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ALEGORIA EM TORNO DO BOM JESUS

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CAPÍTULO 3 – O BOM JESUS NO ALTAR: FESTAS E DEVOÇÕES EM

3.5. ALEGORIA EM TORNO DO BOM JESUS

Para Antônio Gramsci, o pensamento da classe dominante tornava-se com freqüência a filosofia dominante em determinado período histórico. Entretanto, Marc Ferro diz que a história passa a ser vigiada não somente por políticos e poderes institucionais como Igreja e Estado, mas também pela sociedade “que censura e autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que possa compreender a imagem que uma sociedade pretende dar de si mesma ”. 288 No entanto, para Bourdieu há uma relativização entre o sujeito

287 Idem, p. 20. 288

religioso e a estrutura social, o pensador retoma uma problemática de Jean-Paul Sartre, a “Crítica da razão dialética”. A partir daí Bourdieu trata do assunto que também foi abordado pelo sociólogo alemão Norbert Elias. Partindo do conceito de “habitus”, Bourdieu retoma a concepção escolástica de “habitus”, dando ênfase a um aprendizado passado. Esse conceito foi definido como sendo um “sistema das disposições socialmente constituídas que, como estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de gente ”.289

Segundo Goethe, a representação simbólica implica uma captação do todo no particular, isto é, uma coincidência entre o sujeito e o objeto, uma harmonia entre o homem e a natureza, um efeito de comunicação direto sem intermediários para decifrá-los. A alegoria, entretanto, é o seu oposto, pois não dispensa a exegese. A fixação do pensamento no objeto de forma adequada é inconcebível na alegoria benjaminiana. Esta “é precisamente a representação em que há distância entre significante e significado, entre o que está dito e o que se quis dizer”.290 Desse modo, o objeto alegórico em torno do Bom Jesus, seguindo essa linha de Goethe, é a apresentação/representação de múltiplos “outros”, mas, jamais do todo. A alegoria nos leva à diversidade e não a uma unidade do diverso.

A utilização da imagem religiosa como dispositivo discursivo e ideológico de propaganda, tinha objetivos políticos muito claros, que os próprios teóricos do poder simbólico não esconderam. A intenção era espalhar toda a carga emotiva e sensorial contida na imagem do Bom Jesus de modo a atingir o público como se fosse um receptáculo . As respostas emotivas dos fiéis significavam politicamente aceitação, contentamento e satisfação, ou seja, reagiam passivamente diante da imagem, e não criticamente. Assim, a imagem do

289 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 2005, p. 191. 290

Bom Jesus serviu como um espelhamento ampliado que iluminava a experiência imediata. Unificando o que estava disperso, a imagem do Senhor Bom Jesus exerceu uma forte influência ao contribuir para a exclusão e reflexão crítica do conhecimento. É nessa problematização dos meios que as imagens visuais em torno do santo iluminavam os textos religiosos e vice- versa. Tanto a imagem quanto o discurso ideológico se influenciavam reciprocamente.

A facilidade para se introduzir e a eficiência político-religiosa dessa instrumentalização em um campo cultural fértil preparado previamente pelo uso, costumes, tradição e adoração às imagens, símbolos, parábolas evangélicas, fala figurada que o catolicismo oficial impôs constantemente ao sujeito religioso, contribuíram para a reprodução mecânica e ampliação da visibilidade do Bom Jesus. Roberto Romano observou que , a “imagem religiosa aponta para intenções políticas, ainda que camufladas, e se desdobra em aplicações mais complexas em relação a um primeiro enunciado”. 291 A memória coletiva criada em torno da alegoria do corpo, no discurso político do ocidente, também foi aplicada exaustivamente pelo clero em torno da imagem religiosa ligada ao Bom Jesus. A comunidade foi associada nos discursos oficiais da Igreja-Matriz de Siqueira Campos a uma totalidade orgânica, una, indivisível e harmoniosa. Assim, também o Estado alinhou essa concepção ao adicionar órgãos de um corpo humano totalmente integrado. Desse modo, a alegoria em torno da imagem do Senhor Bom Jesus tornou-se necessária para a Igreja Católica, ou seja, um ideal de sociedade funcionando homogeneamente, sem conflitos.

