Marina Borges de Carvalho
Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução
Rio de Janeiro
Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa)
Orientador: Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes
Rio de Janeiro
Ao meu orientador, professor Marcelo Jacques, por acreditar no trabalho que começou na Iniciação Científica e hoje se concretiza em uma dissertação de mestrado. Obrigada pela força, pelo incentivo e pela paciência.
Aos professores que dispuseram de seu tempo para participar da banca de defesa: prof. Rodrigo Ielpo e profa. Susana Kampff Lages.
Aos professores que fizeram parte da minha trajetória, pelo incentivo a continuar.
À Márcia, pelos conselhos e pelo estímulo.
Ao meu pai, pelo amor, pelo apoio incondicional em todas minhas jornadas, por me ajudar a crescer, por acreditar em mim e por tornar meu caminho literário possível.
Ao Víctor, pelo companheirismo, por me encorajar, estar sempre do meu lado e pelo amor.
Aos que estão e aos que já fizeram parte da equipe do Bureau du Livre, em especial, Alice, André, Luiz, Marion, Rafael e Valérie, que sempre apoiaram meus estudos e me deram suporte para continuá-los.
Ao Diogo e ao Breno pelos resultados, pela presença, pelo crescimento, pela paciência e por nós três.
À Silvinha e à Mônica, por trazerem mais alegria à nossa vida.
À Mariana, por me ensinar a enxergar a vida com olhos de criança e ter me feito renascer.
À Ligia, por me ajudar a construir meu caminho.
À Juliana, pelos debates literários, pela disposição, pela parceria e pela presença essencial na minha vida.
À Lais, pelas críticas, pelas leituras, pela atenção e pelo carinho.
À Naima, pela correção, pelas risadas, pela força, pela energia e pela companhia.
À Sybelle, pelas conversas e pela calma.
Ao Igor, pela disposição, pela leitura e pela amizade.
À minha família, pela convivência e crescimento.
A todos meus amigos que sabem sua importância.
CARVALHO, M.B. Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literatura Francesa)
– Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
RESUMO
Charles Baudelaire revolucionou a poesia do século XIX, especialmente a partir
de sua reflexão sobre a modernidade, que o levou a ser considerado como o precursor da
poesia moderna na França. Uma das características dessa poesia é a problematização da
linguagem como expressão. Tentaremos retomar esse debate pelo viés dos escritos de
Walter Benjamin, principalmente O conceito de crítica de arte no romantismo alemão
(1919) e A tarefa do tradutor (1921). Pretendemos, para tanto, e tendo como
interlocutor privilegiado o crítico André Hirt, discutir as questões da atemporalidade, da
transformação da representação na poesia moderna e da importância do olhar subjetivo
do autor, do leitor e do tradutor, trabalhando-as, em especial, com os poemas “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”, de Spleen de Paris.
Palavras-chave: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, linguagem,
ABSTRACT
Charles Baudelaire revolutionized poetry in the 19th century, mainly with his reflection
on modernity which has lead him to be considered the precursor of modern poetry in
France. One of his poetry characteristics is the questioning of language as expression.
We will try to resume this discussion from the perspective of Walter Benjamin’s
writings, mainly The concept of art criticism in German romanticism (1919) and The
translator’s task (1921). In this regard, and having critic André Hirt as privileged
interlocutor, we investigate aspects such as timelessness, representation changes in
modern poetry and the importance of the author’s, the reader’s and the translator’s
subjective perspectives. We examine these aspects mainly with the poems “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” and “Le confiteor de l’artiste” from the book Spleen de Paris – petits poèmes en prose.
Keywords: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, Language, Time,
Subjectivity, Translation
Charles Baudelaire a révolutionné la poésie du XIXème siècle, particulièrement à partir
de sa réflexion sur la modernité qui lui a valu le titre du précurseur de la poésie moderne
en France. Une des caractéristiques de cette poésie se trouve dans la problématisation du
langage comme expression. Nous essaierons de reprendre ce débat en nous appuyant sur
les écrits de Walter Benjamin, notamment sur les textes Le concept de critique
esthétique dans le romantisme allemand (1919) et La tâche du traducteur (1921). Ainsi,
à travers l’interlocuteur privilégié qu’est le critique André Hirt, nous discuterons des
concepts d’atemporalité, de transformation et de représentation dans la poésie moderne
ainsi que l’importance du regard subjectif de l’auteur, du lecteur et du traducteur, en étudiant, spécialement, les poèmes « Chacun sa Chimère », « Un hémisphère dans une
chevelure » et « Le confiteor de l’artiste » du livre Spleen de Paris – petits poèmes en prose.
Mots Clés: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, Langage, Temps,
Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução./ Marina Borges de Carvalho. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2016.
85f; 30cm
Orientador: Marcelo Jacques de Moraes.
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2016.
Referências Bibliográficas: ff. 76-79.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 11
CAPÍTULO 1 - Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna ... 16
1.1 O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria... 17
1.2 O tempo, o spleene as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacunsa Chimère” ... 27
1.3 Alegoria como descrição ... 34
1.4 A morte como auge do spleen e sua contraposição: o idéal. ... 38
CAPÍTULO 2 - O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução ... 51
2.1 “Le confiteor de l´artiste” e a problematização da linguagem ... 51
2.2 A “experiência” da tradução ... 57
2.3 A tradução como “forma” ... 61
OBSERVAÇÕES FINAIS ... 72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 77
INTRODUÇÃO
Esta dissertação pretende relacionar a poesia de Charles Baudelaire à filosofia da
linguagem de Walter Benjamin presente, principalmente, em seu texto A tarefa do
tradutor (1921, 2011). Considera-se aqui, o poeta, artista moderno, como um tradutor e
seu leitor como tradutor de uma tradução. Este estudo, portanto, culmina na relação
entre o processo da tradução e a expressão artística moderna.
Dessa forma, o trabalho visa discutir a importância complementar do texto
traduzido para a obra de arte. A visão do tradutor relacionada à do artista moderno e ao
espectador de sua arte permite a percepção de que a tradução na verdade, é um fator
complementar a ela sem o objetivo de concluir ou finalizar o elo entre leitor e artista.
Dessa maneira, traduzir seria pensar junto à obra. E a demanda da arte pela tradução
seria a demanda de reflexões e percepções latentes a ela.
Assim sendo, esta dissertação se inicia com alguns fundamentos da poesia de
Baudelaire discutindo a obra do poeta de forma a tentar demonstrar que o tema “cidade
grande” aparece constantemente como elemento fundamental de sua representação artística. Com intuito de ilustrar e sublinhar a presença da cidade na poesia
baudelairiana, três dentre os poemas inseridos no texto se destacam: “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”. Todos extraídos do livro de poemas em prosa Le Spleen de Paris – petits poèmes en prose.
Para desenvolver os raciocínios que aqui se propõem, esta pesquisa será dividida
em duas partes. Na primeira, intitulada “Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia
moderna”, pretende-se refletir sobre a maneira em que a cidade moderna – a Paris do século XIX na fórmula elaborada por Walter Benjamin, e várias de suas transformações
operadas pela modernidade – é representada na obra do poeta. Na segunda, “O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução”, se pretende dissertar sobre a filosofia da linguagem de acordo como a formulou Walter Benjamin, com ênfase na
ideia da tradução como “experiência”, visto que esta filosofia está intrinsecamente
relacionada à ideia da representação do artista moderno como tradução da cidade
Baudelaire se encontra intimamente ligada à Paris do Segundo Império, já que extrai das
transformações que sofreu “a capital do século XIX”, os elementos que configuram sua poética.
