. Nós tivemos apoio do SENAR [Serviço Nacional de Aprendizagem Rural] as capacitações e do Cetra na informalidade. A gente fica tirando um pouquinho de cada um. A gente pediu uma agente rural à EMATERCE e o agente rural passou três anos. É um projeto pobre, quando a pessoa acaba de se adaptar àquele meio aí começa a trabalhar, aí acaba o contrato e aí não renova não! Acho isso muito errado. Nosso problema é assistência técnica, também falta recurso, mas aí agente pega de um, se arranja com outro e se vira, porque a mão de obra é da família, né?(silêncio) Infelizmente é assim!

Referente às políticas para agricultura familiar, a lógica continua no sentido da “modernização”, restrita às mudanças de base técnica, sem questionar o uso de agroquímicos, ao financiamento de maquinas e equipamentos destinados a “modernizar” as unidades produtivas. Nesse sentido, destaca-se o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF28, política que nasceu a partir das reivindicação dos trabalhadores rurais e do movimento sindical e proporciona o acesso aos serviços ofertados pelo sistema financeiro nacional. O Pronaf se constituiu, durante a última década, como a principal política pública do Governo Federal para apoiar os agricultores familiares (SCHNEIDER et al., 2004).

Petersen e Caporal (2012) registram que no Pronaf encontram-se linhas específicas para o financiamento de agriculturas alternativas, como o Pronaf Agroecologia, Pronaf Florestas, Pronaf Semiárido entre outros. No entanto, os agricultores apontam dificuldades para acessar essas linhas, visto que os agentes financeiros não têm o devido esclarecimento sobre os programas e, ainda continuam a operar sob a lógica dos pacotes tecnológicos da revolução verde, ignorando a racionalidade das unidades de produtivas da agricultura familiar camponesa. Esses problemas são vivenciados cotidianamente pelos camponeses quando buscam acessar estes recursos, conforme explica o agricultor José Júlio, do assentamento Várzea do Mundaú, no município de Trairi-Ce:

Nunca consegui acessar crédito para esse tipo de produção. Existem muitas dificuldades; o banco só quer liberar recurso para comprar veneno. Tem toda uma burocracia. No papel tem crédito para a agroecologia, mas, na realidade, é difícil. Tem a história, mas não tem o dinheiro para o agricultor.

28 O PRONAF foi criado no governo de Fernando Henrique Cardoso no ano de 1996, através do Decreto

Presidencial nº 1.946, de 28/07/1996 por meio da reivindicação da Contag e, negociada pelo Movimento dos trabalhadores sem Terra (MST) com o Governo Federal. A partir de 2003 houve um aumento da disponibilidade de recursos, o volume total de crédito passou de R$ 2,3 bilhões na safra 2002/2003 para R$ 10,7 bilhões 2008/2009, o que corresponde um acréscimo de 365% (DELGADO, 2010).

A existência por si só dessaslinhas de crédito não garantemseu acesso pelos agricultores, sendo ainda bastante restritas.Já as agências de financiamento oficiais ao lado dos serviços de assistência técnica (governamental e não governamental) , como se observou ao longo desse estudo, reproduzem, de modo geral, o modelo de modernização técnica baseado nos pacotes convencionais. Zé Júlio, em seu depoimento, expressa a dificuldade de acessar as linhas de crédito específicas à produção de base ecológica, destacando as dificuldades e ao mesmo tempo denunciando a burocracia que cerca os investimentos disponibilizados aos agricultores , em muitos casos determinantes para a estruturação e restruturação das unidades familiares - compra de insumos e animais e construção de pequenas infraestruturas entre outras necessidades que não são atendidas pelo crédito destinado aos agricultores e agricultoras. As experiências analisadas ao longo da pesquisa deflagram essa realidade que tende a ser desigual quando se parte para analisar diferentes regiões do país.

Nessa perspectiva, a discussão sobre as políticas públicas dirigidas ao segmento da agricultura familiar camponesa nos leva ainda a outro conjunto de questões, quais sejam: como são produzidos os alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, quem os produz, sob quais condições e quem tem acesso a eles?

Nesse caminho, questionamos ainda: quais são as possibilidades de se construir outro modelo de produção e tecnológico no campo, a partir da interação entre conhecimento técnico científico e as experiências camponesas inspiradas na agroecologia?

CAPÍTLO 2

3 TRAVESSIA: OS REFERENCIAIS QUE ILUMINARAM A PESQUISA

Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai darna outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou [...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia...”

(João Guimarães Rosa)