O que nos chama a atenção aqui é a utilização alegórica do Corpo Místico do Bom Jesus, com o qual foi construída a sua imagem. Por meio da máquina de propaganda foi sendo

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alimentada a memória histórica em torno do santo. Dessa forma, a imagem foi a condutora mais eficiente dos novos dispositivos de dominação que o poder engendrava no espaço e no tempo. Por aparecer concatenada e organizada racionalmente, a imagem mantém um permanente conflito entre a figura e a razão. Para Romano, a “imagem religiosa ‘diz’ uma proposição que remete a situações mais complexas que um pretenso desejo direto de poder secular”. 292 A Igreja Católica, ao mesmo tempo em que se apropriou do poder simbólico e espiritual em torno do Bom Jesus, não deixou de interferir e se aprofundar na racionalidade e no progresso científico. Para o historiador Alcir Lenharo, desde a chegada dos Jesuítas essa iniciativa foi colocada em prática, principalmente nos meios estranhos à fé católica. Foi com os Jesuítas que a Igreja se aproximou das idéias ligadas ao Estado, isto é, progresso, ciência, indústria, comércio e democracia.293 A image m pública do Bom Jesus atende, dessa forma, a finalidades religiosas, disso não há dúvida, por outro lado, atende também a objetivos políticos. Na festa, no santuário e na praça em frente à Igreja- Matriz de Siqueira Campos, a imagem atende a um propósito especial, pois é a própria identidade coletiva da comunidade.

O homem, Senhor Bom Jesus da Cana Verde, é apresentado por meio da alegoria religiosa do cristianismo em pé, com uma coroa de espinhos e uma cana verde nas mãos amarradas. Em seguida “Arrancaram- lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate. Depois, trançaram uma coroa de espinhos, meteram- lha na cabeça e puseram na mão uma vara. Dobrando os joelhos diante dele, diziam com escárnio: Salve: rei dos Judeus!”. 294 Valores do passado esquecido, a alegoria em torno do Bom Jesus é a marca da história vista como paixão do universo. As alegorias “correspondem, no reino das idéias, ao que as ruínas

292 Idem Ibidem, p. 42.

293 LENHARO, Alcir. Op. cit, p. 169. 294

são no reino das coisas”.295 Assim, o mundo concreto aparece desvalorizado por meio da alegoria que, manifesta uma atitude com duplo valor e sentido opostos a uma mesma realidade. Desse modo, o homem barroco se apresentou diante do espaço com uma ambivalência psicológica expressa nas tragédias seiscentistas. Num sublime contraste, o Homem-Deus, estando embora no auge da humilhação, não deixa de patentear sua majestade. No documentário apresentado por frei Gabrielângelo Caramore, na cidade de Siqueira Campos, durante a festa do dia 6 de agosto de 1967, o pároco dizia que “Bem sabem os devotos do Senhor Bom Jesus da Cana Verde que esse Deus abençoa e cuida tão bem desse povo”.296

Dizia o pároco que foi com fé e humildade que o Bom Jesus foi tão carinhoso e bondoso quando andava pela região da Palestina e, mesmo assim, continua tão bondoso para esses seus fiéis que vêm vê-lo na sua triste e humilde imagem. A bendita imagem do santo estava no meio do povo luso-cristão de Siqueira Campos, era um sinal de benção sobre estas terras e sobre seus rebanhos. Todos os fiéis do Bom Jesus quando olha vam para a sua imagem sentiam seu coração tomado de tanta dor e sofrimento de um ser divino tão sofrido e humilhado. Para Gabrielângelo, o Bom Jesus representava o Jesus que foi premiado com uma coroa de espinhos, com seu rosto todo machucado, esgotado, ensangüentado do mesmo modo quando foi apresentado a Pôncio Pilatos. 297

Desse modo, a Igreja oficial foi construindo uma memória histórica por meio da alegoria em torno do Bom Jesus. A imagem do santo também foi instrumentalizada para dar sentido à fundação do município. Gabrielângelo narra a chegada dos “primeiros” homens a

295 MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro. Tempo

Universitário; 1969, p. 104.

