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cabe o ofício de fazer com que o leitor intua as Ideias por meio dos conceitos presentes em sua poesia. Para Schopenhauer, embora toda a natureza (as Ideias em todos os seus graus de objetivação) seja exponível pela poesia, seu objeto primordial é a manifestação da Ideia de ser humano. A arte poética supera as artes plásticas, na opinião do nosso autor, por ser capaz de expor o dinamismo da humanidade, isto é, a série de ações, esforços, pensamentos e afetos que acompanham a vida de todo ser humano. Ao contrário do escultor e do pintor, um poeta consegue exprimir o desenvolvimento desses eventos humanos44.

LINGUAGEM DA MÚSICA

“A música fala-nos mais inteligivelmente do que qualquer outra linguagem” (HN IV, I, p.106), afirma Schopenhauer. Embora, para o nosso autor, a música corresponda a um tipo de arte, ela é, na verdade, de uma natureza diferente das demais artes, uma vez que não é fruto do conhecimento das Ideias. Vimos que o objeto de toda arte é a Ideia, a qual o artista deve repetir em seu trabalho, porém, no caso da música, trata-se de uma arte na qual o puro sujeito do conhecimento não é considerado mais um correlato da Ideia. A arte musical não precisa da intervenção de nenhuma Ideia para cumprir o seu objetivo artístico, porque ela mesma é a expressão direta da coisa-em-si. Enquanto as demais artes objetivam a vontade mediatamente, por meio de Ideias, a música, segundo Schopenhauer:

é uma IMEDIATA objetivação e cópia de toda a VONTADE, como o mundo mesmo o é, sim, como as Ideias o são, cuja aparição multifacetada constitui o mundo das coisas singulares. A música, portanto, não é de modo algum, como as outras artes, cópia de Ideias, mas CÓPIA DA VONTADE MESMA, da qual as Ideias também são a objetidade: justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência. (W I, §52, p.298).

A música é, portanto, uma arte completamente independente das Ideias e aparências, ela, na verdade, ignora o próprio mundo. Por esse motivo, na visão de

Schopenhauer, a música poderia existir até mesmo se o mundo não existisse. Barboza esclarece esse ponto do seguinte modo: “poderia não haver fenômenos, aparências, representações submetidas ao princípio de razão, mas haveria o íntimo cósmico, independente do referido princípio, a vontade. A música é o metafísico atrás da realidade física”45. Nas palavras de Safranski: “a “coisa em si”, na música, realmente ergue-se a cantar”46. Sendo assim, podemos dizer que há uma convergência entre os resultados da música e os da filosofia: ambas expressam o em si do mundo. É por isso que, do ponto de vista de Schopenhauer, se compreendermos o sentido profundo da música, logo compreenderemos o QUÊ o mundo é; e, da mesma forma, se acaso alguém conseguisse dar uma completa e perfeita explicação da música em conceitos abstratos, tal equivaleria à verdadeira filosofia (W I, §52, p.306).

Schopenhauer afirma que, através da música, “o íntimo mais fundo de nosso ser é trazido à linguagem” (Id., p.296). Mas que linguagem propriamente é essa capaz de tocar a nossa natureza mais profunda? Em se tratando da linguagem musical, Schopenhauer condena a presença de quaisquer elementos estranhos e arbitrários associados à música, o que inclui até mesmo a palavra. Por isso, quando fala em música, o nosso autor, no fundo, está se referindo àquela puramente instrumental, sem quaisquer outras artes incorporadas a ela, porque a música deve bastar a si mesma. É nesse sentido que Schopenhauer diz que a música de Rossini “fala tão clara e puramente a sua linguagem PRÓPRIA, visto que quase não precisa de palavras” (Id., p.303). “As palavras”, afirma Schopenhauer, “são e permanecem como acréscimos estrangeiros de valor secundário para a música, assim como o efeito dos tons é incomparavelmente mais poderoso, mais infalível e mais rápido do que as palavras (...)” (W II, cap.39, p.538). Mas se a verdadeira música é aquela que toca sem palavras, então, surge o problema de reproduzir em conceitos o inefável, como aponta Lefranc:

não há como tornar inteligível uma relação de imitação ou de reprodução entre o mundo e a música. Temos sem dúvida de nos contentar com compreendê-la

