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Alegoria como descrição

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 34-38)

CAPÍTULO 1 Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna

1.3 Alegoria como descrição

Esses “pormenores” dão à obra de Baudelaire a característica da atemporalidade porque sua representação artística tem a condição alegórica. Como explica Benjamin: “o

arrancar as coisas de seu contexto habitual” “é um procedimento bastante característico

em Baudelaire” (BENJAMIN, 1989, p.163). Esse processo alegórico aparece com muita

frequência na obra do poeta através da personificação de alguns objetos ou figuras como, no caso do poema “Chacun sa Chimère”, “Chimère” e “Indifférence”:

Chacun d’eux portait sur son dos une énorme Chimère, aussi lourde qu’un sac de farine ou de charbon, ou le fourniment d’un fantassin romain.

Et pendant quelques instants je m’obstinai à vouloir comprendre ce mystère ; mais bientôt l’irrésistible Indifférence s’abattit sur moi, et j’en fus plus lourdement accablé qu’ils ne l’étaient eux-mêmes par leurs écrasantes Chimères.

É preciso comparar novamente o texto original com a tradução para que a ideia discutida neste item seja precisada com mais rigor. Na versão espanhola de Mercedes Sala, ao traduzir do francês para sua língua, a tradutora optou por retirar a letra maiúscula grafada por Baudelaire:

Llevaba cada uno, a sus espaldas, una quimera enorme tan pesada como un saco de harina o de carbón, o la mochila de un soldado romano de infantería. Me resistí unos momentos en querer penetrar el misterio; pero pronto la irresistible indiferencia se dejó caer sobre mí, y me quedé más hondamente agobiado que los otros con sus molestas quimeras.

De acordo com o Littré, dicionário francês de referência no século XIX, Chimère significa, na mitologia, “monstro que lançava fogo pela boca e que tinha o

tronco de um leão, a barriga de uma cabra e o rabo de um dragão”, e também, de acordo

com o mesmo dicionário, “ideia favorita, sonho”. “Chimère” então, ganha uma importância fundamental no poema, pois ela evoca o monstro mitológico e o peso do sonho moderno, que se relaciona diretamente com o incentivo ao consumo e com a impotência do não consumir.

Personificada pois, pelo uso da letra maiúscula, a “Chimère” se liga à palavras como “Mort”, “Diable”, “Beauté”, “Indifférence”. Dessa forma, indica uma personificação, ganhando assim uma força maior no texto, podendo ser interpretada como uma personagem e não mais como um substantivo comum. Françoise Rullier- Theuret, em seu texto Allégorie et symbole dans Les Fleurs du Mal (1991) explica o uso de maiúsculas nas alegorias do poeta:

Figura retórica apreciada pelos escritores da Idade Média, a alegoria, vista por esse sentido particular [personificação do abstrato], consiste em personificar abstrações. Ela é marcada com determinada ostentação (é uma figura que se deixa ver) por uma maiúscula que sinaliza a elevação do nome comum ao status de nome próprio. Nota-se evidentemente em Baudelaire esse uso notável de maiúsculas como um entre tantos princípios de alegorias. (RULLIER-THEURET, 1991, p. 3)

No entanto, em Baudelaire a dimensão alegórica do poema não implica

necessariamente uma grafia com “maiúsculas” (RULLIER-THEURET, 1991, p. 4), o

que significa que é possível observar alegorias grafadas com minúsculas. Além dos elementos evocados pela negação, citados anteriormente neste trabalho, também é o caso dos termos Chimère e Indifférence na tradução de Mercedes Sala. A tradutora, ao

optar pela letra minúscula, retira deles sua característica de personificação e os dispõe como parte de uma representação alegórica. Porque “Chimère”, grafada com maiúscula, tem o caráter significativo próprio que exalta a importância do sonho moderno como

utópico, que segundo Benjamin, “adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria” (BENJAMIN, 1989, p.163). Nessa perspectiva, sua grafia maiúscula se

encontra na mesma dimensão da vírgula disposta no poema como pausa para que aluda constantemente à significação – como já foi discutido anteriormente, no sentido da ênfase dada à palavra. Além disso, a letra maiúscula evoca a personificação da figura do sonho moderno que tem o caráter de nome próprio ou “descrição”, como explica Michel Foucault em seu texto O que é um autor? (1969, 2001)”:

Não é possível fazer do nome próprio, evidentemente, uma referência pura e simples. O nome próprio (e da mesma forma, o nome do autor) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais do que uma indicação, um gesto, um dedo apontando para alguém: em uma certa medida, é o equivalente a uma descrição. (FOUCAULT, 2001, p.272)

O nome próprio como descrição, de acordo com Foucault, está relacionado ao que afirma Benjamin em seu ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens (1916, 2011). Nele, o filósofo afirma que “a infinitude de toda a linguagem humana permanece sempre de natureza limitada e analítica em comparação com a

infinitude absoluta, ilimitada e criadora da palavra divina.” (BENJAMIN, 2011, p.62). Por causa disso, o “nome”, depois do “pecado original”, já não teria mais a “condição divina” ou “lei essencial da linguagem, segundo a qual expressar-se a si mesmo e interpelar todas as outras coisas são só um movimento”17. Porém, o “nome humano” é,

para ele, “o ponto em que a língua do homem participa mais intimamente da infinitude

divina da pura palavra, o ponto em que essa língua não pode se tornar nem palavra finita e nem conhecimento”. Assim sendo, “a teoria do nome próprio é a teoria do limite da linguagem finita em relação à linguagem infinita.”18 Dessa forma, sendo o nome próprio uma descrição e estando no limiar da linguagem divina e da humana, seria o instrumento mais significativo da linguagem do homem. É através do nome próprio que há a possibilidade de exprimir de forma mais abrangente uma significação que a linguagem humana nunca poderia atingir, visto que é limitada. Portanto, o nome

17

Ibid p.57

humano pode ser relacionado à condição alegórica da linguagem, porque visa sua infinitude.