296 Cf. Documentário apresentado por frei Gabrielângelo Caramore, Siqueira Campos, 1967. 297

pisarem nas terras do Norte Pioneiro, assim como o progresso de Siqueira Campos, por meio do documentário que o vigário apresentou durante a festa religiosa em louvor ao santo. Dizia Gabrielângelo em 1967 que, a família dos Carvalho e dos Senes foram os pioneiros que abriram as primeiras picadas na mata do norte paranaense. Porém já se passaram 100 anos. Para o frei, o município de Siqueira Campos possuía uma população dentro de seu perímetro urbano de oito mil habitantes. E o município vinha apresentando excelentes progressos e desenvolvimentos econômicos, políticos, sociais e religiosos. No alto da cidade a visão se encantava com o edifício “Educandário São Francisco”, o Colégio das Irmã s dos vigários capuchinhos. No centro da cidade era o prédio da Igreja-Matriz que se destacava .298

Segundo frei Gabrielângelo, no início do século, mais precisamente no ano de 1901, a cidade de Siqueira Campos, ainda era uma capela que estava submetida à paróquia da cidade de Tomazina, pertencente ao Bispado de Curitiba. Somente no dia 22 de dezembro é que foi inaugurada a atual Igreja-Matriz, que no ano de 1933 foi a primeira Igreja a ser consagrada em todo o Norte Pioneiro do Paraná. Ao lado da Igreja-Matriz estava sendo edificado o prédio da Imaculada Conceição, que viria a ser a sede das Irmandades e da emissora de rádio Bom Jesus. Estando em fase de acabamento o grandioso Santuário que viria abrigar a imagem do Senhor Bom Jesus da Cana Verde. Estava sendo cumprindo um antigo desejo do Bispo Diocesano de Jacarezinho, Dom Fernando Taddei, que doou a imagem do Bom Jesus para a cidade de Siqueira Campos. Era vontade de todo o povo siqueirense e de todos os romeiros do norte paranaense. 299

Vê-se como o discurso religioso muda de sentido, elástico e com tonalidades diferentes. O Senhor Bom Jesus da Cana Verde que vela pelo povo siqueirense passa a ser o

298 Idem. 299

santo que também deu sentido ao lugar, isto é, ordem, progresso, desenvolvimento e novas relações de trabalho no espaço e no tempo. A imagem do Bom Jesus foi utilizada como instrumento alegórico para que a Igreja pudesse intervir nas relações sociais do cotidiano da população da cidade e da região. O discurso do vigário Gabrielângelo e do Bispo Dom Geraldo de Proença Sigaud ampliavam significativamente a atividade eclesiástica projetando a imagem do Bom Jesus pelo social da população local. 300

Desde o início da colonização ibérica, as imagens foram sendo utilizadas como mediação entre o fiel e a divindade. O uso da alegoria estava subordinado a outros fins: religiosos, políticos e morais. Um domínio do abstrato sobre o concreto. A missão de alegoria era humilhar a realidade terrena em oposição à ultramundana ou celeste. Assim, a alegoria, para Alfredo Bosi, exerceu um poder individual de convencimento que, segundo o autor, era perigoso por ser uma simples imagem, mas, entretanto, tinha a função de uniformizar e aculturar o sujeito religioso em sua ação. Desse modo, podemos compreender a sua utilização desde a che gada das primeiras caravelas em terras tupiniquins. Utilizada na Contra-Reforma, que uniu as pontas do último Medievo e do primeiro Barroco, a imagem do Senhor Bom Jesus da Cana Verde possuía uma força alegórica que não se movia em direção das pessoas, enq uanto sujeitos ativos de uma construção de saberes, pois, ela se moveu de um ponto aonde o poder era ao mesmo tempo distante e onipresente. Os expectadores desconhecidos e passivos recebiam a imagem do santo não como um símbolo a ser contextualizado, refle tido, interpretado e pensado, mas, sim, como a imagem que era a própria origem de seu sentido.

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Quando Pio XI consagrou Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil, no ano de 1930, isso teve uma enorme conotação social. Uma imagem representando uma mulher virgem, negra e pobre, segundo Beozzo, exercia um enorme carisma popular. Por representar uma condição social popular, porém sem ter qualquer tipo de identificação com qualquer classe social, a colocou como personalidade nacional de padroeira do Brasil. Cf. BEOZZO, José Oscar. “A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a Redemocratização”. Em: FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira , 11. São Paulo, Difel, 1984, p. 294-6.

