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O BOM JESUS E A CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA

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CAPÍTULO 3 – O BOM JESUS NO ALTAR: FESTAS E DEVOÇÕES EM

3.4. O BOM JESUS E A CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA

Sobre a memória, Maurice Halbwachs enfatizou a energia dos diversos ângulos de referência que formam nossa memória e que são introduzidos na memória da coletividade à qual estamos inseridos.283 Para o pensador, os monumentos são os espaços e os lugares da memória que, segundo Pierre Nora, são os patrimônios arquitetônicos com seu estilo que está relacionado a nossa própria vida cotidiana. Também o são as imagens, datas comemorativas, personagens históricos, tradições, usos e costume s. O indicador empírico, assim estruturado pela memória da coletividade de um determinado grupo hierárquico, passa a definir o que é

281 Cf. Cânon 1231, Código de Direito Canônico, p.305. 282 Cf. Cânon 1232 § 2, Código de Direito Canônico, p. 306. 283

regra e norma para a sociedade e, dessa forma, os diferencia dos outros grupos pela força de sentimento e pertença a uma sociedade com fronteiras sócio-culturais demarcadas.284

Para Émile Durkheim, a ênfase está na instituição da memória co letiva, por meio da duração, da continuidade e da estabilidade. Halbwachs não considera essa memória histórica uma imposição, ou forma de dominação e violência simbólica. Para ele, as funções desenvolvidas pela memória comum é uma forma de coesão social, não pela força e coerção, mas, sim, pela afetividade ao grupo. Daí o termo utilizado pelo autor “comunidade afetiva”. Na tradição européia do século XIX a nação é a terminologia de um grupo, e a memória nacional uma memória coletiva. Entretanto , essa memória está em constante conflito. A inversão de perspectiva que marcou os trabalhos atuais sobre o tema desmontou esses fatos sociais da memória coletiva dotada e acabada, com duração e estabilidade. Com a análise dos fatos que marcaram as sociedades das populações que foram excluídas e marginalizadas, a história oral marcou a relevância das memórias que ficaram nos subterrâneos da sociedade. E, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, faz oposição à memória oficial e institucional. Acentua o caráter destruidor e deformador da memória nacional. Ocorre assim uma disputa, pois os objetos escolhidos que apresentam conflitos coloca em disputa a memória.

As batalhas da memória vêm assumindo amplitude nos últimos tempos. A reescrita da história aparece no momento em que ocorre a desestalinização. Os crimes praticados pelo Partido Comunista soviético e por Stálin causaram a progressiva destruição dos símbolos e signos da história que lembram a União Soviética comunista. Quando isso ocorre, aparecem as reivindicações. A respeito da doutrina ideológica da Igreja Católica, as lembranças confinadas

284 Cf. POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento, silêncio”. Em: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.

ao silêncio e que são transmitidas de geração em geração pela história oral, e não por meio de documentos oficiais, permanecem vivas no espaço e no tempo. A longa duração sobre o silêncio do passado, ao invés de conduzir uma população ao esquecimento, torna-se a própria resistência da sociedade. Essas memórias aparecem às vezes relacionadas a fenômenos de dominação e luta de classes, entre a memória oficial e a memória subterrânea dos marginalizados. Por outro lado, pode os sobreviventes, no caso dos campos de concentração nazistas, após serem libertados e retornarem a seus países de origem, seu silêncio sobre o passado ser uma maneira necessária para não causar um sentimento de culpa na maioria. O silêncio também pode ser uma maneira de a maioria não culpar as vítimas. Portanto, a memória é bastante complexa. Também há a tentativa por parte dos pais de querer evitar que seus filhos cresçam na lembrança das feridas dos mesmos. Porém, no momento em que se aproxima a morte, o silêncio é rompido entre os familiares. O problema da história oficial é, portanto, a sua credibilidade.

Assim, foi preciso analisar a função da criação da memória histórica em torno do Bom Jesus. Pois, a memória sendo uma operação coletiva dos fatos e das leituras que quer salvaguardar, se integra, em tentativas conscientes de definir e reforçar sentimentos de pertencimento a um grupo e fronteiras da coletividade. Portanto, a referência ao passado do Bom Jesus e da cidade de Siqueira Campos serviram para manter a coesão do grupo e da própria instituição religiosa. Nesse ínterim, a construção da memória histórica serviu para que a Igreja-Matriz oficializasse a posse da imagem do Bom Jesus. Todavia, não há como construir uma memória histórica por meio de arbitrariedades, pois deve haver no espaço e no tempo a satisfação das exigências de determinados grupos e justificá-los. Recusar isso é justificar o reino das arbitrariedades e da violência. Desse modo, a matéria-prima para que

possa ocorrer um enquadramento da memória é fornecida pela história. O que prevalece nessa disputa é a própria identidade individual e grupal do sujeito histórico.

