• Nenhum resultado encontrado

Além deste público privilegiado, o lai estava também ligado à música, quando

No documento Do Canto à Escrita (páginas 74-78)

Maria Ana Ramos

5. Além deste público privilegiado, o lai estava também ligado à música, quando

encontramos referências ao canto, ou à peça musical que o inspirou. No entanto, os

lais de Marie, de fundo narrativo, não devem ter estado vinculados à performance 51 Ibid., pp. 384-385.

52 No anónimo Guigamor, várias ocorrências de raconter (‘contar’ no seu ambiente; os antigos

‘contaram’…): Que tele aventure a trovee / Por raconter en sa contree (vv. 395-396); Tex i a de la vielle gente e / Qui racontent assez sovent (vv. 603-604); M’aventure reconterai (v. 614). Igualmente no anónimo Graelent, a rainha ouve os louvores e o relato dos méritos: La roïne l’oï loer / Et de lui granz biens raconter (vv. 27-28). Em Yonec, o ‘contar’ está envolvido por lágrimas para referir o melhor dos cavaleiros: Cil comencierent a

plurer / E en plurant a recunter / Que c’iert li mieudre chevaliers (vv. 513-515). O ‘contar’ está dependente do

‘memorizar’ e, ao mesmo tempo, do perpetuar a memória. É assim que as formas remanbrance / remembrance têm significado ao lado das formas membrer / remembre, por oposição ao esquecimento, ubliance. Logo, é evocado o interesse para a posteridade no Prólogo: Ke pur remambrance les firent / Des aventures qu’il oïrent (vv. 35-36). É o mesmo tipo de fórmula que figura no lai anónimo, Désiré: Por remembrance un lai en firent (v. 4). E é também deste modo que Bisclavret é feito para que o episódio seja para sempre rememorado: Veraie fu,

n’en dutez mie / De Bisclavret fu fez li lais / Pur remembrance a tuz dis mais (vv. 315-318) e em posição de rima

em Equitan Fere les lais pur remembrance / Qu’um mes meïst en ubliance / Une nt firent, k’oï cunter / Ki ne fet

mie a ublier (vv. 7-10), em intensificação semântica, entre memória e esquecimento. É necessário ‘contar’ para

‘lembrar’ para que a história não caia em esquecimento (Ibid., pp. 166-167; 240-241; 332-333; 450-451; 638-639; 722-723; 734-735; 736-737; 776-777).

53 Nos lais galego-portugueses, também não se documentam derivados de memorar ou rememorar, mas

musical. O eco melodioso, que neles comparece, resulta da memória que os interligava ao canto passado. No lai anónimo, Graelent, a alusão musical é explícita no verso que evoca, logo no incipit, tanto o oïr, como a memorização das notas54:

L’aventure de Graelent

Vos dirai si com je l’entent: Bons en est li lais a oïr, Et les notes a retenir (vv. 1-4)

Nos versos finais de Guigemar, atribuído a Marie, são muito claras as alusões à música harmoniosa55:

De cest cunte k’oï avez Fu Guigemar li lais trovez Que hum fait en harpe e en rote

Bone en est a oïr la note (vv. 883-886)56

Os instrumentos vão ser realmente mencionados mais de uma vez, como a harpa, a rota, a viela. Tristan no lai Chèvrefeuille de Marie de France é bom intérprete de harpa e compositor de lai57:

Tristram en Wales s’en rala, Tant que sis uncles le manda. Pur la joie qu’il ot eüe

54 Ibid., pp. 774-775. Graelent é um lai anónimo de inspiração bretã, provavelmente fonte de inspiração

para o lai Lanval de Marie de France (O’HARA TOBIN, P. M., op. cit., pp. 127-155).

