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A “experiência” da tradução

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 57-61)

CAPÍTULO 2 O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução

2.2 A “experiência” da tradução

Segundo Antoine Berman (1999, p.16), a tradução é “experiência. Experiência das obras e do ser-obra, das línguas e do ser-língua. Experiência, ao mesmo tempo, de si

mesma, de sua essência”. Porque o “puro tradutor é aquele que tem necessidade de escrever a partir de uma obra, de uma língua e de um autor estrangeiro” (BERMAN, 1999, p.18). Dessa forma, “se o tradutor tem necessidade de escrever a partir de uma obra”, traduzir é reescrever, completar e acrescentar algo ao raciocínio e à imaginação

do autor. É também fazer opções, refletir sobre o que é feito, experimentar contextos diferentes e misturá-los. Portanto, as escolhas tradutórias se fazem a partir dessas diferenças e a partir de preferências, seja na língua de chegada ou de partida. Porque, ao traduzir, o tradutor reescreve e reflete sobre o escrito em sua língua materna. Ao mesmo tempo, também faz uma reflexão sobre seu próprio idioma. A esse processo, Antoine

Berman denomina “experiência da tradução”.

Além de ser “experiência” e “reflexão”, a tradução é, na prática, uma maneira de

divulgar diversos textos para leitores do mundo – o que conduz, também, a algumas conclusões equivocadas sobre a serventia da tradução literária, como a que discute Pere Comellas em seu artigo Algumas reflexões sobre a tradução à letra de Antoine Berman (2011):

A serventia da tradução literária é a mesma que a do resto da literatura. Talvez alguém quisesse pôr em questão uma afirmação como essa. Porque de fato a tradução não criaria imaginários, mas se limitaria a difundir os imaginários criados pelas obras originais, certamente num âmbito linguístico e cultural diferente, mas com as mesmas imagens. Difundir, não alterar ou recriar. Ou seja, na mente dos leitores ingleses de Walter Scott teríamos uma representação do passado histórico europeu igual à que acharíamos na mente dos seus leitores em italiano, persa, catalão ou javanês. Não é preciso assinalar que é essa uma concepção um tanto ingênua da tradução. (COMELLAS, 2011, p.152)

Para compreender melhor em que consiste essa “ingenuidade” da concepção da tradução, é preciso retomar Henri Bergson e seu pensamento sobre o “grau de atenção à vida”, segundo o qual existem “tons diferentes de vida mental, e nossa vida psicológica pode se manifestar em alturas diferentes, ora mais perto, ora mais distante da ação.”

(BERGSON, 1999, p.7). Dessa forma, existindo diferentes “percepções” e manifestações psicológicas que podem se distanciar da ação ou do objeto, não seria possível a existência de uma imagem idêntica na mente dos leitores. Nesse sentido, a ideia de que uma tradução exprime uma mesma representação para leitores do mundo inteiro só se justifica partindo da suposição de que traduzir seria captar uma mensagem verdadeira e única, o que significa pressupor que a língua não se transforma, que não

existem culturas diferentes nem “tons diferentes”, que todas as “percepções da matéria”

são iguais e que seria possível representar a “matéria” de maneira acabada e definitiva.

No entanto, a “matéria” a que se refere Bergson está na mesma esfera da “ideia de arte” dos românticos alemães explicada por Benjamin, da “imagem real” e do “elemento imutável” de Baudelaire, ou seja, ela não pode ser representada. Sua

representação é apenas uma percepção, apenas um olhar. Sendo assim, para não ser corrompida pelo tempo, deve valer-se dele para significar, utilizando para isso olhares externos que a complementem, já que se caracteriza por estar em movimento constante. Dessa maneira, se a obra de arte, para os autores que aqui vêm sendo estudados, envolve a ideia de um movimento constante, a tentativa de transmitir a mesma imagem, seja no mesmo idioma, seja em outro, torna-se impossível. Afinado com esta concepção da tradução, o filólogo espanhol Martín de Riquer na reedição de 1999 de Don Quijote, afirma:

