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A DELIMITAÇÃO DO CATOLICISMO POPULAR

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CAPÍTULO 2 – O NORTE PIONEIRO PARA ALÉM DO ESPAÇO

2.3. A DELIMITAÇÃO DO CATOLICISMO POPULAR

É difícil delimitar o domínio do catolicismo popular já que o problema é antigo, seja entre religião oficial e a popular, seja como tema de pesquisas entre cientistas sociais e teólogos. Entre a oposição religião oficial e popular, temos os exemplos ocorridos na Idade Média e na Reforma Religiosa e que permanecem até os dias hodiernos, tais como os estudos de Vittorio Lanternari, A religião dos oprimidos; Eric Hobsbawm, Rebeldes primitivos; Blackham, A religião numa sociedade moderna; Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes e Os

andarilhos do Bem etc. As tentativas de conciliação entre o popular e o religioso, numa forma

de hibridismo cultural, não são recentes, pois, Lamennais foi condenado pelo Papa Gregório XVI, no ano de 1832, por pregar uma aliança entre povo-altar, em contraposição à aliança altar-trono. Lamennais, assim, provocou uma reação no mundo institucional religioso. Segundo Pedro Córdoba Montoya , a idéia de mentalidade não pode ser aceita, pois, há indefinição no conceito de povo, e nem pode existir o que se chama de religiosidade popular. O autor considera redundância afirmar que religiosidade popular é a religiosidade do povo, já que esse “povo” foi criado à época da Revolução Francesa. 137

Em seu artigo, Waldo César nos apresentou a oposição que há entre catolicismo oficial e catolicismo popular, entre catolicismo rural e catolicismo urbano, entre o sagrado e o profano. Para esse autor, essa oposição só pode ser compreendida numa dinâmica a partir de uma análise dialética, já que as manifestações da estrutura e das funções do popular na sociedade global do mundo cultural são amplas e complexas.138 Defende Waldo César que:

137

MONTOYA, Pedro Córdoba. Religiosidade popular: Arqueologia de uma Noción Polêmica. IN: SANTAJÓ, C. Álvares e Outros. La Religiosidade Popular. Antropologia e História. Barcelona: Antrhopos; 1989, p. 70-81.

138 “As classes cultas, afinal, a partir de sua posição privilegiada, também monopolizam a produção e o consumo

dos bens culturais, sobretudo através dos meios de comunicação de massa”. CÉSAR, Waldo. “O que é popular no catolicismo popular”. Em: Revista Eclesiástica Brasileira , vol. 36, Rio de Janeiro, Vozes; 1976, p. 07.

“Tentando dar respostas ao que se denomina de ‘mentalidade popular’, Marcel Mauss o fez através da análise da oposição popular e oficial”.139 Desse modo, temos duas palavras, povo e popular, que estão ligadas aos termos tradição e folclore, e são carregadas de contradições e significações adversas. No folclore temos a sabedoria do povo, o povo como sujeito do conhecimento, isto é, as crenças coletivas sem a presença de doutrina s, práticas e teorias. A

tradição estaria ligada às doutrinas e teorias de uma instituição. O tradicional não se identifica

com o popular, e vice-versa.140 Entretanto, para Thales de Azevedo, a tipologia do catolicismo popular no Brasil não está restrita às camadas subalternas e inferiores da população, pois, o catolicismo popular se expande dos estratos inferiores para os superiores, como religião de uma comunidade estruturalmente arcaica e descontínua. Foi Thales de Azevedo quem propôs uma tipologia do catolicismo a partir do grau de ortodoxia e desenvolveu a noção de privatização, assinalando a importância dos santos.141

Carlos Rodrigues Brandão fala em trocas sociais efetuadas entre os agentes religiosos e as práticas políticas dos sujeitos subalternos, e é dessas modalidades dos sistemas de crenças e tradições, defende o autor, que resultam nas situações de vida e cultura dos camponeses e operários. “Os subalternos não se apropriam ativamente de modos eruditos e impostos de crença e práticas religiosas, como também criam, por sua conta e risco, os seus próprios modos sociais de produção do sagrado...”142 Para Brandão, o processo de transformação dos aparelhos ideológicos ligados à Igreja oficial é fundamentalmente político, também o são as

139

Idem Ibidem, p. 10.

140

Idem, 08.