Desta forma, no primeiro capítulo, “Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna”, em sua primeira seção “O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria”, tomando como base as ideias de Eric Hobsbawm em seu livro
A era das revoluções (1962), serão feitas algumas reflexões sobre as transformações
históricas que sofreu Paris durante esse século, importantes para desenvolver a ideia da
modernidade baudelairiana. Essa abordagem permitirá compreender como a Paris do
século XIX é problematizada, literariamente, na obra de Charles Baudelaire. A cidade
moderna sendo o referente fundamental de sua poesia, a coloca em um lugar de
destaque para discutir o conceito de modernidade no século XIX, tarefa que será
desenvolvida neste capítulo. Desenvolvendo este conceito, aborda-se o paradoxo
complementar entre o que é passageiro e o que nunca muda, fundamentais para a
modernidade baudelairiana e para a significação alegórica de Walter Benjamin
formulada pelo estudioso em Origem do drama barroco alemão (1928, 1984).
Nessa seção será desenvolvida a ideia, relacionada à de Benjamin, de que a
representação alegórica da cidade grande está constituída de dois elementos: um
elemento transitório, que seria tudo aquilo que é passageiro em uma época, e que de
certa forma a caracteriza, e um elemento imutável, entendido como aquilo que é eterno
e que foge a toda representação. A junção dos dois é indispensável para a compreensão
da alegoria de Benjamin, porque uma representação alegórica deve ter um elemento
estável, que nunca muda, e que, portanto, contém nele o germe de toda significação (que
Benjamin exemplifica com a imagem da caveira), e um elemento transitório. Discutir
esses elementos será fundamental para entender a representação do artista moderno
como algo momentâneo que significa sempre, e que Baudelaire chama de “l’ébauche parfaite”.
À discussão do paradoxo complementar entre os elementos “transitório” e “imutável”, relacionados à representação do artista moderno, será feita uma conexão com a ideia de “subjetividade”, tendo como base Matéria e memória (1896, 1999), de
Para essa relação, ainda nesta seção, também serão discutidas algumas ideias de
André Hirt, filósofo e crítico da atualidade que tem desenvolvido uma ampla reflexão
sobre a obra de Baudelaire, com especial atenção à leitura que Benjamin faz dela. O
estudioso afirma que alegoria, modernidade e subjetividade estão intrinsecamente
relacionadas na obra do poeta francês.
Na segunda seção dessa pesquisa, “O tempo, o spleen, e as imagens de Charles
Baudelaire a partir de “Chacun sa Chimère”, será abordada a questão da imagem, a partir das reflexões de Hirt. De acordo com ele, a imagem proporcionada pela obra de
arte moderna é uma alusão à “imagem real” citada por Baudelaire em “Fusées”, porque está em constante movimento e não é condicionada ao tempo nem ao espaço. No
entanto, não pode atingir o “real”, porque este foge a qualquer representação. E estaria
no âmbito da “ideia da arte”, tal como foi desenvolvida pelos românticos alemães, e que foi exposta por Benjamin em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão
(1919, 2011).
Nesse texto, Benjamin explica que toda obra de arte “é incompleta”, e, portanto,
precisa do momento da crítica que a complemente. A crítica também pode ser associada
ao olhar do espectador, que cria sentidos a partir da obra. De acordo com essa ideia, o
artista moderno cria essa obra “incompleta” – que é aquilo que Baudelaire denomina
“ébauche parfaite”. Esse “esboço”, caracterizado pela ideia de inacabamento, implica a necessidade do olhar do outro para que esteja sempre aludindo à significação.
Na terceira seção do primeiro capítulo, “Alegoria como descrição”, será analisada a alegoria levando em consideração sua grafia maiúscula, que em diversos
momentos aparece na obra de Baudelaire como personificação. Através dela, se
introduz a ideia da limitação da linguagem, além da ideia do spleen que permeia as
personificações em seus poemas. Para ilustrar essas reflexões, será feita uma análise de
“Chacun sa Chimère” relacionada a algumas de suas traduções, o que permite uma abordagem mais explicativa dessa questão.
Na quarta seção do primeiro capítulo, “A morte como auge do spleen”, estabelece-se uma relação do exposto nos pontos anteriores com o conceito de spleen,
fundamental em Baudelaire. Na obra do poeta, este aspecto perpassa o presente,
provoca o tédio e representa a passagem do tempo. Contrário a ele, e introduzindo a
morte na obra do poeta, está o idéal, esfera em que não existiria mais a corrosão do
real”. Ela apresenta a ideia do “eterno retorno” não apenas como um ciclo, mas como
uma fuga para o desconhecido.
Para complementar essa ideia de “ciclo”, analisa-se o poema “Un hémismisphère dans une chevelure”, utilizando-se de ilustrações de traduções que facilitam a abordagem de reflexões de Barbara Johnson sobre a “dualidade inquietante” e a reversibilidade nos poemas em prosa de Baudelaire. Dessa forma, será apresentado o
paradoxo complementar que permeia a obra do poeta – e que já havia sido abordado
aqui na exposição dos elementos “transitório” e “imutável”.
Com base no poema analisado – “Un hémisphère dans une chevelure” –, desenvolve-se a ideia de que o poeta tem acesso a seu interior através de um aspecto
externo. Nesse sentido, o poeta e crítico francês Michel Collot estabelece o conceito de
“espaçamento do sujeito”, que designa os aspectos do mundo exterior que se confundem com o interior do artista. No caso do poema “Le confiteor de l’artiste”, essa ideia merece ser discutida, já que através da “Nature” o poeta se vê vencido. Walter Benjamin denomina esse processo de “experiência do choque”, e é nela que se encontra,
segundo ele, o âmago do “processo de criação”, eis que torna evidente a insuficiência da linguagem.
A ideia da impotência da linguagem, introduzida indiretamente através da
alegoria como descrição, fará parte do segundo capítulo da dissertação: “O processo
criativo e a linguagem na filosofia da tradução”. Este capítulo da pesquisa envolve uma
discussão da filosofia da linguagem surgida através da formulação de Baudelaire de que
a obra de arte é uma tradução do que o artista moderno vê. Dessa forma, se aborda aqui
alguns fundamentos da obra A tarefa do tradutor de Benjamin, considerando que a obra
do poeta seria a tradução da cidade grande, a Paris do século XIX.
Na primeira seção desta segunda parte, “Le confiteor de l’artiste e a problematização da linguagem”, será discutida de forma mais densa a importância do olhar do espectador para Baudelaire em sua relação com o tradutor explicado por
Benjamin, pois o espectador completa e proporciona dinamicidade à significação da
obra de arte moderna e assim o faz quem traduz um texto literário, já que o espectador,
de acordo com o poeta, é o tradutor de uma tradução.
Como neste trabalho de dissertação se pretende também refletir sobre a questão
da linguagem na obra de arte moderna exposta por Baudelaire como tradução, analisa-se
a filosofia da tradução de Walter Benjamin abordada em três seções. Na segunda,
Baudelaire e a de Benjamin – o que já se introduz na primeira parte do segundo capítulo. Com o intuito de articular a reflexão sobre a linguagem, a segunda seção pode
ser vista como uma apresentação da terceira: “A tradução como forma”.
