• Nenhum resultado encontrado

Yara Frateschi Vieira

No documento Do Canto à Escrita (páginas 43-47)

Dentre as cinco composições que abrem o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e são conhecidas como lais de Bretanha (B 1, B 2, B 3, B 4 e B 5),2 duas, as de número 2 e

5, colocam problemas específicos, quando comparadas às outras três:

1. não se enquadram, pelo assunto e pela forma, ao contexto narrativo-lírico do Roman

de Tristan, único romance em prosa da matéria de Bretanha que contém inserções

líricas de lais e no qual se encontram os modelos das outras três; 1 Universidade Estadual de Campinas.

2 Os cinco «Lais de Bretanha» encontram-se copiados no Cancioneiro da Biblioteca Nacional (f. 4v; f. 10r

e 10v); outra cópia existe no ms. miscelâneo Vat. Lat. 7182 (f. 276r-278r), da Biblioteca Vaticana, também designado pelas siglas Va (PELLEGRINI, Silvio, «I “Lais” portoghesi del Codice Vaticano Lat. 7182», in Studi

su trove e trovatori della prima lirica ispano-portoghese, Torino, Giuseppe Gambino, 1937, pp. 41-54. [repr. de

«Archivum Romanicum», 12 (1928), pp. 303-317], p. 41) ou então L (BREA, Mercedes (org.), Lírica Profana

Galego-Portuguesa, 2 vols., Santiago de Compostela, Xunta de Galicia/Centro de Investigaciones Linguísticas

y Literarias Ramón Piñeiro, 1996, p. 25). O estudo mais completo sobre os «Lais de Bretanha» continua sendo o de VASCONCELOS, Carolina Michaëlis, «Lais de Bretanha (CB – 1-5 = CA 311-315)», in Revista Lusitana, 6 (1900-1901), pp. 1-43; outros trabalhos têm-se dedicado a problemas específicos de edição, fontes, autoria e tradução. Cf., por exemplo, PELLEGRINI, Silvio, op. cit.; SHARRER, Harvey L., «La materia de Bretaña en la poesía gallego-portuguesa», in BELTRÁN, V. (ed.), Actas del I Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura

Medieval, Santiago de Compostela, 2 al 6 de Diciembre de 1985, Barcelona, PPU, 1988; RON FERNÁNDEz, Xosé

Xabier (1999), «Entre traducción e intertextualidad: reflexiones sobre los Lais de Bretanha gallego-portugueses», in PAREDES J., MUñOz RAYA, E. (eds.), Traducir la Edad Media. La traducción de la literatura medieval

románica, Granada, Universidad de Granada, 1999, pp. 423-449; MEGALE, Heitor, «As cinco cantigas bretãs

portuguesas», in Santa Barbara Portuguese Studies. Galician-Portuguese Poetry, Prose & Linguistics, VI (2002), pp. 116-133 (uma proposta de edição crítica, na verdade semi-diplomática); SORIANO ROBLES, Lurdes, «Los lais de Bretanha gallego-portugueses y sus modelos franceses (Tristan en prose y Suite du Merlin de la Post- Vulgata artúrica)», in SERRANO REYES, J. L. (ed.), Cancioneros en Baena. Actas del II Congreso Internacional

Cancionero de Baena. In Memoriam Manuel Alvar, V. II, Baena: Ayuntamiento de Baena, 2003, pp. 27-46;

GUTIÉRREz GARCíA, Santiago, «La poética compositiva de los Lais de Bretanha: Amor, des que m’á vós cheguei y los lais anómalos de la Post-Vulgata», in Revista de poética medieval, 19 (2007), pp. 93-113; ARBOR ALDEA, Mariña, «Lais de Bretanha Galego-portugueses e Tradición Manuscrita: as relacións entre B e L», in ILIESCU, M., et al. (eds.) Actes du XXVe. Congrès International de Linguistique et de Philologie Romane, vol. VI, Berlin/New York, De Gruyter, 2010, pp. 11-20; VIEIRA, Yara Frateschi, «Os Lais de Bretanha: voltando à questão da autoria», in MONGELLI, L. M. (org.), E fizerom taes maravilhas… Histórias de Cavaleiros e Cavalarias, São Paulo, Ateliê Editorial, 2012, pp. 527-544 [publicado também online: http://editora.fflch.usp.br/sites/editora. fflch.usp.br/files/655-688.pdf] e IDEM, «Tornada en lenguagen palavra per palavra», in ALVAREz, R., et al. (eds.), Ao sabor do texto. Estudos dedicados a Ivo Castro, Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, 2013, pp. 545-560; LORENzO GRADíN, Pilar, «Los lais de Bretanha: de la compilación en prosa al cancionero», in e-Spania. Revue interdisciplinaire d’études hispaniques médiévales et modernes, 16 (2013). Mariña Arbor Aldea, segundo informa no seu artigo, tem no prelo uma edição crítica dos textos.