Dessa forma, a alegoria em torno do santo foi instrumentalizada pela arte que tinha como objetivo atingir as massas, criada pelos pensadores orgânicos do fenômeno da aculturação. 301 Assim, a imagem do Bom Jesus foi apresentada publicamente como forma de representação concentrada na fixação enigmática do destino, restando ao sujeito religioso curvar-se humildemente, aceitando, portanto, um destino já dado etername nte. A fantasia em torno do santo tornou-se composta e dilatada. A simbologia tornou a imagem do Bom Jesus anônima e misteriosa, isto é, um enigma, pois, o sentido das formas na arte popular descrita por Bosi em torno do Bom Jesus, na devoção popular luso-brasileira nos diz que o Bom Jesus é e não é um ser humano como todos nós. Existe um corte severo no talhe do Bom Jesus de Iguape, Bom Jesus de Pirapora e Bom Jesus da Cana Verde que mantém suas personalidades francas e rigorosas. Esse poder simbólico semelhante a um Deus, as paixões marcaram as feições do Ecce Homo. “Braços caídos, mãos atadas, cabeça ferida de espinhos, as cinco chagas, olhos fundos: a criatura entregue a fúria do destino. O cetro, entre nós a Cana Verde, é a senha da realeza degradada em irrisão”. 302

A reprodução do mesmo tinha uma função social, a necessidade interna de percepção local. A humanidade caracterizada na imagem do Bom Jesus que perdoa porque é divino, e sofre por ser humano. Desse modo, a alegoria em torno do Senhor Bom Jesus da Cana Verde foi um eterno retorno do mesmo, “à mão que o esculpe e ao crente que vai depois fitá-lo e venerá-lo. As variações de material [...] refletem diferenças de época e de meios técnicos, mas em nada alteram a imagem, que se refaz em nome da sua identidade religiosa”. 303 É a imagem do santo quem exigiu reafirmação no primeiro instante.

301 Cf. BOSI, Alfredo. A dialética da colonização . São Paulo: Companhia das Letras; 1992, p. 81. 302 Idem Ibidem, p. 54.

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A construção da alegoria em torno do Bom Jesus, por meio do convencimento do devoto, fez com que a Igreja-Matriz de Siqueira Campos utilizasse suas imagens e recursos simbólicos como mensagem ao sujeito religioso.304 Segundo frei Gabrielângelo, as imagens serviram para tocar o coração e o cérebro dos fieis do Bom Jesus.305 Para o vigário Antônio Carlos da Silva, da Basílica de Tremembé, interior de São Paulo, a imagem do Bom Jesus infunde na alma serenidade e convidam a uma ilimitada confiança na bondade infinita de Deus. Foi essa comovedora paixão que fez com que os fiéis adorassem a imagem do santo. Aos pés do Senhor Bom Jesus da Cana Verde, segundo Gabrielângelo desfilavam todos os anos multidões de peregrinos. Devotos angustiados e carentes de bens espirituais imploravam graças para buscar antes de tudo o Reino de Deus e sua justiça. Pobres, doentes e miseráveis em busca de ajuda. Enfim, fiéis em quantidade agradecendo os benefícios recebidos. 306 Para o pároco Antônio Carlos da Silva, A todos o Bom Jesus acolhe com amor. “A cada um Ele diz uma palavra de paternal afeto, que infunde na alma serenidade e confiança na sua bondade sem par. Não é outro o motivo pelo qual os fiéis acorrem aos milhares à sua Basílica”. 307

Desse modo, o poder oficial do catolicismo através da imagem do Bom Jesus, construiu um discurso ideológico acerca do santo que serviu para preencher o “vazio” espiritual do devoto. A instituição católica, por meio de uma metafísica agostiniano-platônica e aristotélico-tomista, fez da vida do sujeito religioso uma “muleta existencial”. E para completar esse “vazio” existencial do fiel foi necessário criar um mito para que fosse possível

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Antes da Proclamação da República no país, a disputa simbólica em torno de imagens adquiriu importância central, pois, o convencimento só poderia se dar através do “coração e pela cabeça dos cidadãos, por meio da batalha dos símbolos”. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2002, p. 140. Ver também do mesmo autor Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

305 Frei Gabrielângelo Caramore, documentário (1967). 306 Idem Ibidem.

307

responder à falta de sentido. Após a “expropriação ” da imagem do Bom Jesus, a Igreja-Matriz de Siqueira Campos procurou descentralizar a ação do sujeito religioso, pois, agora, toda a valorização do ser religioso passava pela burocratização do poder simbólico da Igreja-Matriz de Siqueira Campos.

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