141 Cf. AZEVEDO, Thales de. “Problemas metodológicos da sociologia do catolicismo”. Em: Cultura e situação

racial no Brasil . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

142 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre religião popular. São Paulo: Brasiliense;

regras de trocas entre o culto oficial, as seitas e surtos confessionais.143 O catolicismo popular dos caipiras, à margem do poder político, religioso e econômico fez com que toda uma complexa ordem social de trabalho, trocas e consumo de bens simbólicos, dispensasse a Igreja. O catolicismo desenvolvido no Patrimônio dos Murzilhos não fugiu à regra. Dessa forma, o autor diz que a Igreja oficial sempre esteve ao lado do poder político rural e da burguesia econômica, e “prestou serviços às classes subalternas, inclusive os de controle e domesticação”. 144

Para Rubem César Fernandes, a Igreja católica desde sua gênese tratou de dominar os rituais e cultos cristãos em poder dos leigos. O poder local passou para as mãos do padre e “na maior parte estes eram estrangeiros e vinham orie ntados por uma concepção sacramental (‘tridentina’) da vida religiosa”.145 Desse modo, a hierarquia da Igreja estava alheia ao catolicismo popular do sertão brasileiro, uma imposição de cima para baixo e de fora para dentro. Segundo Luis Roberto Benedetti, o catolicismo deve ser discutido a nível político e religioso, pois, o Deus estabelecido está ligado à Igreja oficial de Roma, um Deus estabelecido no poder político, econômico e religioso, versus um santo nômade ligado ao catolicismo popular, um santo marginalizado no mundo rural fora do poder político, econômico e religioso. Para o autor, “os santos nômades são os santos da devoção popular, próprio de sitiantes [...] que praticam uma economia de subsistência [...] o Deus estabelecido é o do padre, que acompanha o senhor de terras”.146 Assim, o Deus estabelecido vai se impondo sobre os santos nômades com a utilização da força e da violência. Benedetti diz que: “como o

143

Idem Ibidem, p. 86-7.

144 Idem, p. 102.

145 FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução às religiões populares. São Paulo:

Brasiliense; 1982, p. 64.

146

beneficiário de Sesmarias, senhor dos engenhos de açúcar e das fazendas de café, controlará (expropriará) os pequenos sitiantes que até então viviam de roças ”. 147

Maria Isaura Pereira de Queiroz chama a atenção para o que disse Roger Bastide, segundo M. I. P. de Queiroz, a estrutura relativamente simples do catolicismo das zonas de monocultura dificultava-se com a complexidade do quadro econômico.148 Ainda segundo a autora, qualquer tipologia que se adote para o catolicismo popular, sem a definição dos grupos sociais que praticam os cultos, podemos fazer o que Max Weber já havia dito: um “mero jogo intelectual”. A autora faz uma excelente apresentação do catolicismo praticado nas zonas rurais.149 Portanto, essa oposição rural/urbano, não pode ficar limitada a uma dicotomia de habitação e lugar de determinadas condições físicas comuns à classe popular, em oposição à categoria sócio-profissional, pois é imprescindível a compreensão dos meios rurais e urbanos numa perspectiva mais ampla.

Assim, Maria Cecília França vê o surgimento das religiões universais, como o cristianismo, coincidindo com o desenvolvimento das grandes metrópoles, esse fato estabeleceu um novo status de referência nas relações religiosas, econômicas, políticas e sociais. Entretanto, a mulher e o homem do campo resistem à imposição da nova fé religiosa baseada nas doutrinas e teorias do poder estabelecido. A geografia religiosa mostrou uma série de fenômenos em que o meio religioso e social se entrelaçam e dependem um do outro em momentos extremamente complexos, como no caso do crescimento das cidades e a sua

147

Idem Ibidem.

148 Ver Maria Isaura Pereira de Queiroz, Os catolicismos Brasileiros, in Cadernos do Centro de Estudos Rurais e

Urbanos. São Paulo, n. 04, 1971, p. 161.

149 Cf. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Catolicismo rústico no Brasil. Em: Revista do Instituto de Estudos

atração, o fenômeno de urbanização e a conseqüente aculturação imposta sobre a população rural. 150

Portanto, a monocultura favorece o surgimento de um catolicismo popular e simples, assim como a existência de uma religiosidade mais homogênea em função de sua localização no espaço e do modo de produção dominante (como a pecuária e a agricultura de subsistência no período do Brasil Colônia e início do Império) com uma estrutura social simples e instável. No entanto, as relações entre o mundo rural e urbano fizeram com que viesse a oco rrer uma configuração e reconfiguração do campo religioso e cultural no espaço e no tempo, que sob a influência da máquina de propaganda e dos meios de comunicação de massa, introduziram novos elementos nessa estrutura social, religiosa e do modo de produção.