Visando discutir a reflexão sobre a linguagem, na segunda e terceira seções,
relaciona-se fortemente à questão da “experiência do choque” e da obra de arte moderna como tradução do entorno do artista – a cidade grande – em linguagem. Por isso, nela, se almeja evidenciar a relação intrínseca entre a filosofia da tradução e a filosofia da
linguagem, o que possibilita entender a tradução enquanto “experiência” ou como
reflexão da língua entanto imagem daquilo que só pode ser representado na relação
realidade/signo, demandando necessariamente de outro olhar, ou do que Benjamin
denomina “forma”.
Nesse apartado, serão tecidas algumas considerações sobre a dificuldade nas
escolhas lexicais que um tradutor enfrenta ao se deparar perante dois sistemas
linguísticos totalmente distintos em suas estruturas sintáticas, gramaticais e lexicais. E
que são dispostas como paralelo com o processo criativo do artista moderno enquanto
tradutor da cidade grande.
Nesta dissertação se privilegia a teoria de Walter Benjamin sobre a linguagem
porque, além de estar intrinsecamente ligada aos escritos de Baudelaire, tem contribuído
com importantes conceitos aos estudos literários e tradutórios, e tem desencadeado
discussões que ainda não se esgotaram. Pela falta de unanimidade entre os especialistas,
a abordagem desses conceitos será o mais cuidadosa, respeitando os limites necessários
aos que não são especialistas em estudos sobre Benjamin. Assim sendo, nesse ponto a
intenção é obter fundamentos para discussões, sem ousar conclusões, que permitam
traçar um paralelo entre a obra de arte moderna como tradução da cidade grande, a
execução do artista como tradutor e a complementação da tradução como parte
fundamental no processo criativo dinâmico exigido pela representação artística
CAPÍTULO 1 - Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna
Este capítulo da presente dissertação pretende introduzir alguns fundamentos da
poesia de Baudelaire com o intuito de desenvolver alguns pontos relevantes para a
compreensão da importância da linguagem no processo criativo do poeta. Dessa forma,
para complementar essa reflexão, são utilizados aqui três poemas em prosa do livro Le
Spleen de Paris – petits poèmes en prose que constituem três alegorias da vida moderna, relevantes para esta pesquisa: “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”– sendo este último necessário para a introdução do segundo capítulo.
O primeiro poema trata do caminho de “vários homens que andavam curvados”
em “uma grande planície poeirenta” “sob um grande céu cinzento” que levavam em suas costas “uma enorme Quimera”. Quanto a “Un hémisphère dans une chevelure”, o poema aborda as evocações que uma cabeleira desperta nos pensamentos e nas
lembranças do poeta. Já em “Le confiteor de l’artiste”, apresenta-se um cenário natural em que o mar e o horizonte infinito oprimem o artista levando-o a perceber sua
vulnerabilidade perante a natureza.
Como é possível observar, cada poema apresenta tópicos diferentes que se
entrelaçam para abordar de maneira alegórica diversos aspectos da cidade grande e da
modernidade de Baudelaire. Este conceito, renovado pelo poeta em sua poesia e em seu
texto Le peintre de la vie moderne (1859, 1976), suscita questões na reflexão sobre o
tempo e sobre a obra de arte. Para empreender essa reflexão, torna-se necessário
recuperar algumas tensões próprias da Paris em que o poeta viveu, dando ênfase àquelas
que permitam desenvolver aspectos relevantes para uma discussão sobre a linguagem
1.1 O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria
Charles Baudelaire nasceu no ano de 1821 em Paris, onde viveu maior parte de
sua vida, e faleceu também nessa cidade em 1867. Portanto, a cidade grande e moderna
que embasa sua obra é a capital francesa do século XIX. O momento histórico da vida
do poeta é significante para a compreensão do caráter precursor e revolucionário de sua
abordagem literária.
Paris era o centro cultural e político do mundo, palco dos movimentos
revolucionários, das novas ideologias e das manifestações artísticas. A França foi um a
potência nos anos 1800: “os franceses inventaram ou foram os primeiros a desenvolver as grandes lojas de departamentos, a propaganda e, guiados pela supremacia da ciência
francesa, todos os tipos de inovações e realizações técnicas” (HOBSBAWM, 1962, p.126). A essas invenções e realizações está relacionada a velocidade dos meios de
comunicação a partir da proliferação das ferrovias e da produção industrial que
modificou a relação do homem e da sociedade com o tempo. A revolução tecnológica
desse século trouxe um ritmo jamais vivenciado que foi implementado pela revolução
industrial com a aplicação da tecnologia aos processos de produção. Em seu livro A era
das revoluções (1962), Eric Hobsbawm sintetiza o efeito transformador da revolução
francesa ao ressaltar a “multiplicação rápida e constante” consequente da “retirada dos grilhões do poder produtivo”:
a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços. (HOBSBAWM, 1962, p.20)
Apesar dessas inovações e das grandes reservas de capital que o país acumulara
durante os anos posteriores à Revolução de 1789, a sociedade francesa do século XIX,
“burguesa em sua estrutura e em seus valores” (HOBSBAWM, 1962, p.131), estava
marcada por uma grande desigualdade social. Muitos enriqueciam graças à atividade
industrial, financeira e burocrática, no entanto, a “cada homem que ascendia no mundo dos negócios, um grande número necessariamente descia”1 e a classe trabalhadora permanecia na indústria “incansavelmente durante toda a semana para obter uma renda
mínima”2
marcando a França, potência econômica, com a miséria. Ressalta-se, para
salientar mais aspectos, grandes alterações urbanísticas que Paris sofreu, dentre 1850 e
1870, promovidas pelo Barão de Haussmann, resultando na destruição da cidade antiga
e a criação da cidade moderna, provendo-a de uma rede de esgoto, dos boulevares e
cafés, bem como o cenário da vida noturna propagado por consagrados escritores e
artistas de todos os tempos.
Além disso, as transformações dessa Paris que viveu Baudelaire acarretaram
muitas outras consequências à vida das classes baixas – empurradas à periferia da cidade. Em seu livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1989),
Walter Benjamin cita a prostituição e a miséria como práticas desse setor da sociedade.
No entanto, a tradição boêmia de Paris estará marcada pelo pensamento revolucionário
da época. Exemplo disso é “a barricada”, “ponto central do movimento conspirativo”
(BENJAMIN, 1989, p.12) que caracteriza o século.
É dessa “capital do século XIX”, marcada por profundas contradições, que
Baudelaire vai extrair todo um fundamento novo sobre modernidade, além do “idéal obsédant” de sua prosa poética. Na “Dédicace” à Arsène Houssaye, disposta como prefácio de Le Spleen de Paris, o poeta explicita: “C’est surtout de la fréquentation des villes énormes, c’est du croisement de leurs innombrables rapports que naît cet idéal obsédant.”3 (BAUDELAIRE, 1976, p.276). Portanto, é da observação da cidade moderna, tomada por grandes transformações provocadas pela industrialização e a
mercadorização de tudo em um curto lapso de tempo, que Baudelaire extrai os
fundamentos de sua poesia.
