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coisas, aos modos de aparecer das mesmas como fenômenos, esvazia a realidade empírica de todo conteúdo substancial e permanência; ou melhor, torna toda substancialidade e toda predicação, toda permanência e movimento apenas aparência e fenômeno, jamais essência e coisa em si mesma, uma vez que toda individuação depende inexoravelmente de espaço (localização) e tempo (sucessão), cuja ação conjunta constitui a relação de causalidade na qual está inexoravelmente contida toda matéria e movimento, do que resulta que o mundo fenomêncio constitui uma realidade objetiva, não meramente fantasmática - embora a realidade metafísica esteja encoberta pelo princípio de individuação, que atua como um véu de Maya.27

SEGUNDO ESTATUTO DE LINGUAGEM

Visto que Schopenhauer considera a religião um tipo de metafísica, logo, podemos inferir a sua capacidade de alcançar o que está para além da experiência, bem como considerar a sua linguagem um estatuto, o qual denominamos “segundo estatuto de linguagem”, para diferenciá-lo daquele primeiro. Schopenhauer, no entanto, não explana clara e especificamente acerca desse segundo estatuto; o que o autor deixa evidente, e o repete inúmeras vezes, é que se trata de uma linguagem, segundo a qual a verdade metafísica é comunicada por um veículo mítico. Então, o que faremos aqui é reunir algumas passagens das obras de Schopenhauer que nos apontem para as características mais detalhadas dessa linguagem alegórica. A nossa intenção é esclarecer de que modo a linguagem da religião alcança a essência íntima do mundo, e assim produz resultados coincidentes com a filosofia de Schopenhauer, como o próprio autor observa. E, para tal empreendimento, servir-nos-ão de fontes fundamentais os Suplementos 17 e 48, bem como o capítulo XV do segundo tomo de

Parerga und Paralipomena.

A primeira coisa que deve ser dita é que, quando Schopenhauer se refere aos sistemas religiosos como um tipo de metafísica, o autor não está considerando todas as religiões, mas apenas algumas delas. Não é relevante, para Schopenhauer, o fato das religiões serem monoteístas, politeístas, ateístas etc., mas sim se são pessimistas ou otimistas; e é unicamente nessa distinção que se situa, para ele, a diferença

fundamental entre as religiões (P II, cap.15, p.340; W II, cap.17, p.207). De acordo com o nosso autor, o cerne da doutrina cristã concentra-se na teoria do pecado original, segundo a qual perdemos o nosso estado original de natureza e, desde então, tornamo-nos pecadores e necessitamos de uma expiação, mediante a redenção, para recuperá-lo. Por esse motivo, o cristianismo apresenta-se como pessimista, na visão de Schopenhauer. Já o paganismo grego e o judaísmo, bem como o hebraísmo e o que Schopenhauer chama de “o seu filho autêntico”, o islamismo (P II, cap.15, p.340) – a pior de todas as religiões, na opinião do autor (W II, cap.48, p.722) – são consideradas otimistas. Schopenhauer distingue ainda o Antigo Testamento do Novo Testamento, alegando ser o primeiro otimista e o segundo, pessimista; e o fato de ambos serem diametralmente opostos faz parte do que Schopenhauer considera um dos absurdos típicos da religião. Para Schopenhauer, o Antigo Testamento tem origem no judaísmo, cujas características fundamentais são o realismo e o otimismo, condições do teísmo, o qual trata o mundo material como algo absolutamente real e um presente prazeroso (P II, cap.15, p.332). Schopenhauer, entretanto, abomina tal Testamento por considerá-lo incompatível com a experiência, ou seja, falso e mentiroso, e, por isso, pernicioso.

