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A denominação lai permite apontar para diferentes domínios de observação Por

No documento Do Canto à Escrita (páginas 65-70)

Maria Ana Ramos

3. A denominação lai permite apontar para diferentes domínios de observação Por

um lado, a génese céltica, na medida em que os estudos se iniciam com a redescoberta dos lais de Marie de France20. Sublinhando a origem bretã, a designação relaciona-

-se, em primeiro lugar, com o canto. Mas, além de canto e música, lai vai também

18 Mencionado no v. 4 das Fables no Epilogue, datáveis entre 1167-1189 (DESGRUGILLERS-BILLARD,

N. (ed.), Fables: texte original en ancien français, manuscrit Harley 978 du British Museum, Tome 4, Œuvres

complètes de Marie de France, Clermont-Ferrand, Paleo («L’encyclopédie médiévale», 3), 2007).

19 A ideia de que o próprio Conde D. Pedro poderia ter sido o autor destes poemas (C. Michaëlis) e a

ambiguidade entre personagem histórica e personagem de ficção (autoria concedida a Tristan) foi assunto reexaminado e estudado por VIEIRA, Y. F., «Os Lais de Bretanha: voltando à questão da autoria», op. cit..

20 Os lais de Marie de France são ‘redescobertos’ através da citação à sua composição poética em três

obras. O conjunto de lais, as fables e o Espurgatoire seint Patriz (Purgatoire de saint Patrice) no famoso verso

Marie ai nun, si sui de France (Fables, Épilogue, v. 4). Os lais, escritos à volta de 1160, encontram-se na sua

totalidade transcritos em único ms. (Londres, British Library, Harley 978). Inspirou-se certamente na tradição céltica, mas também em Ovídio, Eneas, Brut de Wace e em Tristan, articulando os dois mundos, o bretão e o cortês (MÉNARD, Ph., Les lais de Marie de France, contes d’amour et d’aventure du Moyen Age, Paris, PUF, 1979, Littératures modernes; 2e éd. revue, corr. et augmentée, PUF, Paris, 1995.). Marie de France comparece

mencionada, pela primeira vez, na história da poesia inglesa de Thomas Warton (1774). Thomas WARTON (1728-1790) poeta, crítico e historiador foi autor de The History of English Poetry, from the Close of the Eleventh to

the Commencement of the Eighteenth Century (1774-1781). Um conjunto de estudos sobre a receção de Marie de

France foi editada por MARÉCHAL, C., The Reception and transmission of the works of Marie de France, 1774-1974. Ed. with an introd. by…, Lewiston [NY]/Queenston [Ont.]/Lampeter [GB], Edwin Mellen Press, 2003.

ser identificado com narrativa, e ainda servir-se de uma etimologia latina [versus] LAICUS/LAICE, forma mais popular, que o dissociaria do ambiente bretão, como pretendeu Baum21. Deve recordar-se que na poesia irlandesa, «lai» era um interlúdio

lírico, integrado num ‘récit’ em prosa, um canto de pássaros, uma peça de versos22.

No Prólogo geral ao seu trabalho poético, Marie de France anuncia os motivos do seu interesse pelos lais. Ouviu-os, reportando-nos para uma ressonância oral, para um oïr passado e ‘verdadeiro’, que pode ser transferido para o presente da narrativa: Des lais pensai, k’oïz aveie23.

É interessante notar que o imperativo de filiação e de encadeamento textual é omnipresente nos lais de Marie, numa forma de legitimação integrada na própria estrutura do texto. No lai Guigemar, por exemplo, este passado revelou-se através de histórias ‘verídicas’, transmitidas pelos lais bretões, que lhe proporcionam matéria para a composição: Les contes ke jo sai verrais / Dunt li Bretun unt fait les lais24.

