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Respondoit avoec les autres / Disoient / Dient

No documento Do Canto à Escrita (páginas 48-51)

Como já apontamos, um dos problemas levantados pelos dois trechos propostos como provável fonte para os lais galego-portugueses é o fato de neles não constar o texto de uma canção que tivesse servido de matriz às composições ibéricas, ausência essa que levou os estudiosos em geral a supor que o adaptador tivesse «recriado» os versos líricos pressupostos pelos episódios narrativos que lhe chamaram a atenção. A fim de tentar elucidar a questão, vale a pena, creio, examinar mais de perto algumas pistas que nos oferecem as versões francesas em causa, no que diz respeito à atividade coreográfica e ao eventual conteúdo lírico que constituiria o poema cantado pelas protagonistas.

A descrição dos gestos corporais e vocais das donzelas que dançam à volta do escudo de Marot, por exemplo, inclui: 1) a dança à volta do escudo; 2) o ato ofensivo

12 RENART, Jean, Le Roman de la rose ou de Guillaume de Dole, édité par Félix Lecoy, Paris, Librairie

Honoré Champion, 1969.

13 MULLALLY, Robert D. G., op. cit., pp. 77 e 65. 14 Ibid., p. 17.

de cuspir-lhe em cima e maldizer o seu dono; 3) a ação de recomeçar a canção e «responder com as outras».

Os dois primeiros itens não colocam problemas. Mas o que significaria, exatamente, no terceiro, a expressão «responder com as outras»? Uma indicação poderia prover do fato de que, em provençal, «respos» é dado como sinônimo de «refranh», nos meados do séc. XIV.15 Já na liturgia católica, o termo «repons» (lat. responsum)

designa os refrães retomados pelo coro, alternando na salmodia responsorial com os versos cantados pelo solista.16 Nos léxicos franceses medievais, por sua vez, o verbo

«respondre» tem, dentre os demais significados, o de «chanter sa partie dans un choeur».17 O dicionário do antigo francês de Tobler-Lommatzsch propõe para o verbo

a acepção de «den Refrän zum Liedem eines anderen singen»18. Mullally19 contesta-a,

contudo, a partir da análise do contexto em que o vocábulo ocorre nos exemplos citados naquele verbete e em outros do século XIII, concluindo que:

All these examples make choral participation generally seem highly unlikely. Rather the implication is of a succession of solo singers, and respondre means ‘to respond’, and denotes the reaction of the others dancers, and it is this reaction that is constantly emphasized. The observation made by several medieval French authors on the favourable reception of the singing of a song suggests, perhaps, that it was the singing of these songs that constituted the chief pleasure in a performance of a carole, which, after all, was the simplest of dances.

15 Cf.: «La difinitios de dansa. Dansa es us dictatz gracios que conte un refranh, so es un respos, solamen,

e tres coblas semblans en la fi al respos en compass et en acordansa. E la tornado deu esser semblans al respos. (…) E.l respos deu esser del compass de meia cobla, o quaysh, so es mays o mens de dos bordonetz.» (Las Flors

del Gay Saber, trad. de M. le Marquis d’Aguilar revue et complétée par M. Gatien-Arnoult, vol. 1, Toulouse,

Typ. de J.-B. Paya, 1841, vol. I, p. 340-1)

16 Cf. Ortolang/Lexicographie – http://www.cnrtl.fr/lexicographie/répons: «2. Ca. 1190 liturg. «faire le

respont [des psaumes]» (Renart, éd. M. Roques, 12324); ca. 1223 «respons chanter» (GAUTIER DE COINCI,

Miracles, éd. V. Fr. Koenig, 1 Mir 31, 210)»; O termo corresponde ao latim responsum; cf. DU CANGE, s.v.

Gradale: Graduale a gradibus dicitur, quia in gradibus canitur. Hoc etiam Responsum vocatur, quia choro

cantante, ab uno versus respondetur.

17 Cf. LA CURNE DE SAINTE-PALAYE, Jean-Baptiste, Dictionnaire historique de l’ancien langage

françois, L. Favre, Niort, 1791; GODEFROY, Frédéric, Dictionnaire de l’ancienne langue française et de tous ses dialectes du IXe. au XVe. siècle. Complément, Tomo 9, Paris, F. Vieweg Libraire-Éditeur, 1891-1902; Französisches Etymologisches Wörterbuch (1922-2002), disponível online em Atilf – Analyse et traitement

informatique de la langue française – http:www.atilf.fr/dmf; último acesso: 28 de janeiro de 2015. A abonação que Sainte-Palaye oferece para esse sentido é tomada do romance Brun de la Montagne, cuja composição é datada provavelmente da segunda metade do século XIV (MEYER, Paul (ed.), Brun de la Montagne, Paris, Librairie Firmin Didot, 1875, p. 83, v. 2421).

18 TOBLER-LOMMATzSCH, Altfranzösisches Wörterbuch, Adolf Toblers nachgelassene Materialien,

bearbeitet und herausgegeben von Erhard Lommatzsch, weiter geführt von Hans Helmut Christmann, Wiesbaden, Franz Steiner, 1915.

A interpretação de Mullally parece adequada dentro do contexto das «caroles» executadas em sociedade, como ocorre por exemplo nos casos citados no Roman de

Guillaume de Dole e nos demais que nele se inspiraram. Mas não nos parece que se

possa aplicar ao contexto acima citado da Suite du Merlin, onde não faria sentido entender: «recomeçava a sua canção e reagia favoravelmente com as outras», mas sim «recomeçava a sua canção e cantava juntamente com as outras um refrão».

Da mesma forma, as flexões «disoient» e «dient» do verbo «dire» têm nos dois trechos, como objeto direto, o verso que muito provavelmente constituía o refrão cantado pelas donzelas, respectivamente, «Maugrés en ait li Morhous» e «Voirement est ce ly escus au meilleur chevalier du monde». O adaptador galego-português parece ter também entendido que essas citações correspondiam a refrães e incorporou- as como tais às suas composições. Assim, os refrães de B 2 e B 5 traduzem quase literalmente as citações presentes na versão francesa: no primeiro caso, «maugrés en ait li Morhous» = «O Marot aja mal grado» e, no segundo, «Voirement est ce ly escus au meilleur chevalier du monde» = «Ca este escudo é do melhor homen que fez Nostro Senhor».

Os textos franceses, portanto, permitem reconstituir a atividade coreográfica das donzelas como uma dança de roda e o refrão que cantavam juntas como acompanhamento da dança. No caso de B 2, poderíamos aventar que a frase pronunciada por cada donzela diante do escudo: «Diex doinst honte a chelui qui te sout porter, car il nous a mainte honte porcachie!» faria parte de uma estrofe ou mesmo constituiria uma estrofe. Mas logo em seguida se diz que a donzela «recommenchoit sa chanchon et respondoit avoec les autres» – o que se pode entender de duas formas: ela recomeçava a canção E cantava o refrão com as outras, ou então, o que parece mais provável, considerar que as duas expressões são sinônimas e equivalem a «recomeçava sua canção, isto é, cantava o refrão com as outras». Esse entendimento está de acordo com o que sabemos sobre os tipos de poema que se cantavam para acompanhar uma «carole», inicialmente peças curtas de caráter tradicional, que posteriormente foram substituídas por formas mais elaboradas e sofisticadas, como o «rondeau» e o «virelai».20

Para tratar da ausência (ou inexistência) do texto completo da canção que incluiria esses refrães, temos de retomar, porém, a questão das inserções líricas em romances narrativos.

No documento Do Canto à Escrita (páginas 48-51)