O título de “poeta da modernidade” conferido a Baudelaire por Hugo Friedrich
em seu livro Structure de la poesia moderne (1956, 1999) provém, especialmente, de Le
peintre de la vie moderne, obra em que aquele tenta explicar o que busca o pintor da
vida agitada da cidade grande. Nesse texto, o poeta afirma que “il s’agit [...] de dégager de la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du transitoire”4 (BAUDELAIRE, 1976, p.694). Apontando para um caráter transhistórico,
para ele “il y a eu une modernité pour chaque peintre ancien”, já que em todas as
2 Ibid p.36
3 Todas as citações serão traduzidas, salvo as dos três poemas principais, pois estão em anexo, e as expressões francesas. As traduções de Baudelaire para o português, dispostas em notas, serão retiradas da edição brasileira das Obras Completas Poesia e Prosa (2006), composta por textos assinados por diferentes tradutores. “É sobretudo da frequentação das grandes cidades que nasce este ideal obsessor”. Pequenos poemas em prosa, (2006), tradução de Aurélio Buarque de Holanda.
4“Trata
épocas existiu algum elemento passageiro que se contrapunha ao que é comum a elas.
Dessa forma, o elemento passageiro é o que se deteriora com a passagem do tempo, se
contrapondo a algo neutro que sempre permanece. Isto, para Baudelaire, constitui uma
parte importante da modernidade, porque é através do que nunca muda que se pode
detectar as mudanças provocadas pelo tempo, sem as quais não há como perceber o
imutável. Desta maneira, o poeta não rejeita o comum às diferentes épocas, mas o
incorpora ao presente. Assim, ele é valorizado como fator que possibilita separá-lo do
transitório característico do momento, ou do efêmero inovador. Por isso, o estudioso
Gérard Froidevaux (1989, pp.694-695) explica que para o autor de Le Spleen de Paris a
modernidade é um “projeto de salvação do presente”, já que nela se articulam, de forma coesa, o eterno e o transitório “buscando em sua fusão a beleza ideal”. Portanto, a modernidade de Baudelaire “c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de
l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable”5
(BAUDELAIRE, 1976, p.695).
Isso significa que o transitório é complementar ao eterno porque o que varia só pode
existir a partir do invariável:
Cet élément transitoire, fugitif, dont les métamorphoses sont si fréquentes, vous n’avez pas le droit de le mépriser ou de vous en passer. En le supprimant, vous tombez forcément dans le vide d’une beauté abstraite et indéfinissable. (BAUDELAIRE, p.695, 1976)6
Ao afirmar que não se pode desprezar esse “élément transitoire”, o poeta confere importância ao que é passageiro, no sentido de que o eterno só pode ser vislumbrado
pelos elementos transitórios. Por outro lado, e de maneira complementar, a afirmação de
que é preciso “tirer l’éternel du transitoire” permite constatar que não pode existir o transitório sem o eterno. Desta forma, para “tirer l’éternel du transitoire”, o artista da
modernidade deve observar a cidade grande e dela retirar sua poesia. Deve dar forma ao
que é passageiro de maneira que este sempre aluda ao eterno. Além disso, esse artista
deve se reconhecer, também, como um ser transitório dotado de um olhar finito, o que
significa ser um flâneur que se “embriaga” com a cidade pela qual “vaga sem rumo” (BENJAMIN, 1989, p.186) em uma tentativa de representá-la a partir de sua condição
humana e efêmera.
5 “É o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”
Nessa concepção do ato criador, que só é possível vinculado à perambulação
pela cidade, o artista, antes de sê-lo, precisa ser um “homme du monde”
(BAUDELAIRE, 1976, p. 688), o que para Baudelaire significa “homme qui comprend le monde et les raisons mystérieuses et légitimes de tous ses usages”7 (BAUDELAIRE,
1976, p.688). Esse homem do mundo, que “vaga sem rumo” pela cidade à luz do dia
como flâneur e cuja paixão e profissão “c’est d’épouser la foule”, “quand le soir est venu”, faz com que as coisas renasçam “sur le papier”, exercendo assim sua função de
artista. A execução criativa, em que “une contention de mémoire réssurrectionniste, évocatrice”8 aparece, está relacionada com a imaginação, denominada pelo poeta, em seu Salon de 1859 (1859, 1976), “la reine des facultés”. Nesse texto, Baudelaire diz que
o artista moderno, “le vrai artiste, le vrai poète, ne doit prendre que selon qu’il voit et
qu’il sent. Il doit être réellement fidèle a sa propre nature”9
“Être fidèle a sa propre nature”, nessa concepção da criação poética, significa deixar a memória recriar o que foi visto a partir do que sente o artista enquanto sujeito
histórico: sendo ele “uma espécie de historiador do presente”, “em vez de aprisionar o
espetáculo da vida contemporânea em uma representação objetiva, procura com que se
viva o presente através de uma imagem impressa de sua própria subjetividade.” (FROIDEVAUX, 1989, pp. 12-13). Dessa forma, imaginação e memória se relacionam
na representação moderna porque a memória impulsiona o artista a criar a obra de arte
que só poderia ser executada a partir de sua imaginação. Ambas se entrelaçam naquilo
que se denomina “subjetividade”.
Em Matéria e Memória, Henri Bergson (1999, p.17) oferece valiosas reflexões
para entender o conceito de “subjetividade”. Nesse texto, o filósofo faz uma distinção entre “matéria” e “percepção da matéria”, sendo esta o conjunto de “imagens
relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada”, que é o próprio
“corpo” do sujeito. Portanto, de acordo com Bergson, o homem percebe a matéria a partir dos estímulos recebidos por seu corpo em conjunção com as reações que este
produz em si. Dessa maneira, a relação feita por Bergson para um melhor entendimento
do que seria matéria é a relação entre o cérebro e o universo. O primeiro, elemento que
percebe a matéria, segundo o filósofo, não pode condicionar a imagem do universo, do
infinito, ou seja, da matéria, o que implica que o universo continua existindo mesmo se
7 "Homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes"
8Ibid p. 699. “Um esforço de memória ressurreicionista, evocadora”
9
não houver as percepções cerebrais. Por isso, é possível estabelecer um paralelismo com
o fragmento anteriormente citado de Le peintre de la vie moderne, em que Baudelaire
afirma que eliminando o transitório cai-se “forcément dans le vide d’une beauté abstraite”, porque não havendo a percepção, a matéria é vazia de interpretações e de sentidos.
Daí se desprende que se o artista moderno trabalha a partir de sua “percepção da
matéria”, o ritmo do mundo em que vive é fundamental à sua criação. Por isso,
Baudelaire diz que “il y a dans la vie triviale, dans la métamorphose journalière des choses extérieures, un mouvement rapide qui commande à l’artiste une égale vélocité
d’exécution”10
(BAUDELAIRE, 1976, p.686) já que o artista deve realizar uma obra de
arte que seja compatível com o que observa e com a velocidade desse entorno. Assim,
se produz o que o poeta denomina “ébauche parfaite”11, em que, segundo o autor de Le Spleen de Paris, desenha a partir da memória e não do modelo, esforçando-se para não
perder nenhum detalhe do espetáculo incessante da cidade grande.