2. não foram localizados até agora os originais de que teriam sido traduzidas3 as suas

partes líricas;

3. não possuem a forma estrófica dos lais integrados ou arturianos, mas a de uma

cantiga de amigo tradicional: B 2 – ababCC;4 B 5 – abbaCC.5

O gênero poético a que pertenceriam ambos os textos pareceria não colocar problema, observando-se que um deles, B 2, se autoclassifica como «bailada»: «andamos fazendo dança / cantando nossas bailadas!» (vv. 15-16), enquanto o outro, B 5, se autodenomina «lais»: «cantemos-lhe aqueste lais!» (v. 4), ao mesmo tempo que inclui a chamada à dança: «e dancemos» (vv. 2 e 9).

No entanto, a dificuldade em encontrar os respectivos originais e a consideração dos aspectos relacionados aos gêneros ligados à dança, transmitidos nos romances franceses e nos cancioneiros românicos dos séculos XIII e XIV, obrigam-nos a examinar com mais atenção os pontos anteriormente mencionados.

Os originais

Ao contrário dos outros lais, cujo modelos franceses foram logo identificados por Carolina Michaëlis como lais líricos inseridos no Roman de Tristan,6 essas duas

composições têm-se revelado elusivas no que diz respeito à definição da sua eventual fonte. Textos franceses, porém, têm sido propostos como possíveis modelos para cada um deles. Trata-se de dois episódios narrativos presentes, respectivamente, na Suite du Merlin e na sua continuação, publicada por Fanni Bogdanow com o título de La Folie Lancelot (vd. infra). Nesses episódios não consta, contudo, o texto das correspondentes cantigas de dança, mas apenas o que se poderia considerar, como veremos mais adiante, a citação dos refrães que um grupo de donzelas

3 A rubrica que Colocci copiou no fol. 4v do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, em seguida ao fim

da fragmentária Poética anônima, inclui a única declaração que possuímos, no corpus da lírica galego- portuguesa, de que a peça seria aquilo que, em português contemporâneo, chamaríamos uma «tradução», talvez literal, de outro texto: «Esta cantiga é a primeira que achamos que foi feita e fezeron-na quatro donzelas en tempo de Rei Artur a Maraot d’Irlanda por la […] e tornada en lenguagen palavra per palavra. E diz assi: O Maraot […] aja mal grado». Acerca dos problemas ligados ao sentido da expressão «tornada en lenguagen», cf. VIEIRA, Yara Frateschi, «Tornada en lenguagen palavra per palavra», op. cit..

4 Esquema 99:77, total de 81 ocorrências (TAVANI, Giuseppe, Repertorio metrico della lirica galego-

-portoghese, Edizione dell’Ateneo, Roma, 1967).

5 Esquema 160: 396, total de 466 ocorrências (ibid.).

6 Cf. VASCONCELOS, Carolina Michaëlis, op. cit., vol. II, pp. 483-9; BAUMGARTNER, Emmanuèle,

«Sur les pièces lyriques du Tristan en prose», in BIANCIOTTO, G., et al. (eds.) Études de langue et de

littérature du moyen âge offertes à Felix Lecoy par ses collègues, ses élèves et ses amis, Paris, 1973, pp. 19-25;

MAILLARD, Jean (1957), «Le lai lyrique et les légendes arthuriennes», in Bulletins bibliographiques de la

société internationale arthurienne, 9 (1957), pp. 124-127; FOTITCH, Tatiana, STEINER, Ruth, Les lais du roman de Tristan en prose, d’après le manuscript de Vienne 2542, München, Fink, 1974.

cantava, enquanto dançava à volta de um escudo. Por esse motivo, os estudiosos que aceitam tais textos como os prováveis originais de B2 e B5 têm suposto, em geral, que o «adaptador» galego-português se sentira autorizado a «recriar», a partir dos estribilhos, o texto completo das respectivas cantigas.7

Vejamos, portanto, esses textos franceses que, de acordo com o estado atual do nosso conhecimento, teriam dado origem a ambos os lais galego-portugueses. Neles conta-se que algumas donzelas «carolent et chantent» à volta de um escudo: no caso de B 2, trata-se do escudo de Marot/Morolt de Irlanda; no caso de B 5, do escudo de Lancelot.

