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“Em primeiro lugar, você deve notar que eu não sou o Filaletes” (Schopenhauer, 30. October 1851)

Na visão de Thomas Regehly, Schopenhauer apresenta uma posição ambivalente para com a religião, porque, ao mesmo tempo em que o filósofo é um dos críticos mais apimentados do monoteísmo e um ateu confesso, ele fala também do benefício da religião e até mesmo considera viável usar o conceito “Deus” em determinadas condições prévias. Além disso, para Regehly, a inverdade postulada da religião confronta a afirmação de Schopenhauer de que a religião lida plenamente com a verdade101. Tal ambivalência pode, segundo Regehly, ser vista sobretudo no diálogo “Sobre a Religião”: “a ambivalência em relação à religião é encenada de modo impressionante na conversa “Sobre a Religião”, que se encontra no segundo volume de

Parerga e Paralipomena (Capítulo XV). A atualidade de Schopenhauer para a

101 Regehly, T. „Wohltat oder Fessel? – Schopenhauer und die zwei Seiten der Religion“. In: Die

Wahrheit ist nackt am Schönsten Arthur Schopenhauers philosophische Provokation, herausgegeben von

discussão filosófico-religiosa reside nessa ambivalência argumentativamente bem fundamentada”102. Para Regehly, o filósofo David Hume seria o grande inspirador desse diálogo schopenhaueriano, porque, em datas próximas, Schopenhauer ocupa-se com um projeto de tradução de Hume (que, por sua vez, teria feito uso de um diálogo para evitar assim dar a sua opinião diretamente) e escreve no Manuscrito Foliant (1826) o que pode ser considerado o gérmen do diálogo “Sobre a Religião”. Por isso, quando Schopenhauer afirma: “eu gostaria de traduzir os Diálogos de Hume e a História

natural, e então acrescentar essas e semelhantes considerações numa conversa apócrifa, supostamente só agora descoberta” (HN IV, I, p.122), Regehly acredita que a insinuada “conversa apócrifa” irá aparecer, na verdade, em 1851, no segundo tomo do Parerga, com o título “Sobre a Religião”103.

Para Alfred Schmidt, quando se observa mais de perto o mesmo diálogo considerado, depara-se com uma notável discrepância (zwiespältig) na avaliação de Schopenhauer sobre a religião104. Em seu livro Die wahrheit im Gewande der Lüge, Schmidt afirma que “o conhecido diálogo de Schopenhauer entre Demófeles e Filaletes, no segundo volume de Parerga e Paralipomena, ensina sobre a última ambivalência de sua relação com a religião”105. Do meu ponto de vista, porém, nós só podemos falar de uma possível ambivalência ou discrepância na posição de Schopenhauer se considerarmos que ambos os personagens representam a opinião do autor no tocante à religião. Entretanto, no diálogo “Sobre a Religião”, Schopenhauer, na verdade, não informa ao leitor qual personagem representa a sua opinião. Assim, num primeiro momento, o que nos resta são apenas dúvidas: Schopenhauer seria um dos dois personagens? Qual deles? Como Filaletes, cuja tradução do nome é “amigo da verdade”, despreza completamente o papel da religião na sociedade, enxergando apenas seus malefícios, é mais comum associá-lo à figura de Schopenhauer, ou melhor àquele clichê, que Neidert bem observa, a que Schopenhauer está comumente associado, a saber: “ateu, pessimista e desprezador da religião”106. Em cartas, porém, por duas vezes, Schopenhauer defende-se da acusação de que ele seria o Filaletes. Numa carta a Julius

102 Ibid.

103 Id., p.185.

104 Schmidt, A. „Religion als Trug und als metaphysisches Bedürfnis. Zur Religionsphilosophie Arthur Schopenhauers“. In: 91. Schopenhauer-Jahrbuch, 2010, pp.67-92, p.69.

105 Schmidt, op.cit., p.45.

106 Neidert, R. „Der „weltoffene“ Atheist Schopenhauer – offen auch für Religion, Christentum, gar Luther?“. In: 93. Schopenhauer-Jahrbuch, 2012, pp.441-462, p.442.

Frauenstädt, em 1855, Schopenhauer reprova o juízo de Hoffmann, que o teria acusado de “ateu impiedoso, burro”, baseando-se simplesmente na certeza de que a opinião de um dos dois personagens do diálogo (no caso, Filaletes) representaria a verdadeira opinião do autor. Contra o que considera uma perfídia, Schopenhauer responde:

o Hoffmann (...) ele xinga o que pode, “ateu insolente, burro” etc, – mas é tão estúpido ensinar muitas passagens minhas: embora todo mundo note assim, mesmo quem não me conhece, que eu, sobre tal assunto, sou o mais sublime canalha. Mas ele tem a perfídia de incluir entre as passagens também aquelas que um interlocutor no diálogo “Sobre a religião” diz, como se fosse simplesmente a minha opinião – lá, no entanto, o outro interlocutor diz, logo em seguida, o contrário disso.107

Antes, porém, no mesmo ano da publicação do diálogo (1851), Schopenhauer já havia escrito a J. Frauenstädt tais palavras:

em primeiro lugar, você deve notar que eu não sou o Filaletes: na última longa conversa, eu estou tanto em Demófeles, quanto em Filaletes. Aqui este tem de lidar com o Trasímaco, como ele pode: também é tudo uma brincadeira. A propósito, você encontrará o que ele diz em conformidade também com a minha filosofia, se você quiser verificar (O Mundo como vontade e representação, Vol. 1, p.318. e Bd. 2., p.501 ss.; como também p.635). A questão de quão profundas vão as raízes da individualidade está entre as insolúveis: mas, depende de sua solução, até que ponto o indivíduo é mera aparência, até que ponto ele é eterno. Então, especialmente numa controvérsia pode-se ver melhor um ou o outro lado.108