Ainda de acordo com Matéria e Memória, Bergson (1999, p.6) afirma que as
imagens “são representadas à consciência na forma de um esboço”, já que são alusivas e evocam a matéria. Dessa forma, a memória tem fundamental importância nessas
percepções, visto que, segundo o filósofo, além de não haver percepção que não seja
“impregnada de lembranças”, a memória permite “representações infinitas” devido a sua intrínseca ligação com a percepção momentânea e a substituição de uma pela outra:
Nada impede que se substitua essa percepção, inteiramente penetrada de nosso passado, pela percepção que teria uma consciência adulta e formada, mas encerrada no presente, e absorvida, à exclusão de qualquer outra atividade, na tarefa de se amoldar ao objeto exterior. (BERGSON, 1997, p.30)
Se a “percepção da matéria” é um esboço da “matéria”, e nela a memória é necessária e imprescindível, isso significa que, ao relacionar-se a essas ideias, a obra de
arte moderna é um esboço em que estão contidas inúmeras representações alusivas,
visto que é uma percepção feita pelo presente e pela memória. Essa condição da obra de
arte moderna está vinculada a seu inacabamento que provém exatamente da condição
alusiva da percepção do artista moderno. Sendo assim, a representação moderna não
estagna o objeto representado e, por não estagná-lo, demanda olhares externos que
10
"Mas há na vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que exige do artista idêntica velocidade de execução"
possam se adaptar a ela para que suas inúmeras representações alusivas não se
degradem nem se percam com o tempo.
Nesse sentido, segundo Dolf Oehler em seu livro Quadros Parisienses (1997),
para Baudelaire, a arte “exige do público”, a quem o artista põe “o fardo diretamente
nas costas”. Desta forma, as contradições provindas da modernidade, e dispostas como esboço pelo poeta, são incorporadas à obra de arte, que é abalada por elas, como
assinala Oehler:
[...] tornar o trabalho de auto-orientação e o esforço da compreensão mais atraentes ao público (prazer estético antecipado, promesse de bonheur), mas não subtrair-lhe a tarefa; pelo contrário: ela [a arte] exige que o público a tome em suas mãos e põe-lhe o fardo diretamente nas costas mediante a concentração e o acúmulo das contradições com que, no cotidiano (burguês), ele se depara numa frequência que pode suportar ou ao menos evitar. Para impedir a negação das contradições pelo público, a obra de arte tem de incorporar as contradições em sua estrutura e por elas ser abalada... (OEHLER, 1997, pp. 158 – 159)
Porque o “ébauche parfaite” demanda o olhar do público e o exige, ele pode ser considerado como o que Benjamin chama de “obra de arte incompleta” já que “apenas o incompleto pode ser compreendido, pode nos levar mais além. O completo pode ser
apenas desfrutado.” (BENJAMIN, 2011, p.78). Sendo “incompleta”, na obra de arte estaria contida a “ideia da arte”12, que seria a arte em termos “absolutos”. No entanto, a
“ideia da arte” não pode ser representada, apenas aludida através da obra que, apesar de evoca-la só pode complementar sua significação através de sua crítica. Esta, chamada
por Benjamin de “forma”, se relaciona aos olhares criados, as evocações suscitadas, as inúmeras possibilidades e cenários que a obra propicia ao leitor, espectador ou
contemplador. Posto que a obra de arte permite diversas “formas”, ou diversos olhares, esta é um “continuum de formas” e portanto, precisa necessariamente delas – dessas
“formas”. Benjamin explica essa relação no seguinte trecho de seu livro O conceito de crítica de arte do romantismo alemão:
O conjunto da teoria da arte romântica repousa sobre a determinação do medium-de-reflexão enquanto arte, ou melhor dizendo, enquanto Ideia da arte. Dado que o órgão da reflexão artística é a forma, logo a Ideia da arte é definida como o medium-de-reflexão das formas. Neste relacionam-se constantemente todas as formas-de-exposição, transformando-se umas nas outras e se unindo na forma-da-arte absoluta, que é idêntica à Ideia da arte. A ideia romântica da unidade da arte assenta-se portanto na Ideia de um continuum das formas. (BENJAMIN, 2011, p.94)
Se o medium-de-reflexão das formas pode ser relacionado ao que seria a “ideia
da arte”, Willi Bolle explica que para Benjamin, a cidade grande também pode ser considerada como tal: “pode-se dizer que ele procurou não apenas retratar a metrópole, mas considerá-la como medium-de-reflexão.” (BOLLE, p.93, 2007). Disso se depreende que, apesar de poder ser aludida, a cidade grande não pode ser representada
efetivamente; talvez por isso, Benjamin afirma que “em As flores do Mal não há menor
indício de uma descrição de Paris” (BENJAMIN, 1989, p.167). No entanto, ainda que
não possa ser descrita ou representada, a cidade possibilita inúmeros olhares,
sentimentos e sensações, o que possibilita um constante movimento que existe a partir
das diversas perspectivas de quem a vê.
Por isso, ao representar através de seu esboço perfeito sua percepção da cidade
grande, o artista moderno atribui a ela diversas nuances que lhe permitem ser recriada.
Dessa forma, o portador do “olhar primeiro” é o artista, a quem Baudelaire denomina flâneur, pois “vaga sem rumo”. Assim sendo, exige de seu público uma complementação a sua obra, por isso, o artista deve ser um observador que, segundo o
crítico Claude Tuduri em “Baudelaire ou l’éternel confident” (2012), “procura a rima interna e o sal das ruas”:
Andar pela cidade é o flâner mais comum, mas flâner com o olhar aguçado, flâner procurando a rima interna e o sal das ruas e dos rostos para vivê-los e decifrar um instante e um aumento de presença que poderia mudar tudo... para ele, tudo "se transforma em alegoria" e esse trabalho de alquimista reserva pouco espaço ao pitoresco descritivo que muitos outros poetas puderam privilegiar para seduzir imediatamente seu leitor com paisagens facilmente reconhecidas. (TUDURI, 2012, p.652)
Esse “trabalho de alquimista” é próprio do “alegorista”. Para Benjamin, marcada pelo contraditório, em que a bela aparência esconde em seu cerne a ruína, a
modernidade, assim como o fez Baudelaire, só pode ser escrita com a alegoria. Escrever
e pensar a modernidade, para o filósofo, é uma tarefa que não pode ser feita com a clara
e distincta perceptio que está na base na teoria do símbolo – da significação concisa e momentânea – ou seja, a modernidade não pode ser representada através de uma obra de arte estática, presa a um momento determinado, porque exige uma representação
dinâmica que só pode existir sem a prisão do tempo e do espaço.
Nesse sentido, de acordo com Benjamin (1984, p.197), em Origem do drama
qualquer outra coisa” e a palavra não pode ser fixada na coisa que ela pretende nomear. Por isso, a condição alegórica da linguagem está relacionada a uma alusão à
significação, já que a verdadeira significação nunca pode ser atingida através da
expressão humana.