A linguagem infinita, ou divina, segundo Benjamin, está em sua “dimensão

nomeadora”, e nela se “localizariam as ideias”. Porém, como a linguagem humana já

não pertence mais à esfera do “divino”, ela se transforma em “mero sistema de signos”,

o que faz dela limitada, ou “coisa entre coisas”, como explica Sérgio Paulo Rouanet na

introdução de O drama barroco alemão de Walter Benjamin:

Mas onde se localizam as ideias? [...] A resposta de Benjamin é que elas estão na linguagem. Mais precisamente: na dimensão nomeadora da linguagem, em contraste com sua dimensão significativa e comunicativa. É a linguagem adamítica, que despertava as coisas, chamando-as por seu verdadeiro nome, e não a linguagem profana, posterior ao pecado original, que se degrada num mero sistema de signos, e serve apenas para a comunicação. O Nome transforma-se na palavra, mero fragmento semântico, coisa entre coisas, e que por isso mesmo perdeu a capacidade de nomeá-las. (ROUANET, in: BENJAMIN, 1984, p. 16)

Desta forma, o termo Chimère, dotado pelo poeta de um caráter nomeador ao escrevê-lo com maiúscula – o que o coloca entre a linguagem divina e humana –, se torna, por si só, uma descrição do aspecto utópico da sociedade por ele representada. Porque, mesmo isolado, consegue visar de forma mais alusiva a linguagem divina. O mesmo acontece com Indifférence. No entanto, a “Indiferença” de Baudelaire está ligada à modernidade e à cidade grande pelos sentimentos que a sociedade moderna provoca: o tédio e a melancolia ou o spleen, que segundo Louis Aguettant em seu livro Lecture de Baudelaire (2001) é a “insensibilidade do blasé que abusou de seus próprios

nervos”:

O tédio baudelairiano [...] originalmente um "spleen físico", segundo a expressão de Paul Bourget. A insensibilidade do blasé que abusou de seus próprios nervos e para quem tudo ficou insípido. Desse estado de torpor e de atonia dolorosa, a vítima vai procurar sair por novos excessos que agravarão seu mal. A obra de Baudelaire é atravessada por essa queixa perpétua. (AGUETTANT, 2001, p.26)

Essa insensibilidade é representada alegoricamente pela “irrésistible Indifférence” que abate o poeta. O “estado de torpor e de atonia dolorosa” existe porque o que a sociedade moderna oferece é um ritmo incansável de consumo e de

mercadorias: “o sempre igual em grandes massas” (BENJAMIN, 1989, p. 155). Esse

conduz àquilo que Benjamin denomina de “sempre igual”, e que se relaciona ao tédio, já

que havendo uma grande oferta, uma quantidade enorme de mercadorias e vitrines, o

homem dessa cidade grande se encontra sujeito ao estado de “embriaguez moderna da subjetividade” enfatizada por Hirt, provocado pela “potência que subtrai da subjetividade suas potências” (HIRT, 1998, p.154) que é o spleen.

Na medida em que a sociedade vivida e observada por Baudelaire estava marcada pelas consequências da revolução industrial, dentre elas a mercadoria, a propaganda e o incentivo ao consumo, o torpor ou a “embriaguez” perante o excesso de estímulo seriam os responsáveis pelo tédio ou o spleen. Desta forma, quando Hirt se

refere à “embriaguez moderna da subjetividade”, é plausível interpretar essa frase como

uma referência a esse torpor gerado pelo estímulo que leva a um “esquecimento de si” (HIRT, 1998, p.154).

É possível equacionar a essa ideia a afirmação de Benjamin de que o “taedium vitae em spleen é a auto-alienação”, o “tête à tête claro e sombrio do sujeito com ele

mesmo” (BENJAMIN, 1989, p.153). No poema, a indiferença se abate sobre o poeta depois de “quelques instants” em que se obstinava “à vouloir comprendre” “le mystère”. Após esses instantes, tudo o que experimentou observando e refletindo sobre

os “hommes courbés”, se transforma em spleen, em tédio, em apatia e em melancolia. A indiferença “se abate” sobre o poeta e o deixa mais “lourdement accablé” do que os

próprios homens por suas “écrasantes Chimères”, porque o spleen provoca a insensibilidade a que se refere Aguettant.

Dessa forma, a “Indifférence” é comparada ao peso da “Chimère”, visto que Indiferença e utopia, aqui, se encontram intrinsecamente relacionadas, já que esta última, ligada ao sonho moderno, gera a insensibilidade e a apatia que por sua vez é provocada pelo ritmo da sociedade moderna. Dessa forma, “Indifférence”, grafada com letra maiúscula, mostra, portanto, toda a força do resultado desse processo que vai desde o taedium vitae ao spleen.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 34-38)

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