45 Barboza, op.cit. (A decifração...), p.76.

46 Safranski, R. Schopenhauer und die wilden Jahre der Philosophie. Frankfurt am Main: Fisher Verlag, 2001; p.352.

imediatamente e, neste sentido, a música é o paradoxo de uma linguagem inefável47.

Note-se que novamente nos deparamos com a expressão linguística atingindo o seu limite diante do inefável. Vimos que a linguagem que trata da verdade no sentido estrito não consegue alcançar as Ideias e, por conseguinte, não é capaz de nos dizer o QUÊ o mundo é. Um filósofo, na visão de Schopenhauer, jamais conhecerá o QUÊ se iniciar sua investigação pelos conceitos, almejando, com isso, chegar ao conhecimento do todo do mundo, porque é exatamente o contrário que deve ser feito: é o QUÊ, o conhecido in concreto que deve ser vertido em conceitos, isto é, deve-se partir dele (W I, §12, p.65); e, para tanto, é mister que se alcance as Ideias. Entretanto, a linguagem musical, por ser uma expressão imediata da coisa em si, não passa pelas Ideias.

Na verdade, a linguagem da música é de outra natureza (oposta àquela da linguagem senso estrito), cuja característica principal é a ausência de conceitos abstratos: “sempre se disse que a música é a linguagem do sentimento e da paixão, assim como as palavras são a linguagem da razão” (Id., §52, p.300; grifo nosso), afirma Schopenhauer. A música não é senão a linguagem do sentimento, e não da razão (ou do saber), porque “saber” (scire) significa, para o autor, apenas o conhecimento abstrato e racional, ou seja, unicamente aquilo que pode ser comunicado por meio de conceitos, os quais, por sua vez, são obtidos através da razão. O oposto de “saber” é “sentimento”, ou então, a simples ausência de “saber” já constitui o “sentimento”, por esse motivo, o sentimento nada mais é do que um “conceito negativo”, para Schopenhauer, como nos comprova a seguinte sentença:

a palavra SENTIMENTO designa um conceito de conteúdo completamente NEGATIVO, noutros termos, designa algo presente na consciência que NÃO É CONCEITO NEM É CONHECIMENTO ABSTRATO DA RAZÃO: não importa o que isso seja, sempre cai sob a rubrica do conceito de SENTIMENTO, cuja esfera é extraordinariamente ampla e, por conseguinte, abrange as coisas mais heterogêneas que só entendemos como se agrupam quando reconhecemos que coincidem unicamente neste aspecto negativo: NÃO SEREM CONCEITOS ABSTRATOS. (Id., §11, p.60).

47 Lefranc, op.cit, p.211.

Do ponto de vista de Schopenhauer, os sentimentos podem ser os mais diversos possíveis, desde o amor até o ódio, o que inclui também os seguintes sentimentos: religioso, estético, de saúde etc., os quais têm em comum apenas o fato de não serem conhecimentos abstratos da razão. Schopenhauer considera “sentimento” até mesmo o fato de estarmos conscientes do conhecimento de alguma verdade, a qual ainda não a formulamos em conceitos abstratos: como tal conhecimento até então não foi transmitido por palavras, o autor diz que nós, por enquanto, apenas o sentimos (Id., p.61). Então, no caso da música, quando a mesma fala sua linguagem própria, fala, na verdade, uma linguagem negativa, caracterizada pela ausência de conceitos abstratos. E assim a decifração do enigma mundo, isto é, a sua versão em conceitos, por ora, ainda fica por resolver.

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