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AIDS, vulnerabilidades e os desafi os do cuidar

Se hoje fi zermos um balanço das perdas e danos causados pela epide- mia, talvez possamos compreender de outra forma as primeiras metáforas sobre a doença e perceber que o maior estrago causado por elas talvez não tenha sido para os seus estigmatizados (eu diria tão-somente), mas sim para os que por elas se deixaram ser seduzidos (TRENCH, 1997).

Todos fomos seduzidos pela fratura da humanidade entre “eles” e “nós”. Como consequência dessa divisão, enfrentamos uma epidemia – a do pre- conceito, de sequelas tão perigosas quanto a epidemia do vírus HIV. Refor-

çou-se a atitude moralista da sexualidade, que por um lado difi culta nossa abordagem sobre as doenças no campo da sexualidade, desde as DST mais conhecidas até as hepatites, cuja transmissão é sexual, e por outro, nossos tabus e preconceitos difi cultam a prevenção.

Dessa forma, contribuímos para que muitos adoeçam de uma en- fermidade que acreditam não poder contrair, ou não se submetem ao tra- tamento para não se deparar com o preconceito, com a rejeição, ou mesmo no caso das doenças não letais transmitidas sexualmente por vergonha e receio de julgamentos.

A primeira modalidade de abordagem da relação dos indivíduos com a AIDS foi na forma de grupos de risco. A característica principal desse modelo foi exatamente a crença de que a doença era coisa dos “ou- tros”. Os “outros”, no caso, como já abordado, seriam aqueles que ma- nifestam sexualidade desviante (homossexuais), excessiva e pecaminosa (prostitutas), ou então que praticam crime (uso de drogas injetáveis). Ora, a maioria de nós julga-se, ou está de fato, distante dessas realidades.

Outra decorrência dessa postura de identifi car a AIDS com grupos de risco é buscar parceiros(as) para se relacionar que não pertençam a es- ses grupos. Veja-se o famoso diálogo entre médico e homem solteiro. Per- gunta o médico: “Você está praticando sexo seguro?”. Responde o homem: “Sim, doutor, eu sempre pratico sexo seguro. Nunca mais transei com prostitutas, agora só  transo com mulher casada.”. Na lógica dos grupos de risco, esse homem está de fato fazendo a “prevenção” (SEFFNER, 1998).

A modalidade seguinte da relação dos indivíduos com a AIDS, fruto em especial da reivindicação do movimento gay e de amplas cam- panhas das organizações não governamentais de luta contra a AIDS, foi a designação de comportamentos de risco ou atitudes de risco.

Essa nova designação foi adotada quando as estatísticas da AIDS começaram a mostrar que a doença atinge indivíduos ‘fora’ dos grupos de risco tradicionais, ou seja, atinge a todos que adotam comportamen- tos de risco, como manter relações sexuais sem o uso do preservativo, compartilhar seringas, receber transfusão de sangue não testado etc. Em que pese os evidentes avanços que essa forma de nomeação guarda com a anterior, um dos problemas é que ela ‘apaga’ determinados fatores que tornam alguns indivíduos mais vulneráveis à epidemia do que outros, tais como questões econômicas, acesso a informações, existência de serviços de saúde e aconselhamento etc.

De fato, a AIDS não é exatamente uma doença “de todos nós”, uma vez que não estamos todos na mesma posição social frente a ela. Outro problema do conceito de comportamentos de risco é que todo o trabalho de prevenção passa a ter uma ótica individualista e culpabilizante: “se

86 Unidade 1 O contexto da Política para as DST, AIDS e Hepatites Virais

fulano se infectou pelo HIV, é porque ele realizou um comportamento de risco”. Logo, a “culpa” é dele (SEFFNER, 1998). 

Na ideia de grupo de risco, a grande estratégia é isolar. Na ideia de comportamento de risco, a grande estratégia é o adestramento individual. Pensar que o modo de conduzir a vida nos remete às condições maiores ou menores de exposição ao adoecimento é dialogar para além dos dados estatísticos. É buscar descobrir como determinados caminhos têm sido con- denados à repetição por falta de alternativas. Refl exão vislumbrada com a utilização do conceito de vulnerabilidade.

Trata-se aqui, de considerar a chance de exposição de pessoas ao ado- ecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas indivi- duais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para se proteger de ambos, envolvendo em suas análises, a avaliação articulada de três eixos interliga- dos: componente individual, social e programático (AYRES, 1999).

Parker (1996, p. 5), ao referir-se a esse conceito diz:

Talvez a mais importante transformação isolada em nossa maneira de pensar sobre HIV/AIDS no início dos anos 90 tinha sido esforço de superar essa contradição (entre “grupos de riscos” e “população geral”) pela passagem de noção de risco individual a uma nova com- preensão de vulnerabilidade social, passagem crucial não só para nossa compreensão de epidemia, mas para qualquer estratégia capaz de conter seu avanço.

Em outras palavras, pensar e atuar diante da relação de um indivíduo com a AIDS implica levar em conta a situação social e cultural, o status econômi- co, as crenças e valores, as questões de gênero, a autoestima, os projetos de vida, a situação legal e jurídica do país em que vive esse indivíduo, condições de acesso aos serviços de saúde e muitos outros fatores. Ou seja, implica na compreensão do grau de vulnerabilidade desse indivíduo à epidemia.

Afi nal, não é mais possível falar em AIDS sem olharmos para as con- dições de manutenção e agravo da epidemia, sobre as motivações que vêm guiando nossas respostas, nosso enfrentamento. Sobre o tipo de racionali- dade que guia nossas ações.