55 KOBLE, N., SÉGUY, M., op. cit., pp. 238-239. Também no lai anónimo, Nabaret, no primeiros versos,

quando se anuncia o nome do cavaleiro, figura central do lai, a música, ou melhor, a escola de música, é claramente referida no explicit do lai: En Bretaigne fu li laiz fet / ke nus appellum Nabaret. / Nabaret fu un chevaler / pruz

e curteis, hardi e fer (vv.1-4); En plusurs lius [le] recunterent / Pur le deduit de la parole. / Cil ki de lais tindrent

l’escole / De Nabarez un lai noterent, / E de sun nun le lai nomerent (vv. 44-48) (BURGESS, G. S., BROOK, L.

C., Three Old French Lays: Trot, Lecheor, Nabaret, Ed. and translated by…, Liverpool, University of Liverpool/ Department of French, 1999, pp. 83-88 (Liverpool Online Series: Critical Editions of French Texts, 1), disponível em: http://www.liv.ac.uk/media/livacuk/modern-languages-and-cultures/liverpoolonline/narrativelays.pdf

56 A harpa é certamente instrumento musical mais nobre do que a rota. É assim que Tristan aqui

comparece com a harpa, tal como no romance de Thomas. As regras, pronunciadas por S. Bento, a propósito da humildade – baixar-se para se elevar – são postas em evidência quando Tristan encontra Iseut tocando rota, que é naturalmente um instrumento menos digno para o seu estatuto social. Na versão da lenda em Gottfried von Strassburg, é contudo o raptor que toca rota e Tristan toca harpa, instrumento mais valorizante (LOOPER, J., «L’épisode de la Harpe et de la Rote dans la légende de Tristan. Étude sur le symbolisme de deux instruments de musique», in Cahiers de civilisation médiévale, 38e année, n° 152 (octobre-décembre, 1995), pp. 345-352, disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/ article/ccmed_00079731_1995_num_38_152_2629).

De s’amie qu’il ot veüe E pur ceo k’il aveit escrit, Si cum la reïne l’ot dit,

Pur les paroles remembrer, Tristram, ki bien saveit harper, En aveit fet un nuvel lai;

Asez briefment le numerai:

Gotelef l’apelent en Engleis, Chevrefoil le nument Franceis.

dit vus en ai la verité

del lai que j’ai ici cunté (vv. 105-118)

A constância da música é perseverante e comparece associada ao lai, como parte integrante deste tipo de composição. A distinção entre notas musicais e canto é explicitada em Wace no Roman de Brut (ca. 1155). O aguerrido Balduf faz-se passar por bretão e, ao disfarçar-se de jogral, sabe cantar e tocar58:

Aveit apris a chanter

E lais e notes a harper (vv. 9103-9104)

Ainda neste mesmo texto, a famosa passagem sobre Blegabred retoma a competência musical59:

De tuz estrumenz sout maistrie Si sout de tute chanterie

Mult sout de lais, mult sout de notes (vv. 3697-3699)

A distinção entre palavras e notas é evidente. No Tristan de Thomas, quando Iseut canta o seu lai pitus d’amour (Fragmento do ms. Sneyd: Le Mariage), há não só uma alusão à qualidade do lai, como também à voz e ao tom, quer dizer à aptidão musical60:

58 ARNOLD, I. (ed.), Le roman de Brut de Wace, par…, 2 vol., Paris, Société des anciens textes français,

1938-1940, p. 480.

59 Ibid., p. 199.

60 PAYEN, J. Ch. (ed.), Tristan et Yseut. Les Tristan en vers: “Tristan” de Béroul, “Tristan” de Thomas,

“Folie Tristan” de Berne, “Folie Tristan” d’Oxford, “Chèvrefeuille”de Marie de France. Édition comprenant

texte, traduction nouvelle, introduction, bibliographie, documents, notes critiques et notes par… Éd. révisée et augmentée, Paris, Garnier, 1980. Releia-se a reconstituição de J. Bédier: «Le soir, quand les tables furent levées, un jongleur gallois, maître en son art, s’avança parmi les barons assemblés, et chanta des lais de harpe. Tristan était assis aux pieds du roi, et, comme le harpeur préludait à une nouvelle mélodie, Tristan lui parla ainsi:

«Maître, ce lai est beau entre tous: jadis les anciens Bretons l’ont fait pour célébrer les amours de Graelent. L’air en est doux, et douces les paroles. Maître, ta voix est habile, harpe-le bien!»