A designação lai vai assim comparecer, muitas vezes, no própio incipit dos textos. Esta nomeação exprime a perceção, que lhe era atribuída pelos compositores com o lai de Frêne, ou com Bisclaveret, quando anuncia que, ao decidir conceber

lais, não pôde esquecer o que ‘ouviu’ em Bisclaveret25: Le lai del Freisne vus dirai

Sulunc le cunt que jeo sai

En Bretaine jadis maneient (vv.1-3)

Quant de lais faire m’entremet

Ne voil ublier Bisclaveret (vv. 1-2)

Em outros casos, como em Le Laüstic (o rouxinol), é anunciado que será ‘contada’ uma história, uma ‘aventura’, da qual os bretões já tinham feito um lai26:

21 BAUM, R., «Eine neue Etymologie von frz. ‘lai’ und apr. ‘lais’. zugleich: Ein Plädoyer für die

zusammenarbeit von Sprach- und Literaturwissenschaft», in Beiträge zum romanischen Mittelalter, Zeitschrift

für romanische Philologie, Sondernband zum 100 jährigen Bestehen, ed. K. Baldinger, Tübingen, 1977, pp. 17-78.

22 A palavra pode derivar do irlandês loid, laid, documentado no séc. IX (JUBAINVILLE, H. D’A, «Lai»,

in Romania, 8 (1879), pp. 422-425). A forma celta leich significa canção em irlandês antigo. O lai reproduziria um motivo conhecido do público e seria acompanhado por um instrumento musical, em geral a harpa (MAILLARD, J., op. cit.; PAYEN, J. Ch., Le fabliau. Le lai narratif, («Typologie des sources du moyen âge occidental», Bd. 13) Turnnout, Brepols, 1975).

23 Para as ocorrências, aqui mencionadas, referentes a passagens dos lais, retiro-as da edição anotada

de KOBLE, N., SÉGUY, M., Lais Bretons (XIIe-XIIIe siècles). Marie de France et ses contemporains, éd. et trad. de…, Paris, Champion, 2011 («Champion Classiques Moyen Âge», 32), pp. 166-167, v. 33. Para os lais de Marie de France, as Autoras servem-se fundamentalmente da edição canónica de J. RYCHNER (1966; 1981) e para os

lais anónimos propõem uma reedição (Ibid., pp. 109-112).

24 Ibid., pp. 168-169, vv. 19-20. 25 Ibid., pp. 266-267; 308-309. 26 Ibid., pp. 456-457.

Une aventure vus dirai

Dunt li Breton firent un lai (vv. 1-2)27

A deliberação para realçar a fonte de inspiração passada e de os contar em verso, valorizando a reminiscência, é anunciado em Yonec28:

Puis que des lais ai comencié

Ja n’iert pur mun travail laissié; Les aventures que j’en sai

Tut par rime les cunterai (vv. 1-4)

No lai de Milon também se menciona no prelúdio explicativo a denominação

lai e as causas da sua composição29:

Ici comencerai Milun E musterai par brief sermum Pur quei e comente fu trovez

Li lais ki issi est numez. (vv. 5-8)

No lai do Chèvrefeuille, a declaração tanto comparece nos versos iniciais como em outros também com o objetivo de ‘contar’ a verdadeira história30. É neste lai que

Tristan é nomeado como bom músico (Tristram, ki bien saveit harper, v. 112) e como bom compositor de lai (En aveit fet un nuvel lai, v. 113)31:

Asez me pletz e bien le voil,

Del lai qu’hum nume Chievrefoil

Que la verité vus en cunt

Pur quei fu fez, comente e dunt (vv. 1-4)

27 Do mesmo modo, em Lanval, nova «aventura» é declarada: L’aventure d’un autre lai / Cum ele avint,

vus cunterai (vv. 1-2). E, além dos incipit, a indicação lai surge em outros versos introdutórios como em Les Deux amants. Jadis avint en Normendie / Une aventure mut oïe / […] / Un lai en firent li Bretun (vv. 1-2; 5)

(Ibid., pp. 334-335; 388-389). A este propósito, continua a ser incontornável o estudo de M. de Riquer sobre as formas de narrativa curta vacilantes, sobre a designação de ‘aventura’, de ‘lai’ e de ‘conto’ (RIQUER, M., «La ‘aventure’, el ‘lai’ y el ‘conte’ de Marie de France», in Filologia Romanza, 2 (1955), pp. 1-19).