O contexto narrativo que teria sugerido a composição de B 2 encontra-se na

Suite du Merlin da Pós-Vulgata, transmitido no ms. Add. 38117, da British Library

(o chamado ms. Huth, publicado por Paris e Ulrich, 1886) e no ms. BNf 112:

Apriés eure de tierche lour avint qu’ils vinrent dalés un bois et trouverent damoiseles qui karoloient entour un arbre, et pooient bien estre dusques a .XII. Et devant elles avoit .II. chevaliers tous armés montés seur .II. grans chevaus, et estoient ambedui si apresté qu’il n’i failloit fors que del poindre. A l’arbre entour qui les damoiseles karoloient avoit pendu un escu tout blanc sans entresaingne nule. Et ensi coume chascune passoit par devant l’escu, elle rakoit et escopissoit desus et disoit: «Diex doinst honte a chelui qui te sout porter, car il nous a mainte honte porcachie!» Et lors recommenchoit sa

chanchon et respondoit avoec les autres. Gavains vient pres des damoiseles et

escoute chou que elles disoient. Et quant il l’a bien entendu, il demande a son

7 Cf. SHARRER, Harvey L., op. cit. p. 566 e também «The Acclimatization of the Lancelot-Grail Cycle

in Spain and Portugal», in KIBLER, W. W. (ed.), The Lancelot-Grail Cycle: Text and Transformation, Austin, University of Texas Press, 1994, pp. 175-190; GUTIÉRREz GARCíA, Santiago, LORENzO GRADíN, Pilar,

A literatura artúrica en Galicia e Portugal na Idade Media, Santiago de Compostela, Universidade de Santiago

de Compostela, 2001, pp. 101-109. Recentemente, contudo, levantou-se a proposta de que ambas as peças pudessem figurar como inserções líricas no modelo em prosa manejado pelo adaptador galego-português (cf. LORENzO GRADíN, Pilar, «Los lais de Bretanha: de la compilación en prosa al cancionero», op. cit.). Levando em conta, porém, que a prática da tradução na Idade Média era distinta da que se impôs nos dois últimos séculos e o fato de não dispormos, em nenhum testemunho da matéria de Bretanha, de registro de cantigas de dança, prefiro continuar aceitando a hipótese de o “tradutor” galego-português ter “completado” o texto que lhe parecia apenas parcialmente anotado nas fontes de que dispunha. A própria autora do referido artigo aponta, na nota 6, que, na compilação italiana da Tavola Ritonda (apud BRANCA, Daniela Delcorno,

Tristano e Lancillotto in Italia. Studi di letteratura arturiana, Ravenna, Longo Editore, 1998, pp. 64-65), o

autor procede com as peças líricas do modelo francês de maneira semelhante ao adaptador galego-português: «Di fronte ai lais, così numerosi nel romanzo francese, la Tav. Rit. preferisce, più che tradurli, procedere a variazioni in proprio e aggiunte, magari là dove i componimenti erano solo menzionati» (itálicos meus). Sobre a atividade tradutora na Idade Média e em particular com referência aos lais, cf. VIEIRA, Yara Frateschi, op.

cousin: «Entendés vous ceste canchon? – «Oïl bien», fait il. «Elles dient que

maugrés en ait li Morhous se elles chantent».8 (itálicos acrescentados)

[Após a hora de terça ocorreu que [Galvão e Ivã] chegaram a um bosque e encontraram donzelas que karoloient à volta de uma árvore e podiam ser bem até doze. E diante delas havia dois cavaleiros totalmente armados, sobre dois grandes cavalos. E estavam ambos tão preparados que não lhes faltava senão atacar. E dessa árvore a cuja volta karoloient as donzelas, pendia um escudo inteiramente branco, sem insígnia alguma. E quando cada uma das donzelas passava diante do escudo, cuspia-lhe em cima e dizia: «Deus envergonhe o que te costumava trazer, pois ele nos causou muita vergonha!» E depois recomeçava a sua canção e respondia com as outras. Galvão chega perto das donzelas e ouve o que elas

diziam. E depois que as ouviu, pergunta a seu primo: «Ouves esta canção?» «Sim»,

responde ele, «elas dizem que mal grado haja o Morholt quando elas cantam».]

