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De acordo com alguns estudiosos, como Deussen, Hübscher e Safranski, a expressão schopenhaueriana “negação da vontade” foi, inicialmente, denominada de “consciência melhor” (bessere Bewusstsein), haja vista que Schopenhauer usa a expressão “consciência melhor” na elaboração de sua doutrina, em 1812, mas apenas nos dois primeiros Manuscritos, não voltando a usá-la nunca mais, assim que a expressão “negação da vontade” aparece em seus escritos. Para Deussen, Schopenhauer abandonou a bela expressão “consciência melhor”, porque não queria descrever o que esse mundo inteiro nega com uma expressão positiva derivada da realidade empírica52. Na visão de Hübscher, Schopenhauer acredita reconhecer essa consciência melhor na “clarividência absoluta” de Fichte ou na “intuição intelectual” de Schelling, embora note logo a diferença: Fichte e Schelling creem numa capacidade obtida através da instrução do entendimento, mas a consciência melhor é independente do entendimento, limita-se sempre apenas ao momento e oculta-se a toda comunicação53. Com efeito, os Manuscritos nos deixam claro que a “consciência melhor” não consiste em algo produzido pela razão, mas, pelo contrário, como observa Safranski, ela é: “uma ideia que não pode ser invocada através de nenhum propósito, uma inspiração, uma vivência pentecostal. Consciência empírica e melhor fendem-se separadamente”54. O que Schopenhauer entende por consciência empírica é nada mais do que a consciência temporal, influenciada pelo entendimento, pela sensibilidade e pela faculdade de razão, ou seja, é a consciência que pensa e conhece, segundo a relação sujeito-objeto. Por outro lado, a consciência melhor é aquela que aniquila todas as classes de objetos, não conhecendo nem objeto, nem sujeito (HN I, p.137, p.151, pp.166-167). Na verdade, na opinião do próprio Schopenhauer, “consciência” teria que ser um termo restrito à razão (Vernunft), porém, segundo o autor, precisamos dessa palavra não apenas para denotar todo o ser-sujeito correlativo de todas as classes de representações, mas também para incluir nela a consciência melhor, que já não é mais um ser-sujeito em absoluto (HN I, p.152).

52 Deussen, P. “Schopenhauer und die Religion”. In: 4. Schopenhauer-Jahrbuch, 1915, pp.8-15; p.13. 53 Hübscher, A. “Vom Pietismus zur Mystik”. In: 50. Schopenhauer-Jahrbuch, 1969; pp.1-32, p.17. 54 Safranski, op. cit., p.201.

Em 1813, Schopenhauer diz que a consciência melhor pode ser entendida, no sentido vulgar, como Deus, ou como ascetismo (HN I, p.42, p.52), noutros termos, ela denota um raro momento de liberdade humana, quando o intelecto se liberta do domínio da vontade. Na transição da consciência empírica para a consciência melhor, ocorre o desaparecimento do sujeito, do “eu” e, por conseguinte, de todo objeto e do mundo como representação. Como diz Safranski: “sem o Eu (Ichlos) e, por isso, intangível, a consciência melhor tem o mundo diante de si, um mundo, no entanto, que, porque ela não mais atua num “Eu”, num determinado sentido também deixa de ser real. O mundo torna-se um “arabesco (...)”55. Apesar de destacar a duplicidade da consciência, Schopenhauer defende que ou temos uma consciência, ou a outra, e jamais as duas ao mesmo tempo, pois a consciência melhor destrói a consciência empírica, afinal, é preciso romper com a última para se alcançar a primeira (HN I, p.79, p.111). Segundo o autor, tal duplicidade da consciência torna-se bastante clara na ocasião da morte, quando num momento de paz, a consciência melhor afrouxa o vínculo misterioso da consciência empírica com o “eu” (Id., p.68). Enquanto estamos preenchidos pela consciência empírica, a ideia da morte nos é assustadora, porque a morte significa a nossa destruição, a aniquilação da aparência que somos; mas nos momentos finais que a precedem, pensamos nela com alegria e fonte de paz. Sobre esse ponto, Safranski afirma:

que há a duplicidade irreconciliável da consciência, a possibilidade de uma dupla perspectiva, de uma dupla experiência, é, para Schopenhauer, tão evidente que ele, como mais tarde faria Wittgenstein, encarrega a filosofia, verdadeiramente, com uma tarefa negativa: ela deve dizer na linguagem discursiva o que pode dizer, com o intuito de que aquele âmbito, no qual a linguagem não chega, seja delimitado; ela deve ir até o limite do possível trabalho conceitual, para que ela saiba do que não se pode dar nenhum conceito. No entendimento de Schopenhauer, será o ofício da filosofia proteger-se disso, de ser seduzida por si mesma, do impulso da própria conceitualidade. O indizível [Unsagbare] não deve se tornar inexprimível [Unsäglichen].56

Com a citação acima, Safranski já antecipa o assunto que adiante trataremos sobre o limite do discurso filosófico frente ao místico, quando os objetos sensíveis

55 Id., p.202.

desaparecem-nos e, por conseguinte, também os conceitos; e assim o filósofo se vê na obrigação de parar com sua escrita, em virtude da falta de seu material de trabalho.