Por outro lado, certos elementos do mundo rural persistem e não se perdem no meio urbano, institucional e oficial. Mesmo com o deslocamento do poder religioso, político e social para o centro urbano com o advento da burocratização do poder simbólico ligado a Igreja oficial, e dos sistemas de administração e de controle social por parte do Estado, com sérias conseqüências para a coesão das camadas “inferiores ” economicamente, ainda há uma solidariedade típica do meio rural.

A organização e o aparelho do poder da religião institucional têm uma função política que vai ao encontro da natureza espontânea e simples dos grupos religiosos populares. Sua atuação contra o catolicismo popular sempre se caracterizou, como na Contra-Reforma, atuando com a finalidade de se reduzir as opiniões e posições anárquicas de uma comunidade religiosa não-autorizada. Na história do Ocidente, a Igreja Católica e o Rei medieval não puderam estabilizar os camponeses, pois, o sujeito antes necessitava crer que ambos serviam

150 Ver o artigo de Maria Cecília FRANÇA, Algumas considerações em torno da geografia religiosa, in Cadernos

aos seus interesses e objetivos, uma ordem vinda do céu.151 No tocante ao religioso, não são valorizados somente os santos canonizados (oficiais), mas também se veneram os santos locais e familiares.152 Esse tipo de acordo, entre a religiosidade popular e seus sa ntos, é a demarcação final na transição, pois apenas um deles será eleito o padroeiro de preferência da comunidade local.

Para Michel de Certeau, a religiosidade popular seria uma forma de manifestação e persistência no espaço e no tempo num co ntexto de secularização, em outras palavras, a religiosidade popular seria uma disputa contra a secularização não menos profunda e fundamental no contexto da sociedade tecnicista. 153 No tocante à linguagem popular, ela é de extrema importância para o sujeito religioso, pois, a linguagem erudita está restrita aos “donos do poder simbólico”, enquanto que no mundo popular há uma liberdade de se passar da linguagem para a ação e a dança, integrando-os num mesmo universo para as respostas religiosas e espirituais, assim como materiais e sócio -econômicas. O catolicismo popular reinterpreta, desse modo, as doutrinas da Igreja oficial. Dessa maneira, o catolicismo popular é um símbolo de resistência e de rompimento com o oficial, pois é um elemento que tem uma função política e social. As expressões religiosas sem a presença e intervenção do vigário, do Bispo e do Papa, por exemplo, faz com que esses fenômenos religiosos “marginais” sejam interrompidos com as classes superiores detentoras do poder simbólico. Durante a Revolução

151

CÉSAR, Waldo. Popular e oficial – um enfoque político. In: Revista Eclesiástica Brasileira (1976) p. 12. Como diria Karl Marx, no tocante ao proletariado: “sem ele a filosofia não sai de si mesma; e é no proletariado que ela encontra suas armas materiais, assim como na filosofia estão as armas espirituais do proletariado”. MARX, Karl. A questão judaica . Rio de Janeiro: Laemmert; 1969, p. 126-7.

152 OLIVEIRA, Pedro A. R. de. “Catolicismo popular como base religiosa”, Suplemento do CEI, n. 12, Rio de

Janeiro, setembro de 1975, p. 04.

153 Cf. CERTEAU, Michel de. “Cultura popular e religiosidade popular”, in Cadernos do CEAS, n. 40, 1975, p.

Puritana na Inglaterra, esse fato demonstrou ser uma possibilidade utópica de transformação do sistema, da sociedade e do mundo.

No Brasil, o fenômeno da migração e da religião popular, se vistos sob dois pontos que se comple mentam, pode ter a mesma função, pois: o primeiro é independente do Estado, e o segundo da Igreja; por outro lado, ambos nos dizem respeito às formas políticas, econômicas, sociais e religiosas que foram perdidas com a secularização das estruturas dominantes. Isso nos faz lembrar Harvey Cox, “Quando Deus retornar teremos que ir ao seu encontro primeiro bailando, antes de poder defini- lo na doutrina ”. 154

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