Ysolt chante molt dulcement, La voiz acorde a l’estrument.

Les mains sunt beles, li lais buens, Dulce la voiz e bas li tons (vv. 997-1000)

A ressonância, que perpetua entre o lai e a sua interpretação, é também perceptível em Benoît de Saint Maure, Roman de Troie (ca. 1165). No episódio das Amazonas, os lais bretões são acompanhados por harpe, viëlle61:

Haut s’escriënt a l’avenir Mais soz ciel n’est rien a oïr

Avers eles: lais de Bretons, Harpe, viëlle n’autre sons

N’est se plors non avers lor criz (vv. 23595-23601)

E Chrétien de Troyes, Cligès (ca. 1176) deixará o som das espadas notar um lai e os elementos que as fazem ressoar62:

As espees notent un lai

Sor les hiaumes qui retantissent, Si que lor janz s’an esbaïssent. Et sanble a çaus qui les esgardent.

Que li hiaume espraingnent et ardent (vv. 4070-4074)

A interligação do lai à procedência bretã e à interpretação musical não deve concluir-se sem relembrar o famoso episódio de Renart no Roman de Renart (1170- -1250) (branche I). Dissimulado também de jogral, como poderá tornar mais verídico o seu disfarce? À frente do lobo Ysengrin, Renart revelará as suas competências como jogral inglês – sublinhe-se – abrilhantando a sua aptidão justamente com a interpretação de lais bretões. Renart vestido de amarelo, alicia o lobo para o levar à

Le Gallois chanta, puis répondit:

«Enfant, que sais-tu donc de l’art des instruments? Si les marchands de la terre de Loonnois enseignent aussi à leurs fils le jeu des harpes, des rotes et des vielles, lève-toi, prends cette harpe, et montre ton adresse.» Tristan prit la harpe et chanta si bellement que les barons s’attendrissaient à l’entendre. Et Marc admirait le harpeur venu de ce pays de Loonnois où jadis Rivalen avait emporté Blanchefleur.

Quand le lai fut achevé, le roi se tut longuement» (BÉDIER, J., Le Roman de Tristan et Iseut renouvelé par…, Paris, H. Piazza, 1910, pp. 31-32).

61 CONSTANS, L. (ed.), Le roman de Troie par Benoît de Sainte-Maure. Publ. d’après tous les ms. connus,

par…, Paris, Firmin Didot, 1904-1912, IV, 1908, p. 27.

62 FOERSTER, W. (ed.), Cligés. Christian von Troyes. Textausgabe mit Einleitung und Glossar,

corte e sedu-lo pelo seu conhecimento de lais arturianos (Merlin, Artu, Tristran), mas também pelo famoso chèvrefeuille, igualmente tristaniano, e o lobo não deixará de o interrogar sobre o seu conhecimento do lai de dame Iseu. O conhecimento é tal que ainda evoca o lai de Noton (personagem diabólica) e o lai de saint Brandan (herói da viagem de S. Brandão, monge irlandês e as suas visões do inferno)63:

Por qoi? Tu n’as point de vïel – Je fot servir molt volenter Tote la gent de ma mester.

Ge fot savoir bon lai breton

Et de Merlin et de Noton Del roi Artu et de Tristran, Del chevrefoil, de saint Brandan – Et ses tu le lai dam Iset? Ya, ya: goditoët,

Ge fot saver, fet il, trestoz (vv. 2386-2394)

Também neste caso, os lais galego-portugueses não deixam transparecer a presença de instrumentos musicais, apesar de várias citações à performance instrumental nas cantigas64. Como vamos ver, será apenas o verbo <cantar>, que

denunciará o comparecimento musical. Em B2 (cantando, cantamos), em B4 (canto) e em B5 (cantemos).

No documento Do Canto à Escrita (páginas 74-78)