As sentenças fundamentais da carta podem ser elaboradas nos seguintes termos: (i) eu não sou o Filaletes; (ii) eu estou escondido atrás dos dois personagens; (iii) Demófeles é Trasímaco (personagem de Platão); (iv) a solução da discussão sobre a importância ou não da religião está ligada à questão da individualidade. Logo na primeira sentença da carta, Schopenhauer deixa fora de dúvida quem ele não é, ao afirmar peremptoriamente: “eu não sou o Filaletes!”. Entretanto, em seguida, o autor afirma algo que, à primeira vista, parece se contrapor à sua afirmação anterior, pois ele diz que está escondido atrás dos dois personagens. Além disso, Schopenhauer equipara

107 Brief Schopenhauers vom 16. Juni 1855 an Julius Frauenstädt. In: Schopenhauer, A. Gesammelte

Briefe, herausgegeben von Arthur Hübscher, Bonn 1978, p.365.

Demófeles a Trasímaco. Ora, se Schopenhauer não é o Filaletes, era de se esperar que ele fosse o Demófeles, mas, se este é Trasímaco, então ele não é Sócrates (isto é, não representa a opinião do autor). Por outro lado, Schopenhauer não diz “eu não sou o Demófeles”. Sendo assim, como interpretar essas afirmações do autor? Se considerarmos que os dois personagens (com opiniões opostas) representam Schopenhauer, então, realmente, temos aqui um caso evidente de discrepância no pensamento filosófico schopenhaueriano. Mas acaso Schopenhauer não teria notado essa contradição flagrante em seu sistema filosófico? Ou teria ele assumido uma posição ambígua para com a religião? Ou ainda, teria preferido esconder sua verdadeira opinião, através de um diálogo?

A chave para a compreensão da questão está em saber como Schopenhauer interpreta o personagem Trasímaco de Platão. Há dois escritos schopenhauerianos que nos dão pistas sobre isso: (i) no segundo tomo do Parerga há um diálogo travado entre Filaletes e Trasímaco, cujo assunto é a individualidade; (ii) na última carta supracitada, Schopenhauer afirma que a solução da questão sobre a religião está relacionada à individualidade. Analisando o diálogo do Parerga, intitulado “A propósito da doutrina da indestrutibilidade do nosso Ser verdadeiro através da morte”, deparamo-nos com Trasímaco defendendo a importância da individualidade e a soberania do EU em relação ao todo: apenas o EU importa, para ele. Filaletes, em contrapartida, ressalta que o indivíduo é somente uma manifestação da essência (esta, sim, é mais importante do que a individualidade), pois, enquanto o indivíduo acaba, a essência não (P II, p. 253-257). Os detalhes desse diálogo não são tão relevantes para a nossa investigação, é suficiente sabermos que, em síntese, cada um dos personagens supervaloriza um dos aspectos da filosofia de Schopenhauer: Demófeles, o mundo sensível; Filaletes, o mundo da vontade. Por isso, Schopenhauer insinua na carta que, sobre o tema em discussão, tudo depende de que lado a questão é vista.

Ao longo do texto, pretendemos deixar claro que a perspectiva de Schopenhauer sobre a religião não é dúbia, o filósofo inegavelmente reconhece o valor da religião como metafísica para o povo, e esse seu posicionamento pode ser comprovado sobretudo pelo capítulo 17 dos Suplementos, em que curiosamente encontramos inúmeros trechos que coincidem com as falas de Demófeles. Nesse sentido, acreditamos que a posição schopenhaueriana vai ao encontro com aquilo que defende o personagem Demófeles, o qual reconhece a importância e os benefícios da religião para

a humanidade. Filaletes, ao contrário, obcecado pela ideia de que a verdade nua e crua deve ser transmitida ao povo a todo custo, menospreza o lado sensível do mundo e o fato do indivíduo ser um animal metafísico capaz de consolar-se praticamente tão-somente com a religião. Do nosso ponto de vista, Filaletes confunde ainda religião com uso da religião e, por conseguinte, ataca-a veementemente com base nas histórias de guerras religiosas e nas inumeráveis experiências de abusos cometidos, por séculos, pelo clero.

Dessa maneira, podemos interpretar aquela afirmação de Schopenhauer de que ele se esconde nos dois personagens, num primeiro momento, do seguinte modo: Filaletes representa o lado transcendental de sua filosofia e, assim, valoriza apenas a mais alta verdade; Demófeles, por sua vez, representa o lado da representação e então defende a religião como uma estrela-guia prática para os indivíduos. Num segundo momento, podemos dizer que Schopenhauer está por trás do personagem Filaletes, na medida em que o mesmo representa o lado crítico de Schopenhauer, o qual denuncia os abusos cometidos pelos religiosos, que sempre souberam explorar a necessidade metafísica dos seres humanos. O problema de Filaletes é que ele, em virtude de tais abusos, despreza absolutamente a religião – e isso é algo que, de acordo com a nossa perspectiva, Schopenhauer não faz. Por isso, consideramos que Filaletes não representa a opinião de Schopenhauer sobre a religião, quem a representa é Demófeles, este sim seria o alter ego do autor. Para comprovar a nossa interpretação, faremos, a seguir, uma análise mais detida do diálogo “Sobre a Religião”. Mas, de outro modo, também poderíamos pensar que Schopenhauer está por trás de Filaletes e Demófeles, assim como Platão está por trás de Sócrates e Trasímaco, ou seja, Platão é o autor do diálogo, por isso, obviamente, está em seus personagens; porém, não são todos os personagens que representam a sua opinião, mas tão-somente um.