É no terceiro Manuscrito (1818) que surge, pela primeira vez, a noção schopenhaueriana de “negação da vontade” e, coincidentemente, a partir desse

Manuscrito a expressão “consciência melhor” já não mais aparece. Nesse sentido,

concordamos com Safranski quando ele diz que, se no início de suas investigações, Schopenhauer buscava uma linguagem adequada para aquilo que experimentou e se referiu como Wünschbilder der Überschreitens, inicialmente unificado pela expressão “consciência melhor”, depois a mesma passará a ser chamada de “negação da vontade”57.

E o que é essa negação da vontade? Ou então, o que leva a vontade de vida a cessar o seu ato natural e incessante de autoafirmação? De acordo com a doutrina schopenhaueriana, assim como a afirmação plena e consciente da vontade, a negação da vontade também ocorre mediante o conhecimento. Entretanto, no primeiro caso, o conhecimento afirma o querer; e, no último caso, trata-se de um conhecimento capaz de cessar esse mesmo querer. Na seção 54 d’ O Mundo, podemos obter uma visão geral desses dois conceitos, opostos entre si, quando Schopenhauer trabalha-os em paralelo, na seguinte passagem:

a vontade afirma a si mesma, significa: quando em sua objetidade, ou seja, no mundo e na vida, a própria essência lhe é dada plena e claramente como representação, esse conhecimento não obsta de modo algum seu querer, mas exatamente esta vida assim conhecida é também enquanto tal desejada; se até então sem conhecimento, como ímpeto cego, doravante com conhecimento, consciente e deliberadamente. – O oposto disso, a NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA, mostra-se quando aquele conhecimento leva o querer a findar, visto que, agora, as aparências individuais conhecidas não mais fazem efeito como MOTIVOS do querer, mas o conhecimento inteiro da essência do mundo, que espelha a vontade, e provém da apreensão das IDEIAS, torna-se um QUIETIVO da vontade e, assim, a vontade suprime a si mesma livremente. (W I, §54, p.329-330).

Enquanto as representações estiverem fazendo efeito, como motivos, ao nosso querer, a essência do mundo continuará se afirmando, mas esse movimento necessário do nosso querer em direção a elas pode, sim, ser raramente rompido, quando então

57 Id., p.201, p.312.

aquela essência é negada. Porém, de acordo com o sistema de Schopenhauer, essa ruptura no movimento do querer é algo que não ocorre por força de resolução do indivíduo; isto é, ela não é produto de uma deliberação, segundo a qual o indivíduo pondera sobre os prós e os contras da afirmação da vontade e, por conseguinte, decide livre e simplesmente não mais afirmar a sua vontade de vida. Não se trata aqui de um conhecimento abstrato, obtido por conceitos ou mesmo por um manual de instrução: é um conhecimento intuitivo, tal qual aquele do gênio, proveniente da apreensão das Ideias. Nesse caso, o sujeito obtém um conhecimento do mundo inteiro como essência, e é justamente esse conhecimento que o leva à negação da vontade. Como vimos no capítulo anterior, durante o momento de contemplação estética, quando o indivíduo apreende uma Ideia e então se torna o puro sujeito do conhecimento, os motivos param de fazer efeito sobre ele, pois o objeto intuído não é mais uma aparência, mas sim uma Ideia e, por conseguinte, o sujeito está livre dos efeitos dos objetos do mundo como representação. Desse modo, podemos dizer que a contemplação estética também nos permite fruir uma liberdade fugidia, ainda que sejamos libertos do ímpeto furioso da vontade por apenas alguns instantes, pois logo o nosso querer lembra-nos novamente dos nossos fins pessoais e assim afasta-nos da calmaria da contemplação, a qual, para ocorrer novamente, precisa ser reconquistada. Vejamos agora, pelo viés da negação da vontade, de que modo essa liberdade pode ser obtida de modo mais duradouro.