A memória em torno do Bom Jesus foi abordada por meio de uma pesquisa histórica relacionada à memória social. Esse processo social possibilitou à sociedade do município de Siqueira Campos renovar e reformular a compreensão do passado e inseri- lo na sua identidade do presente. A memória social no espaço e no tempo compreendeu a memória simbólica, a memória oficial, a memória genealógica, a tradição oral e outras formas de reprodução cultural ao redor dessa imagem. Assim, o clero local atuou como especialista da memória. As festas e comemorações em louvor ao Bom Jesus, a consagração da missa, a comemoração litúrgica ao redor dessa imagem impôs de fato a memorização de uma história imaginária mantenedora da ordem e da tradição. As doações feitas pelos fiéis do Bom Jesus serviram para o estabelecimento, garantia e elo após a morte. Essa memória surgiu num contexto social e não foi passiva, mas ativa. Corrigindo, selecionando, interpretando e reinterpretando o passado em função das necessidades do presente.

Desse modo, o filme sobre a história do Bom Jesus e o doc umentário acerca da festa do santo foi apresentado em 1967. Instrumentos que serviram para os rearranjos da memória histórica. Esses instrumentos desempenharam um papel relevante na mudança de conduta do sujeito religioso no tempo e no espaço em que foram exibidos e nos períodos subseqüentes. A construção da memória histórica em torno do Bom Jesus nos revelou que , os meios de comunicação do município de Siqueira Campos foram imprescindíveis para a realização desse fenômeno. Isso caracterizou um poder simbólico centralizador e um controle espiritual por parte da Igreja Católica. Essa ideologia começou a ser vendida a partir do momento da “doação” da imagem do Bom Jesus à Igreja-Matriz. Desse modo, a propaganda em torno da

memória histórica do santo foi difund ida também por meio de livrinhos distribuídos pela Paróquia do Divino Espírito Santo, pela emissora de rádio Bom Jesus, nas celebrações das missas e no discurso ideológico acerca da “verdadeira” história do Senhor Bom Jesus da Cana Verde.

Essa memória foi constantemente difundida no imaginário coletivo da sociedade de Siqueira Campos. O meio de comunicação simultaneamente relacionado ao Bom Jesus apresentou ser um fator de elevado grau de controle clerical sobre os devotos do santo. A imagem do Bom Jesus estava, assim, em constante revisão. Foi apagado da memória coletiva o conflito que ocorreu em torno da imagem do Bom Jesus. A venda da imagem como um pacote, a venda do santo como ideologia, propaganda e manipulação da religiosidade popular. Dessa maneira, o que importa é precisamente a realidade do santo e seus efeitos sobre o universo externo aos meios de propaganda. O historiador Peter Burke explicou o funcionamento da máquina de propaganda de Luís XIV, e mostrou como a criação da imagem real iluminou a relação entre arte e poder. A mecânica de fabricação da imagem do rei ficou implícita na construção do símbolo, o aperfeiçoamento e a manipulação da imprensa em pleno século XVII por meio dos canais de comunicação oral, visual e escrito, seus códigos literários e artísticos, além do público-alvo e sua reação a tal massacre publicitário. 285

Para Peter Burke, há relação com o movimento e o sentido de espetáculo por meio do conceito de “teatro” de Luís XIV. 286 “Outro termo relacionado com o teatro tem também sua utilidade para este estudo: ‘representação’. Um de seus principais significados era ‘desempenhado’. [...] Imagem que nos traz de volta à idéia e à memória os objetos

285 Cf. BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1994.

286

ausentes”.287 No entanto, a representação feita pela Igreja em torno da imagem pública do Bom Jesus significou, também, a to mada do lugar de alguém. Foi preciso apagar da memória os personagens e a história que ocorreu lá no Patrimônio dos Murzilhos, naquele conflito de 1933. É preciso deixar registrado que as expressões representação e imaginário coletivo em torno do Bom Jesus não tem o sentido pleno de que todos teriam uma imagem idêntica do santo. Assim, é preciso ver a imagem em seu contexto, como uma criação coletiva e como resposta à demanda, mesmo não tendo o devoto plena consciência do que desejava. Pois, a fabricação da memória coletiva em torno do Bom Jesus reforçou ainda mais o poder da Igreja- Matriz, por serem parcialmente inconscientes. Na medida em que os funcionários burocráticos do poder simbólico tinham consciência de que o método para manipular as pessoas era por meio da alegoria em torno do Bom Jesus, utilizaram- na concomitantemente com o discurso e a retórica da instituição católica.

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