28 KOBLE, N., SÉGUY, M., op. cit., pp. 408-409. 29 Ibid., pp. 470-471.

30 Além deste conhecido lai, atribuído a Marie de France, circulou também o lai em versão anónima com

o mesma designação, Chèvrefeuille (HOEPFFNER, E., «Les deux lais du Chèvrefeuille», in Mélanges de littérature,

d’histoire et de philologie offerts à Paul Laumonier par ses élèves et ses amis, Paris, E. Droz, 1935, pp. 41-49 (reed.:

Genève, Slatkine Reprints, 1972).

Precedido do qualificativo ‘muito antigo’ a referência a lai encontra-se no primeiro verso de Éliduc. O relato será contado com toda a ‘verdade’, tal como foi entendido. Neste lai, a forma volta a ser empregue como reforço da justeza no ‘contar’32:

D’un mut ancïen lai bretun

Le cunte e tute la reisun Vus dirai, si cum jeo entent La verité, mun escïent (vv. 1-3)

L’aventure dunt li lais fu

Si cum avint vus cunterai

La verité vus en dirrai (vv. 26-28)33

Identicamente nos lais anónimos, a menção a lai, comparece com a mesma fórmula, como em Désiré. É a nova composição que deve permitir preservar a memória do relato34:

Entente i ai mise et ma cure En raconter une aventure Dont cil qui a ce tens vesquirent

Por remembrance un lai en firent (vv. 1-4)35

O explicit oferece também casos de categorização com lai, como em Bisclavret, que encerra a composição, recordando que a história, ouvida e verdadeira, deverá marcar a memória para sempre36:

32 Ibid., pp. 544-545; 546-547.

33 Os primeiros versos de Le Chaitiel (O Infeliz, O Infortunado, ou As quatro dores) expressam também

a precedência textual (‘ouvir falar’ do lai com a menção do nome da cidade onde nascera o lai): Talent me prist

de remembrer / Un lai dunt jo oï parler / L’aventure vus en dirai / E la cité vuss numerai / U il fu nez e cum

ot nun / Le Chaitivel l’apelet hum / Ki l’apelent Les Quatre Deuls (vv. 1-7). Neste caso, voltamos a encontrar

a preocupação de preservar o episódio: Pur ceo que tant vus ai amez / Voil que mis doels seit remembrez; / De

vus quatre ferai un lai / E Quatre Dols le numerai (vv. 201-204). E, ainda neste lai, a nomeação do género é de

novo referida: Pur c’ert li lais de mei nomez / Le Chaitivel iert apelez (vv. 225-226); Or l’apelum Le Chaitivel /

Issi fu li lais comenciez (vv. 230-231) (Ibid., pp. 512-513; 528-529; 530-531).

34 Ibid., pp. 638-639.

35 Em Guingamor, outro lai anónimo, o incipit é claro: D’un lay vos dirai l’aventure / Nel tenez pas a

troveüre / Veritez est ce que dirai; / Guingamor apele on le lai (vv. 1-4). Em Graalent, outro lai, igualmente sem

autor, será agradável ouvir e memorizar a música: L’aventure de Graalent / Vos dirai si com je l’entent / Bons e

est li lais a oïr / Et les notes a retenir (vv. 1-4) (Ibid., pp. 696-697; 774-775).