Buscou-se explicar tudo o que pudesse entorpecer a leitura do Quixote a um leitor culto de nossos dias, mas familiarizado com a língua, costumes e cultura da época de Cervantes. Muitos leitores perceberão que algumas notas sobram por se referirem a coisas muito sabidas, mas enquanto possam ajudar a outros leitores não tão ilustres, o objetivo de nosso comentário será cumprido. A maioria das notas esclarecem palavras ou problemas de linguagem; mas se procurou também dar notícia dos livros ou personagens literários tão abundantemente citados no Quixote e de aspectos da vida do século XVI e princípios do XVII que são necessários para entender algum aspecto determinado, por ínfimo que seja do grande romance. (RIQUER In. CERVANTES,1999, p.29)

A opção tradutória adotada por Riquer permite compreender um dos efeitos da condição dinâmica da linguagem, porque se um idioma está em contínua transformação, uma reedição explicativa seria uma maneira de acompanhá-lo em seu desenvolvimento sem que sua história se perca.

O constante movimento de um idioma – ou seja, suas transformações e variações provocadas pela passagem do tempo – é visto pelos signos e em seus arranjos, que de

acordo com Roman Jakobson em Aspectos Linguísticos da Tradução (2007), podem ser de dois tipos:

Todo signo linguístico implica dois modos de arranjo:

1) A combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação com outros signos, Isso significa que qualquer unidade linguística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em uma unidade linguística mais complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades linguísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação.

2) A seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma operação. (JAKOBSON, 2007, p.35)

Na concepção de Jakobson, a combinação impede que o signo seja estático. Ele não significa por si só, já que precisa de arranjos. Relacionando essa concepção às

ideias de Benjamin (2011, p.68) se o “homem transforma a linguagem em meio” e “com

isso, pelo menos em parte, em mero signo”, o nome, no âmbito da língua humana, deve estar relacionado a outros, ser combinado e selecionado para significar. Esse arranjo de

signos estaria na esfera da “linguagem dos homens”, que “nunca é somente

comunicação do comunicável, mas é, ao mesmo tempo, símbolo do não-comunicável” (BENJAMIN, 2011, p.72). Assim sendo, a linguagem, na condição de símbolo, seria deteriorada pelo tempo e sua significação teria um “caráter momentâneo” que a alegoria não tem. No entanto, na linguagem, em sua dimensão alegórica, existe “uma

progressão” e “uma sequência de momentos” (BENJAMIN, 1984, p.184) que deve ser

considerada. Dessa forma, se um tradutor – não considerando a característica sequencial da linguagem do artista moderno – tentasse exprimir a mensagem do poeta, ele estaria retirando da obra seu caráter progressivo e agregando-lhe uma característica estática que deteriora a representação artística. Nesse sentido, no seguinte trecho, Benjamin explica que o essencial de uma obra poética não é a comunicação, por isso a tradução também não deve pretender comunicar:

O que "diz" uma obra poética? O que comunica? Muito pouco para quem a compreende. O que lhe é essencial não é a comunicação, não é o enunciado. E, no entanto, a tradução que pretendesse transmitir algo não poderia transmitir nada que não fosse comunicação, portanto, algo de inessencial. (BENJAMIN, 2011, p.102)

O “duelo” que existe no poema “Le confiteor de l’artiste” se relaciona à não- comunicação da obra e da tradução, pois o artista moderno teria o papel de tradutor da cidade grande, ou elemento imutável. Dessa forma, a tentativa do poeta de exprimir o que vê se relaciona com a tentativa do tradutor de comunicar algo oculto da obra original porque a comunicação direta é impossível, visto que os signos, como elementos transitórios, apenas aludem à significação. Dessa maneira, as palavras devem se juntar em arranjos, porque, segundo Benjamin, sozinhas não têm o caráter nomeador. Da mesma forma que as palavras precisam ser arranjadas para significar, a obra de arte combinada com suas traduções permite uma constante alusão ao elemento imutável. Por isso, a preocupação com a comunicação não deve existir, porque a obra não comunica, ela é alusiva. E seu caráter alusivo, quando combinado à tradução, é realçado.