Ao explicar essa ideia benjaminiana, Paulo Sérgio Rouanet diz que “ao lacrar as
coisas com o selo da significação”, o alegorista as salva “contra a mudança”, já que
“arranca o objeto de seu contexto” e o “converte em chave para um saber oculto”
(ROUANET in: BENJAMIN, 1984, p.40). Esse “saber oculto” pode ser interpretado
como os potenciais olhares futuros ou como as “formas” por vir, em um “continuum de
formas” –o que pode ser associado à ideia de “obra de arte incompleta”. Dessa maneira, o alegorista dá um “poder divino” (BENJAMIN, 1984, p.197) ao que representa, posto que permite que a significação do objeto representado seja constante. Por isso, os
pormenores na obra de arte são importantes na “exegese alegórica da escrita” e a ideia de que cada “pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa”, segundo Benjamin,
...profere contra o mundo profano um veredito devastador, mas justo: ele é visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância. Mas ao mesmo tempo se torna claro, sobretudo para os que estão familiarizados com a exegese alegórica da escrita, que exatamente por apontarem para outros objetos, esses suportes da significação são investidos de um poder que os faz aparecerem como incomensuráveis, às coisas profanas, que os eleva a um plano mais alto, e que mesmo os santifica. Na perspectiva alegórica, portanto, o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado. (BENJAMIN, 1984, p.197)
Nessa exposição, para Benjamin, o mundo profano é o mundo em que vivemos,
o mundo físico em que o “pormenor não tem importância”. No entanto, esse
“pormenor”, na alegoria, não só tem importância como é “investido de um poder que o eleva a um plano mais alto”. Isto lhe permite aludir constantemente ao significado absoluto. O que Benjamin explica é que a condição alegórica da expressão não retira o
presente do mundo físico, mas permite que alguns de seus aspectos não estejam sujeitos
ao tempo, e que este esteja a seu favor. Em outras palavras, a alegoria permite que o
tempo seja o fator chave que possibilita a um objeto “evoluir” em diferentes épocas, convenções e conceitos. Walter Benjamin, recuperando do barroco a reflexão sobre o
A alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como protopaisagem petrificada. A história em tudo o que nela desde o princípio é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira. E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essa figura de todas a mais sujeita à natureza, exprime não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história mundial como história mundial do sofrimento. [...] Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. (BENJAMIN, 1984, p. 188)
Essa citação explicita que na morte se encontra a significação da vida. Por isso, a
caveira está relacionada à significação, porque só ela pode ser o ponto de partida para
“qualquer desenho de rosto físico” (BENJAMIN, 1984, p.188) e não teria tempo e
espaço claros. Estaria sempre em movimento. A esse raciocínio, pode-se acrescentar a
ideia de André Hirt, contida em seu livro Baudelaire –l’éxposition de la poésie (1998),
de que a “imagem poética” “não está no presente” (HIRT, 1998, p.125), o que significa
que ela, assim como a caveira, não está condicionada a um momento ou a um lugar,
porque “rompe suas amarras com sua objetividade”, como indica Hirt no trecho a seguir:
A imagem contém sob todos os aspectos um movimento propriamente aberrante na medida em que o tempo e o espaço se acham liberados de todo encadeamento mecânico ou habitual. Além disso, na imagem, são o tempo e o espaço que se transformam no objeto da sensação e do pensamento e não antes, o movimento tal como o conhecemos ou reconhecemos (são o tempo e o espaço que permitem compreender o movimento e não o contrário). (HIRT, 1998 p.125)
Se a imagem não é corrompida pelo tempo e pelo espaço, mas se vale deles para
se perpetuar em seu movimento, ao alegorista corresponde a tentativa de dominá-los,
impedindo-os de agir contra a arte para que não a deteriore. Para isso, o artista deve
sempre evocar o infinito, ou seja, o que não é delimitado espacialmente nem
qui en tire sa nature.”13 (BAUDELAIRE, 1976, p. 653). Essa frase explicita a ideia de
que a “real imagem” só pode ser vista através de suas “deformações”, mas que de certa forma tem cifrada, em suas entrelinhas, a evocação da “imagem real”. Por isso, quando
Hirt explica que, para Baudelaire, “existe apenas a arte”, é possível deduzir que a arte é, para o poeta, a única forma de representação autêntica, visto que somente através dela
tem-se a noção do infinito, ou seja, daquilo que o olhar humano passageiro não é capaz
de atingir, mas que pela representação artística é possível imaginar.
Esse raciocínio é complementado pela seguinte afirmação de Benjamin: “no terreno prático, a imaginação prossegue ao infinito, até a ideia pura e simplesmente
indeterminada da suprema unidade, que só seria possível depois de uma infinitude
perfeita, que é por si só impossível.” (BENJAMIN, 2011, p.33). Dessa forma, se a imaginação “prossegue ao infinito” e, segundo Baudelaire, “l’imitation exacte gâte le souvenir” (BAUDELAIRE, 1976, p.455), não é pela cópia que o artista moderno
produz, e sim pelo “souvenir”, que pode ser considerado como aquilo que impulsiona o artista a criar; e pela imaginação, que possibilita a ele executar sua obra de arte em sua
condição dinâmica, já que somente dessa forma, com a junção dos dois, essa
representação moderna pode aludir ao infinito. Desse modo, “l’ébauche parfaite” não
poderia ser aprisionado ao tempo e ao espaço, já que evoca a “imagem real”, ou “a Ideia
da arte”.
Por isso, esse “esboço” só pode ser executado na condição alegórica da expressão porque apesar de ser produzido em um contexto definido, não é
temporalmente determinado, razão pela qual sua significação alude ao infinito. Portanto,
se para Baudelaire “tudo se transforma em alegoria”, a obra de arte deve resistir à consolidação de toda e qualquer significação aprisionada pelo tempo.
Esse dinamismo da obra de arte está relacionado na modernidade baudelairiana à
rapidez do mundo moderno, como apresenta o poeta em seu texto Le peintre de la vie
moderne ao afirmar que, no momento da produção da obra de arte, aparece no artista,
“un feu, une ivresse de crayon, de pinceau”que deriva de “la peur de n’aller pas assez
vite, de laisser échapper le fântome avant que la synthèse n’en soit extraite et saisie.”14
(BAUDELAIRE, 1976, p.699). Dessa forma, a rapidez que esse artista precisa ter para
que nada lhe escape está ligada ao ritmo do mundo moderno, a sua produção em massa
13 "Os equívocos da apreciação de um rosto resultam do ocultamento da imagem real por outra, alucinatória, que dela se origina". Projéteis (2006). Tradução de Fernando Guerreiro.
14
e a “la peur de n’aller pas assez vite”. Este medo, por sua vez, está relacionado à passagem do tempo porque é ele que degrada o entorno do poeta e o sujeita ao tédio.
1.2 O tempo, o spleene as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacunsa
Chimère”
A velocidade do mundo moderno, ou, de acordo com André Hirt, “as novidades do progresso”, provocam nos homens que as vivenciam, de acordo com noções que
caracterizam a poesia de Baudelaire, “spleen, ennui, péche originel” (HIRT, 1998, p.140). Para este estudioso, apesar de que com o capitalismo tenham sido instauradas a
“inquietude do novo e a vontade frenética de mudança a qualquer preço”, da mesma forma, para o poeta francês, o spleen é um afeto dessa época, cuja experiência é “tanto a
do tédio quanto a da melancolia”, como é possível observar no trecho a seguir:
Sua experiência [a do spleen] é tanto a do tédio quanto a da melancolia. É essencialmente a deficiência existencial e ontológica do labiríntico, ou seja, de um lado do que não tem saída clara, de outro o que insiste na impossibilidade de toda realização. O spleen é a antítese de toda solução. Além disso, o spleen é estruturado pela gravidade do tempo. (HIRT, 1998, p. 147)
O peso do spleen é de tal ordem no indivíduo, que este só pode vivenciá-lo “no
tédio” porque o spleen está relacionado à vida moderna cíclica que parece impor às pessoas sempre a mesma desesperança. Isso explica porque toda vez que faz referência
a esse sentimento, Baudelaire leva o tempo a uma condição exponencial, porque ele se
refere à passagem dos dias como degradação do mundo físico de cada indivíduo.
