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Não reproduziremos novamente os dogmas cristãos tratados por Schopenhauer no livro IV d’ O Mundo, pois já os abordamos no capítulo anterior. O nosso atual propósito consiste em esclarecer por que afirmamos que aqueles dogmas, inseridos pelo autor no momento da negação da vontade, podem mostrar o místico. Nesse caso, as alegorias cristãs devem ser entendidas como alegorias poéticas, ou seja, elas mostram o que é a vida. Então, quando a linguagem científica atinge o seu limite, Schopenhauer “empresta” a linguagem da outra metafísica – no fundo é a religião que empresta a linguagem dos poetas – e assim, via dogmas cristãos, mostra aquilo que não pode ser dito: o QUÊ do COMO do mundo. O autor não pode explicar a liberdade obtida na negação da vontade de modo estrito, porque a mesma é um atributo da coisa em si, do místico. E, como tudo aquilo cujos fundamentos estão além da experiência, é um mistério para Schopenhauer, como é o caso da compaixão (“este processo é, eu repito, misterioso”: E II, p.163), a liberdade também é um mistério (“La liberté est um

mystère”: WI, §70, p.468), e então só pode ser explicada pela linguagem alegórica.

Nesse caso, não podemos dizer que as alegorias estão ali presentes na filosofia schopenhaueriana para esclarecer o que foi dito, ou para explanar a linguagem senso estrito, simplesmente porque não há mais linguagem. Como dar um esclarecimento daquilo que jamais conheceremos, daquilo que nunca será dito? Seria um absurdo dizer que tais alegorias, presentes no livro IV d’ O Mundo, servem para explicar ou esclarecer o que é o místico. O místico não se diz, não se explica, ele apenas se mostra. E o poeta é justamente aquele que o mostra mediante a linguagem. Schopenhauer prefere, portanto, recorrer ao método dos místicos, com o intuito de, pelo menos, mostrar o QUÊ é o místico ao leitor, a nada dizer. Como tais dogmas atuam como substitutos da linguagem senso estrito, eles acabam assumindo uma característica diferente daquela concernente ao seu papel vulgar, que é o de esclarecer pontos do pensamento schopenhaueriano.

É, pois, tendo em mente que a outra metafísica revela a verdade ao povo, ainda que de forma alegórica, que Schopenhauer “empresta” sua linguagem. A explicação

fundamental para o êxito dos sistemas religiosos embasa-se no pressuposto schopenhaueriano de que a apreensão do QUÊ é algo obtido unicamente via Ideias. Numa passagem do Suplemento 17, destacamos uma passagem na qual Schopenhauer aproxima algumas religiões da arte, mencionando o fato delas terem sido capazes de apreender a essência íntima do mundo em sua forma mais pura, o que só é possível mediante a Ideia (a objetidade mais adequada da coisa em si):

(...) quer-me parecer que nos tempos primevos, sobre esta mesma superfície terrestre, as coisas foram diferentes e os que estavam bem mais próximos que nós do nascimento do gênero humano e da fonte originária da natureza orgânica também tinham, em parte, uma maior energia das faculdades intuitivas de conhecimento, em parte, uma disposição mais correta de espírito, com o que foram capazes de uma

apreensão mais pura e imediata da essência da natureza e com isso estavam em

condições de saciar de uma maneira mais digna a necessidade metafísica: assim, nasceram naqueles ancestrais dos brāhmanas, os rishis, as concepções quase supra-humanas que depois foram depositadas nos Upanishads dos VEDAS. (W II, cap. 17, p.197-198; grifo nosso).

De acordo com livro III d’ O Mundo, as Ideias são as verdadeiras responsáveis por nos revelar o QUÊ o mundo é, mas elas, por sua vez, residem completamente fora da esfera de conhecimento do indivíduo, por isso, o seu acesso torna-se possível tão-somente mediante o puro sujeito cognoscente, para quem a essência íntima do mundo é revelada – se acaso o puro sujeito do conhecimento for um artista, ele comunica a Ideia apreendida na forma de arte. Sendo assim, de acordo com o sistema schopenhaueriano, para que as religiões possam mostrar a verdade metafísica ou o QUÊ, é necessário que as mesmas sejam também uma expressão artística. Noutras palavras, a condição para que os sistemas religiosos cumpram com seu propósito metafísico é que eles sejam um tipo de arte, mais precisamente, uma arte discursiva, que trabalha com palavras e é classificada por Schopenhauer como poesia. Quando estudamos a poesia, vimos o quão imprescindível são as alegorias para conduzir o leitor às Ideias e assim lhe mostrar o QUÊ; e esse mesmo raciocínio é válido para as doutrinas religiosas: as alegorias são usadas com o mesmo propósito.

Do nosso raciocínio segue-se, portanto, que o método utilizado pelas doutrinas religiosas para comunicar a verdade metafísica à população é idêntico ao método do poeta – Schopenhauer usa, aliás, a expressão “mística do sufismo”, bem como se refere

a essa classe de místicos como “os poetas do sufismo” (W II, cap.48, p.730), que não seriam, de fato, poetas sem que o autor assim os considerasse. Os “poemas do sufismo” pertencem até mesmo ao seleto grupo de suplementos positivos, indicados por Schopenhauer àqueles que querem ir além da filosofia; e tais poemas estão ao lado dos

Upanishads, dos escritos de Jakob Böhme e Guion, dentre outros. Essa qualidade de poeta, por sua vez, não é algo que a filosofia schopenhaueriana nos permite atribuir exclusivamente aos sufistas, ela se estende aos místicos em geral. E a exemplo dos místicos e poetas, Schopenhauer igualmente aplica o mesmo método alegórico no momento em que se encontra diante do místico. Essa atitude do autor não parece ser uma novidade na filosofia, pois o próprio Schopenhauer sugere que outro filósofo já a teria tomado: basta relembrarmos do tratamento dado por Schopenhauer aos poetas na § 50 d’ O Mundo, quando o autor inclui Platão dentre eles, e aponta para o fato de que o filósofo grego teria recorrido a uma alegoria diante de “um dogma filosófico altamente abstrato” (W I, §50, p. 277-278). Mais precisamente, Platão teria comunicado o que é o místico (no vocabulário platônico: o que é o mundo inteligível) via alegoria da caverna. De qualquer forma, uma vez que Schopenhauer aplica o método dos místicos em sua própria filosofia, torna-se notório o seu reconhecimento pelo papel desempenhado pela segunda metafísica.

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