A tentativa de comunicação, portanto, implica na propagação de algo inessencial porque exprimir com exatidão algo infinito através de elementos finitos é impossível.

Essa impossibilidade se reflete na obra de Baudelaire através do “choque” que é

relacionado à impotência do tradutor ao fazer escolhas e ao se deparar com as diferenças linguísticas e culturais. O poeta, enquanto tradutor da cidade grande, nunca pode representá-la diretamente e a deforma com a mudança de códigos necessária à representação do elemento imutável a partir de elementos transitórios. Nesse sentido, o

“choque”, no processo de criação, existe porque a tentativa de captar o “absoluto”

desembocaria na transformação da linguagem em “símbolo do não-comunicável”. A impotência do poeta está em perceber-se um ser deteriorável que utiliza de elementos também deterioráveis. Dessa forma, para que não permita que sua linguagem seja degradada com o tempo, ele a emprega em seu caráter alegórico. No entanto, essa característica da linguagem que usa o tempo e o espaço a seu favor existe através de sua neutralidade, o que significa que, ao se valer do transitório para evocar o imutável, o artista deve retirar a historicidade do presente, deve tentar encontrar no elemento transitório, ou na modernidade, o que nunca pode ser deteriorado. Por isso, o tradutor, ao tentar captar a mensagem do artista, muitas vezes deixa de lado a neutralidade de sua obra – que é fundamental em seu caráter alegórico – e transforma a alusão de sua significação em símbolo. Proporciona a ela um caráter estático.

Exemplo disso é a escolha tradutória de Louise Varèse, ao traduzir “moi” do francês por “ego” no inglês. Baudelaire escreveu: “toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite!)” Vàrese

them (for in the grandeur of reverie the ego is quickly lost!)”. Mesmo sem aprofundar em questões terminológicas próprias da psicologia, sabe-se que moi, depois do surgimento da psicanálise, tem uma conotação que não existia na época de Baudelaire. Porém, muitas vezes é inevitável, nos dias de hoje, pensar o moi a partir de conceitos agregados por esses estudos, mesmo sem grandes conhecimentos sobre esse tema. São conceitos que já estão enraizados nos tempos de hoje. Portanto, a opção de Louise Varèse, ego, é referente direto às concepções da psicanálise e exclui ao mesmo tempo todas as outras nuances de moi. Sua escolha por “ego” tirou o “moi” da esfera alegórica e o colocou na do símbolo, excluindo todos os outros sentidos que o pronome poderia ter. Ao fazer essa opção, Varèse retirou a neutralidade da palavra moi e usou de seu significado fixo e temporal. Isso leva a uma exclusão direta de seus outros significados. Ou seja, o uso de ego parece visar captar uma mensagem oculta da obra de arte e significa apenas em um contexto histórico determinado.

No entanto, mesmo quando não há o objetivo de fazer um encaixe lexical em determinado contexto, este já é intrínseco à palavra. Nesse sentido, Benjamin (2011, p.109), em A tarefa do tradutor, explica que referentes iguais designam o mesmo

objeto, porém com “modos de visar diferentes” que se excluem mutuamente, porque

contêm intrinsecamente o contexto histórico. As línguas se excluem entre si porque refletem culturas diferentes, e na condição finita do homem, seria impossível não haver essa exclusão. Porém, a obra original, em conjunto com sua demanda de diversos olhares transitórios, relacionados aqui às traduções, permite agregar contextos e ameniza a exclusão potencial entre idiomas, aludindo com mais precisão ao que Benjamin ( 2011, p.73) denomina “plenitude das línguas”, ideia que será discutida mais adiante.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 57-61)

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