Exemplo disso é a seguinte passagem de “Chacun sa Chimère”, que apresenta esse aspecto degradante do spleen:
Tous ces visages fatigués et sérieux ne témoignaient d'aucun désespoir; sous la coupole spleenétique' du ciel, les pieds plongés dans la poussière d'un sol aussi désolé que ce ciel, ils cheminaient avec la physionomie résignée de ceux qui sont condamnés à espérer toujours. (BAUDELAIRE, 1976, p.283)
tempo” e “possui como um de seus recursos paradoxais o de degradar tudo o que encontra, todas as ocorrências cronológicas possíveis.” (HIRT, 1998, pp.147-148). É o tempo que degrada tudo o existente, e é o responsável pelas fisionomias resignadas dos
homens. Por isso, nessas linhas de “Chacun sa Chimère”, Baudelaire representa alegoricamente a vida do homem moderno através de imagens degradadas da fisionomia
destes e do caminho físico em que se encontram, o que situa o poema na esfera do
spleen.
Segundo Hirt, essa deterioração se liga à origem da palavra spleen, que surgiu
antes de Baudelaire e designava os “vapores ingleses”: a fumaça proveniente das
indústrias que dependia do carvão para funcionar era expelida à atmosfera, deixando o
céu e o ambiente cinzentos, como se indica na citação a seguir:
O spleen possui uma origem geográfica muito determinada: é uma questão de spleen inglês para designar um céu inglês, um clima inglês, um nevoeiro, bem inglês, sem falar que uma certa atmosfera se reconhecia na superfície do céu tão ligada ao Moderno, aquela que é invadida pela poeira de carvão nas grandes metrópoles do capitalismo triunfante na segunda revolução industrial. (HIRT, 1998, p. 150)
Não é por acaso que esse céu também está relacionado à obra de Baudelaire. O
aspecto meteorológico ligado ao contexto industrial aparece muitas vezes ao longo de
seus escritos. Em “Chacun sa Chimère”, esse céu cinza é uma “coupole spleenétique”.
Este recebe um tratamento estético semelhante no poema “Spleen” do livro Les Fleurs du Mal: “pèse comme un couvercle/Sur l'esprit gémissant”. Além disso, esse céu de
“Chacun sa Chimère” é descrito como “un grand ciel gris” que enclausura “une grande plaine poudreuse”. Por outro lado, esse poema em prosa também põe em perspectiva a relação com o tempo na medida em que ele aparece como fator degradante. O
vocabulário escolhido por Baudelaire representa, alegoricamente, a degradação da
sociedade que vive o sonho moderno. Palavras e expressões como “coupole spleenétique”, “poussière d’un sol aussi desolé que ce ciel” “physionomie résignée”,
“condamnés à espèrer toujours”, “lourdement accablé” e “Indifférence”, compõem a
deterioração provinda do peso do tempo, segundo foi afirmado por Hirt. O “cortège”
com que se representam os “plusieurs hommés qui marchaient courbés” remete a “des esprits errants et sans patrie” do poema “Spleen” (LXXVIII) de Les Fleurs du Mal, que exemplifica mais uma vez a deterioração do mundo moderno através de imagens de
A condição deteriorante da cidade submetida ao tempo da indústria é
representada na poesia de Baudelaire por meio da evocação dos trabalhadores na
sociedade moderna. No primeiro parágrafo do poema que aqui se analisa, é descrita a
seguinte situação : “Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs hommes
qui marchaient courbés.”. Cada um desses “hommes courbés” carregava em seus costas
“une énorme Chimère aussi lourde qu’un sac de farine ou de charbon”. A utilização de
“un sac de farine ou de charbon” como termo de comparação ao peso do monstro remete a uma sociedade que concebe a indústria como uma manifestação evidente do
progresso. No entanto, para Baudelaire, o progresso acarreta a “atrofia do espírito”,
como explica Hugo Friedrich:
Baudelaire define o progresso como “uma diminuição progressiva da alma, uma dominação progressiva da matéria” e ainda como uma “atrofia do espírito”. Ele nos fala de seu imenso desgosto perante os cartazes, os jornais, perante o “fluxo crescente da democracia nivelando toda coisa.” (FRIEDRICH, 1999, p.54)
Considerando o progresso como “uma diminuição progressiva da alma”, a
referência à indústria no poema é, de certa forma, uma alusão a essa “atrofia do
espírito” provocada pela “Chimère”, ou pelo peso da vida moderna, que está diretamente relacionada aos sentimentos provocados pelo spleen: a melancolia e o tédio.
Desta forma, observa-se que, através do conceito de spleen, Baudelaire torna explícito
que ele confere um caráter objetivo às manifestações espirituais e afetivas do homem
moderno: a “plaine poudreuse” da qual fala o poeta, não deixa de ser uma representação da vida dos trabalhadores condicionada por essa cidade grande onde vivem.
Através da negação, Baudelaire evoca os elementos que se espera encontrar
nessa planície. Em outras palavras, no poema, ele faz referência ao que está ausente.
Objetivamente, bastaria representar a “grande plaine poudreuse” vazia; no entanto, o poeta opta por utilizar esses elementos que expõem tudo o que nela poderia ou deveria
existir, mas que não existe. A descrição de um ambiente “sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie” se apresenta, portanto, como o que a vitrine de uma
trabalhar e dormir, e não podem desfrutar daquilo que seu pouco dinheiro
eventualmente poderia comprar.
Dessa maneira, a evocação de imagens através de sua negação constitui uma
abordagem do spleen no sentido de que seria uma representação da desigualdade social
e da impossibilidade do poder de compra dos trabalhadores. Ou seja, uma representação
alegórica de uma das condições provocadas pela modernidade na cidade de Paris,
metrópole que, segundo Benjamin, (1989, p.167) nunca é “descrita” por Baudelaire
porque não é “a melodia” que o poeta “tem em mente” (BENJAMIN, 1989, p.161). Isso
acontece porque essa Paris está relacionada ao “elemento imutável” e não pode ser
representada com exatidão. Por isso, a evocação dessas imagens através de sua ausência
seria uma forma de “aguçar o olhar” para captar seus elementos transitórios que caracterizam a cidade em sua modernidade. No entanto, o ritmo que a modernidade
imprimiu à vida na metrópole exige do artista moderno uma forma de expressão que lhe
permita usar a seu favor a condição limitante do tempo. Por isso, ao tentar captar os
elementos transitórios e valer-se deles de forma alegórica em sua obra, ele dispõe os
materiais artísticos de maneira a adaptá-los aos diversos formatos que poderiam aludir
ao elemento imutável.