Por outro lado, o brahmanismo e o buddhismo apresentam o idealismo e o pessimismo como suas principais características, “já que reconhecem o mundo apenas como uma existência que se assemelha ao sonho e consideram a vida como uma consequência da nossa culpa” (Ibid.), afirma Schopenhauer, concluindo que a origem do Novo Testamento é indiana e que, para se conhecer melhor o cristianismo, é indispensável conhecer o brahmanismo e o buddhismo. Schopenhauer então admite que sua filosofia concorda com as religiões que ele considera pessimistas e verdadeiras: “apenas em minha filosofia é que a ética tem um fundamento seguro e é desenvolvida plenamente em concordância com as sublimes e profundas religiões, logo, com o brahmanismo, o buddhismo e o cristianismo, não meramente com o judaísmo e o islamismo” (W II, cap.50, p.767).28 Nosso autor, porém, não deixa de destacar qual, dentre todas as religiões, melhor reproduz alegoricamente aquilo que

28 Sobre esse ponto de concordância da filosofia de Schopenhauer com algumas religiões, Schmidt também observa o seguinte: “filosofia no sentido de Schopenhauer é o conhecimento realizado da essência do mundo para o quietivo da vontade. Na medida em que os mitos religiosos aproximam-se desse conhecimento, eles se tornam aceitos por Schopenhauer, no caso da doutrina indiana da transmigração da alma, até altamente estimada”. Cf. Schmidt, A. Die Wahrheit im Gewande der Lüge.

ele, por sua vez, exprime através de sua linguagem estrita: “se eu quisesse tomar os resultados da minha filosofia como critério de verdade, então teria de conceder ao buddhismo a proeminência sobre as demais religiões. Em todo caso, tenho de alegrar-me ao ver a minha doutrina em tão grande concordância com uma religião que é majoritária sobre a terra” (Id., cap.17, p.205).

Com base no Suplemento 17, já desenvolvemos aqui o fato da religião ser uma metafísica, que trata das coisas em si e comunica-nos a verdade alegoricamente. Vimos também que a religião é uma metafísica voltada especialmente para o povo, servindo-lhes de consolo metafísico. Mas é no Suplemento 48 que Schopenhauer explana, mais detalhadamente, sobre a importância da verdade metafísica ser transmitida ao povo visando fins práticos. O autor discorre sobre a dificuldade que as pessoas têm de compreender algo muito geral e abstrato, e ressalta que, infelizmente, sem tal compreensão, a verdade torna-se totalmente inútil. Eis então que a religião encontra uma grande saída, ela empresta a roupagem das fábulas, e assim torna as coisas compreensíveis:

a grande verdade fundamental contida no cristianismo, bem no brahmanismo e buddhismo (...) é sem comparação alguma a verdade mais importante que pode haver, mas que, ao mesmo tempo, é difícil de apreender em sua real profundidade, por ser completamente oposta à orientação natural do gênero humano; pois tudo o que pode ser pensado só de modo geral e abstrato é completamente inacessível à grande maioria dos humanos. Por isso, para a grande maioria, é preciso, em vista de trazer aquela grande verdade para o domínio da sua aplicação prática, em toda parte um VEÍCULO MÍTICO dela, algo assim como um receptáculo, sem o qual se perderia, volatizando-se. A verdade, por conseguinte, teve em toda parte de emprestar a roupagem da fábula e ainda sempre esforçar-se por ligar-se a um fato histórico já conhecido e já reverenciado. O que sensu proprio era e permanecia inacessível à grande massa de todos os tempos e lugares, com seu espírito vulgar, embotamento intelectual e geral brutalidade, teve de ser-lhe apresentado sensu

allegorico para efeitos práticos, em vista de ser a sua estrela guia. (Id., cap. 48,

p.748-749).

Que a religião alcança êxito em seu propósito de nos comunicar a verdade está fora de dúvidas, para Schopenhauer29. O que precisamos investigar agora é de que modo a linguagem alegórica pode ser considerada uma expressão do QUÊ, ou como ela o expressa. É através do Suplemento 48 que pretendemos trazer a primeira parte dessa resposta, a qual pode ser captada no momento em que Schopenhauer trabalha paralelamente os dois tipos de metafísica. O autor compara as doutrinas de fé a vasos sagrados: assim como os vasos, as linguagens das doutrinas de fé precisam ser trocadas com o tempo, caso estejam sujeitas à destruição, para que assim seu conteúdo possa ser conservado. Schopenhauer alerta-nos para o fato de que a verdade, desde milênios, vem sendo dita alegoricamente, embora em diferentes linguagens – de outro modo: já, há anos, o conteúdo (a verdade metafísica) vem sendo transportado de vaso em vaso (de linguagem em linguagem). Mas a filosofia, por sua vez, tem a tarefa de expor esse conteúdo, linguisticamente, de modo puro, senso estrito. Nas palavras do autor, a analogia dos vasos é dita da seguinte forma:

as doutrinas de fé... devem ser vistas como os vasos sagrados nos quais a grande verdade, conhecida e exprimida desde milênios, sim, talvez desde o começo do gênero humano, mas que em si mesma segue sendo uma doutrina esotérica para as massa da humanidade, foi feita acessível a esta segundo a medida das suas forças, conservada e propagada por séculos. Como, entretanto, tudo o que não é inteiramente composto do estofo indestrutível da pura verdade está à mercê da ruína; então, todas as vezes que um tal vaso sagrado, devido ao contato com um tempo que lhe é heterogêneo, está exposto à destruição, é preciso de algum modo salvar num outro vaso o conteúdo sagrado dele, para que assim este conteúdo seja conservado para a humanidade. Ora, como este é idêntico à estrita verdade, a filosofia tem a tarefa de expô-lo puro e sem mescla, em meros conceitos abstratos e sem aquele veículo, para o muito diminuto número dos que em todos os tempos são capazes de pensar. (W II, cap.48, p.749).

Em seguida, Schopenhauer compara os diferentes percursos realizados pela filosofia e pela religião, cujos fins são idênticos; e, enfim, nos revela de que modo o segundo tipo de metafísica fornece-nos um esclarecimento acerca daquilo que está

29 Nesse sentido, Staudt escreve: “a religião não é contrária à verdade, mas ela mesma expressa e ensina a verdade de forma alegórica e mítica”. Staudt, L. “Alegoria religiosa e a alegoria na filosofia de Schopenhauer”. In: Nietzsche – Schopenhauer: metafísica e significação moral do mundo. Fortaleza: Coleção Argentum nostrum, 2015; pp.227-248, p.238-239.

para além da experiência. A linguagem alegórica mostra o QUÊ é o mundo, como podemos conferir nas palavras do próprio autor:

a filosofia está para a religião como uma linha reta única está para várias linhas curvas que correm ao seu lado: pois a filosofia diz [spricht] sensu proprio, portanto, alcança diretamente o que a religião mostra [zeigt] sob velamentos e alcança só por desvios. (Ibid.; grifo nosso)30.

Esse ponto será melhor esclarecido quando estudarmos o papel da alegoria na filosofia de Schopenhauer (capítulo 3), mais especificamente, no momento em que abordarmos a função da alegoria na poesia. E então ficará mais claro por que a alegoria pode mostrar o QUÊ do COMO do mundo. De qualquer forma, essa comparação com os vasos apenas reforça a perspectiva schopenhaueriana de que o conteúdo da filosofia e o da religião é exatamente o mesmo. Aliás, numa anotação do capítulo XV do Parerga, Schopenhauer equipara os auditórios filosóficos às sinagogas, alegando que ambos, em substância, não são muito diferentes – tal sentença, porém, não aparece na edição de Lütkehaus (a última autorizada por Schopenhauer), mas aparece na edição de Hübscher (P II, cap.15, §177, p.443).

LINGUAGEM DAS ARTES

Ao lado das duas linguagens acima estudadas, a filosofia de Schopenhauer nos permite considerar ainda um outro tipo de linguagem, que também consiste numa expressão da essência do mundo: trata-se da linguagem da arte – o autor se refere à mesma, nos Manuscritos, como Kunstsprache (HN III, p.483; p.539). Nesse caso, não se trata, obviamente, de uma “língua”, porque as artes não expressam a essência do mundo mediante conceitos propriamente ditos, com exceção da poesia, porém, é uma “linguagem”, por ser um meio de expressão. Vejamos, pois, de que forma as artes nos mostram o QUÊ é o mundo.

De acordo com a filosofia de Schopenhauer, a vontade cósmica manifesta-se como objeto no mundo da representação em diferentes graus de objetivação, sendo seus graus mais baixos as forças naturais, e o mais alto, o ser humano. Na visão do

30 Na citação, trocamos “exprime” por “diz”, com o intuito de marcar, desde já, a diferença entre o dizer e o mostrar na filosofia de Schopenhauer, que Wittgenstein irá, depois, explorar.