L’aventure k’avez oïe Veraie fu, n’en dutez mie

De Bisclaveret fu fez li lais

Pur remembrance a tuz dis mais (vv. 315-318)37

A insistência na procedência do lai, comparecerá ainda em sintagmas, que introduzem o ‘compor’ um lai, como se observa no explicit de Frêne. O lai é formado depois de ser conhecido e depois de a história ter sido encontrada38:

Quant l’aventure fu seüe, Coment ele esteit avenue,

Le lai del Freisne en unt trové:

Pur la dame l’unt si numé (vv. 515-518)

No lai anónimo Désiré, esta noção da pré-existência de lai, ‘encontrado’ e ´retomado’ de uma «história» conhecida, é de novo asseverada também na justificatio final39:

Cil qui sorent ceste aventure

En avoient un lai trouvé

Que l’en apele Desirée (vv. 820-822)40

37 Também no lai Les Deux Amants, a síntese final relembra no explicit a história dos dois amantes, o

nome da montanha e o lai feito pelos bretões: Pur l’aventure des enfaunz / Ad nun li munz ‘des Deux Amanz’ / Issi avint cum dit vus ai; / Li Bretun en firent un lai (vv. 251-254). Com idêntico paralelismo, os últimos versos de Yonec concluem com o lai que recorda a compaixão pelos amantes: Cil ki ceste aventure oïrent /

Lunc tens aprés un lai en firent / De la pitié de la dolur / Que cil suffrirent pur amur (vv. 555-558). Com igual

fórmula encerra o lai Le Laüstic. A história não pode ficar muito tempo ‘escondida’, os bretões fizeram um

lai e chamaram-no o Laüstic: Cele aventure fu cuntee / Ne pot estre lunges celee. / Un lai en firent li Bretun

/ Le Laüstic l’apelë hum (vv. 157-160). A verdadeira história contada é relembrada no final do Chèvrefeuille:

Chievrefoil le nument Franceis / Dit vus en ai la verité / Del lai que j’ai ici cunté (vv. 116-118). E ainda no explicit

de Éliduc, a aventura evoca de novo o lai: De l’aventure de ces treis / Li auncïen Bretun curteis / Firent le lai pur

remembrer / Qu’hum nel deüst pas oblier (vv. 1181-1184). Igualmente no final de Milon, os antigos, que fizeram

o lai, são lembrados e Marie de France confessa o prazer em escrevê-lo e em contá-lo: De lur amur e de lur bien / Firent un lai li auncïen, / E jeo, ki l’ai mis en escrit / Al recunter mut me delit (vv. 531-534). No lai anónimo,

Graalent, o epílogo explica também que foram os bretões que compuseram o lai: L’histoire extraordinaire du destrier fidèle / et du chevalier/ qui partit avec sona mie / se répandit dans toute la Bretagne / Les Bretons en

firent un lai; / On l’appelle Graelent le Grand (vv. 751-756) (Ibid., pp. 406-407; 454-455; 468-469; 510-511;

542-543: 634-635; 822-823).

38 Ibid., pp. 694-695. 39 Ibid., pp. 694-695.

40 No Milon, insiste-se também no lai ‘encontrado’: Ici comencerai Milun / E musterai par brief sermun

/ Pur quei e coment fu trovez / Li lais ki issi est numez (vv. 5-8). E no anónimo Guingamor o explicit sublinha também esta noção da precedência com o lai ‘descoberto’: Por l’aventure reconter / En fist li rois un lai trover; / De Guingamor retint le non: / Ensi l’apelent li Breton (vv. 675-678) (Ibid., pp. 470-471; 740-741).

Portanto, para além da designação – lai –, o poema porá em evidência a obrigação de preservar uma ‘aventura’, de contar um passado «verdadeiro», a urgência do «lembrar» e do «rememorar» acontecimentos, que não se devem descurar, e também a «reisum», a circunstância que dá lugar ao lai, um pouco como as razós que explicitavam certas composições poéticas, um pouco como indicadores extra-narrativos. Estes elementos paratextuais, mas inseridos no próprio corpo da composição poética, estão amplamente documentados, como vimos, no ambiente galo-românico. No entanto, a tradição galego-portuguesa afasta-se, dando-nos estas notas informativas como rubricas esclarecedoras externas à construção da própria composição poética. Se a ‘aventura’ não é o que mais carateriza os lais galego- portugueses, a alusão a um ‘fazer’, a um rememorar, está subjacente à temática de cada um dos cinco textos conservados41.

No documento Do Canto à Escrita (páginas 65-70)