Essa capacidade de adaptação da obra de arte moderna a novos olhares deriva
diretamente do ideal da prosa poética de Baudelaire. Exemplo disso é o seguinte trecho
de sua dedicatória à Arsène Houssaye, disposta como o prefácio de Le Spleen de Paris:
Quel est celui de nous qui n’a pas, dans ses jours d’ambition, rêvé le miracle d’une prose poétique, musicale, sans rythme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme, aux ondulations de la rêverie, aux sobressauts de la conscience ? (BAUDELAIRE, 1976, p.275-276)15
Essa “prose poétique, musicale, sans rythme et sans rime, assez souple et assez
heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme.” destina-se, como explica
Max Milner, à “musicalidade por outros meios além da sonoridade e da métrica. Esses meios nos sugerem, pela menção de muitas de suas relações, haver nascido da
frequentação das grandes cidades”. A cidade grande, portanto, é aludida na obra de
Baudelaire através da “estética de modulação e variação, que trabalha com afinidade entre imagens e temas, suas evocações, choques e dissonâncias.” (MILNER in:
BAUDELAIRE, 1979, p.16). Por isso, a obra não tem ritmo nem rima, já que a
representação só pode ser feita por elementos transitórios que são mutáveis e finitos.
Estes são organizados pelo poeta em um conjunto que não é estático, já que fazem parte
de algo que só pode ser evocado: a cidade grande. Esta é relacionada à serpente aludida
por Baudelaire ainda em sua dedicatória:
Nous pouvons couper où nous voulons, moi ma rêverie, vous le manuscrit, le lecteur sa lecture ; car je ne suspends pas la volonté rétive de celui-ci au fil interminable d’une intrigue superfine. Enlevez une vertèbre, et les deux morceaux de cette tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachez-la en nombreux fragments, et vous verrez que chacun peut exister à part. Dans l’espérance que quelques-uns de ces tronçons seront assez vivants pour vous plaire et vous amuser, j’ose vous dédier le serpent tout entier. (BAUDELAIRE, 1976, p.275)16
A serpente evocada por Baudelaire anteriormente pode ser interpretada como
uma alusão a Paris ou à cidade grande. Suas vértebras podem ser consideradas como
elementos transitórios que se juntam para compor a representação da vida moderna
gerada por essa Paris vivida pelo poeta. Traspondo essas reflexões para uma
interpretação de “Chacun sa Chimère”, é possível estabelecer um paralelismo entre as vírgulas e as vértebras: na composição dos elementos transitórios, elas dividiriam as
representações alegóricas de forma que cada uma delas possa ser lida e evocada
separadamente. Porque se “tudo se transforma em alegoria”, para Baudelaire cada representação que compõe a imagem da cidade precisa significar.
Nesse sentindo, de acordo com Hirt, “a imagem do poema guarda o que está antes do poema e aponta em direção ao seu porvir em geral assim como em direção ao
futuro transformado na sua recepção, como a memória de um futuro” (HIRT, 1998, p. 126). Dessa forma, a importância da vírgula em “Chacun sa Chimère” se torna fundamental para a representação alegórica individual de cada elemento evocado.
A essa ideia da vírgula enfatizando cada elemento transitório está ligada a
seguinte afirmação de Baudelaire: “nous pouvons couper où nous voulons”. Porque se cada poema constitui uma representação do transitório que alude ao elemento imutável
– ou à cidade grande –, assim como não existe ordem estática dos textos e a supressão de algum deles não impede o conjunto de se refazer, a ordem das imagens que compõe
cada poema também não é estática. Daí se depreende que se todos os poemas podem ser
lidos separadamente e cada um poderia ser considerado como um universo, assim
também o é cada representação alegórica individual e a alusão ao “immuable” se dá através de cada uma ou do conjunto delas, os poemas e o livro completo. Dessa forma,
retirar algo de um poema estaria na mesma esfera de retirar um deles do conjunto Le
Spleen de Paris. Porque sendo o transitório, elementos de um poema ou o poema total,
eles continuam aludindo à mesma “matéria”, ou seja, a cidade grande, o que pode ser corroborado pela interpretação de Barbara Johnson em seu livro Défigurations du
langage poétique (1979) onde ela explica a reversibilidade dos poemas em prosa de
Baudelaire:
Não poderíamos considerá-la [La Dédicace] como um poema em prosa? E se essa primeira parte já é um poema em prosa, não poderíamos, pela mesma lei de reversibilidade considerar os poemas que vem logo depois como “préfaces”? (P.28-29)
Considerar os poemas em prosa como “préfaces” ou a “Dédicace” como poema
em prosa não alteraria a “matéria”, porque esta é um conjunto de suas “percepções” que
são apenas alusões ao “elemento imutável”. Como exemplo desta discussão, é possível
considerar a ideia de que cada poema configura todo um “universo” em que cada frase é uma de suas “vertèbres”. Nesse sentido, é preciso voltar ao primeiro parágrafo de
“Chacun sa Chimère”: “Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs
hommes qui marchaient courbés”.
Nessa passagem, é possível observar a importância da vírgula em cada
representação que faz o poeta. Cada elemento evocado pela negação é a alegoria de um
aspecto da cidade grande porque está disposta de forma a que sempre aluda a ela. A
“grande plaine poudreuse”, por exemplo, pode ser lida como o ambiente dos habitantes da cidade grande. A vírgula, portanto, separa cada uma dessas representações, que
podem ser consideradas, isoladas, como um universo dentro de um maior. Esse aspecto
se torna mais claro ao comparar algumas das traduções do poema, porque é possível ver
nelas sutilezas nas evocações dos elementos que, apesar de não comprometerem o
conjunto, ajudam na compreensão dessa questão de que se ocupa Baudelaire no trecho
tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachez-la en nombreux fragments, et vous
verrez que chacun peut exister à part”.
A primeira tradução escolhida é a de Aurélio Buarque de Holanda, de 1966,
editada no Rio de Janeiro pela Civilização Brasileira com o título de Pequenos Poemas
em prosa. A segunda é a de Dorothée de Bruchard, de 1988, lançada em Florianópolis
pela editora da UFSC em edição bilíngue, intitulada Pequenos Poemas em prosa. A
terceira obra traduzida é de língua espanhola de Mercedes Sala feita em Barcelona no
ano 1995 pela editora Edicomunicación com o nome de Pequeños Poemas en prosa. E a
quarta tradução escolhida é de língua inglesa por Louise Varèse, lançada em Nova York
no ano de 1970 pela editora New Directions com o título de Paris Spleen.
Sob um grande céu cinzento, uma grande planície poeirenta, sem caminhos, sem gramados, sem uma urtiga, sem um cardo, encontrei vários homens que andavam curvados.
Sob um grande céu cinza, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens que
marchavam curvados.
Bajo un amplio cielo grisáceo, en una amplia llanura polvorienta, sin caminos, ni hierba, sin un cardo, sin una ortiga, me crucé con muchos hombres que caminaban
encorvados.
Under a vast gray sky, on a vast and dusty plain without paths, without grass, without a nettle or a thistle, I came upon several men bent double as they walked.
Nas duas traduções em português de Aurélio e De Bruchard, apesar das
alterações tradutórias de ordem linguística e formal, há os mesmos elementos
referenciais citados por Baudelaire: “une grande plaine poudreuse”, “sous un grand ciel gris”, “sans chemins”, “sans gazon”, “sans un chardon”, “sans ortie”. Esses elementos estão separados por vírgulas com as mesmas pausas feitas pelo poeta, o que significa
que o quadro total, ou a imagem do original, apresenta os mesmos referentes nessas
duas traduções. As seis pausas permanecem e as ausências do original que constituem a
planície como um todo também aparecem nessas traduções.
No entanto, na tradução do espanhol de Mercedes Sala, no lugar de “sans gazon”
aparece “ni hierba”. O “ni”, dá uma fluidez ao poema e parece, apesar da vírgula,