Quanto a B 5, outro contexto narrativo tem sido sugerido como aquele que teria dado origem ao lai galego-português. Trata-se de uma passagem contida no segmento que Fanni Bogdanow publicou sob o título de La Folie Lancelot, a partir dos mss. BNf 112 e 12599:

Et quant les damoyselles orent veue la jouste, elles viennent a l’escu et ly enclinent toutes, et puis commencent a karoler et a chanter et disoient en leur

chanson: «Voirement est ce ly escus au meilleur chevalier du monde». Et sachés

que tant comme Lancelot demoura en l’isle ne fu il puis nul jour que elles ne 8 ROUSSINEAU, Giles, La Suite du Roman de Merlin, édition critique par… 2ème. éd. en un volume,

Genève, Droz, 2006, p. 370. A edição de Roussineau, no que se refere aos parágrafos I – 443, baseia-se no ms. Add. 38117 da British Library (ms. Huth). Cf. ibid., p. xlii. O ms. BNf 112 (ff. 17v-58r), que contém a mesma passagem, foi editado por Sommer como se segue: «Apres heure de tierce leur auint quilz vindrent deles .j. bois et trouuerent damoiselles qui karoloient entour .j. arbre, et pouoient bien ester iusqua .xij. Et deuant elles auoit .ij. cheualiers tous armes sur . ij. grans cheuaulx. Et estoient amduy si apreste quil ny failloit fors du poindre. Et a cel arbre [entour] cui les damoyselles karoloient auoit .i. escu pendu tout blanc sans autre enseigne nulle. Et ainsi comme chascune demoiselle passoit par deuant lescu, elle crachoit dessus et disoit: «Dieux doint honte a cellui qui te souloit porter, car il nous a mainte honte pourchassee!» Et lors recommencoit sa chanson et respondoit auec les autres. Gauuain vient pres des damoyselles et ecoute ce quelles dient. Et quant il la bien entendu, il demande a son cousin: «Entendes vous ceste chanson?» «Oil bien», fait il, «elles dient que mal gre en ait le Mor[h]olt.» (SOMMER, H. Oskar, Die Abenteuer Gawains, Ywains und Le Morholts mit den drei

Jungfrauen aus der Trilogie (Demanda) des Pseudo-Robert de Borron. Die Fortsetzung des Huth-Merlin nach der allein bekannten Hs. Nr. 112 der Pariser National Bibliothek, Halle, Max Niemeyer Verlag (Beihefte zur Zeitschrift für romanische Philologie, 47), 1913, pp. 3-4. Os primeiros a identificar essa passagem como a fonte

de B 2 foram William J. ENTWISTLE (The Arthurian Legend in the Literatures of the Spanish Peninsula, New York, Phaeton Press, 1975 [1a. ed. 1925], pp. 156-7) e Maria Rosa Lida de MALKIEL («Arthurian Legend in Spain and Portugal», in LOOMIS, R. S. (ed.), Arthurian Literature in the Middle Ages. A Collaborative History, Oxford, Clarendon Press, 2001 [1a. ed. 1959], p. 411).

venissent devant l’escu et que elles n’y carolassent .iii. fois le jour aussi bien

l’yver come l’esté.9 (itálicos acrescentados)

[E depois que as donzelas viram a justa, vêm ao escudo e inclinam-se todas, e começam a karoler e a cantar e diziam na sua canção: «Verdadeiramente é este

o escudo do melhor cavaleiro do mundo». E sabei que enquanto Lancelot esteve

na ilha não houve um só dia que elas não viessem diante do escudo e que não

carolassent três vezes por dia ali, tanto no inverno como no verão.]

Os itálicos acrescentados têm o propósito de evidenciar os seguintes vocábulos:

– karoloient/ karoler/ carolassent – chanchon / canchon / chanson – chanter

– respondoit avoec les autres – disoient (2) / dient

– maugrés en ait li Morhous

– Voirement est ce ly escus au meilleur chevalier du monde

Se de fato, como se supõe, esses trechos correspondem às matrizes dos lais galego-portugueses em questão, os termos destacados podem ajudar-nos a reconstruir o quadro dos movimentos das donzelas à volta dos respectivos escudos, juntamente com o que diziam e cantavam.

No documento Do Canto à Escrita (páginas 43-47)