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ALEPO, GUERRA CIVIL NA SÍRIA

No documento Arquitetura de emergência (páginas 66-75)

Há cerca de cinco anos que acompanhamos diariamente um dos maiores conflitos armados dos últimos anos. A guerra civil da Síria. Há já um tempo que existia a revolta por parte de diversas populações de países do médio oriente contra os seus líderes e governos. A falta de emprego, a crise económica, e a falta de democracia retirava-lhes as condições mínimas para poderem viver. Contra estes factos e procurando lutar pela mudança, foram efetuadas diversas revoluções e protestos de civis contra os regimes dos seus países. Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Iémen e Bahrein, foram alguns dos países envolvidos nesta onda de manifestos, denominada Primavera Árabe.

Em março de 2011, na Síria, depois de alguns protestos contra o regime de Bashar al-Assad, aconteceu uma revolta armada, onde civis pegavam em armas para se defenderem e lutarem pela democracia, e por outro lado o regime lutava contra rebeldes que se manifestavam contra o governo. Rapidamente esta revolta se intensificou, os tumultos começaram a tomar as cidades, primeira Damasco e por fim Alepo em 2012. Entretanto o autoproclamado Estado Islâmico tirou partido destes conflitos, para atuar e criar o seu espaço, tendo que combater os rebeldes e o regime para conquistar território, acabando em 2014 a proclamar o seu califado.

1 Agosto 2016 22 Janeiro 2018

Figura 69 - Localização da evolução da ocupação das forças governamentais na Síria

Fonte: adaptado de www.aleppo2018.com

51 Em suma, aquilo que era uma manifestação por parte de civis em busca de liberdade de expressão e dignidade tornou-se num campo de batalha em que civis (rebeldes) lutam contra o regime da Síria (Bashar al-Assad), e ambos combatem protegendo-se das invasões do Estado Islâmico. Grandes potências como os Estados Unidos e a Rússia envolveram-se neste conflito, apenas defendendo os seus interesses, a Rússia a favor do governo Sírio com base em interesses políticos como bases navais que ligam pontos importantes de rotas de comércio marítimo, e os EUA com a eterna luta contra o Estado Islâmico ficando a favor dos rebeldes.

No meio de tantos conflitos de interesse geopolítico existem pessoas. Esta guerra que já dura há 5 anos já fez mais de 400 mil mortos e cerca de 4.8 milhões de pessoas fugiram procurando asilo em países vizinhos e outros na Europa. Do outro lado da guerra existem aqueles que só querem continuar as suas vidas em segurança, onde o conforto, os alimentos, a água e os sonhos não são limitados, um mundo em que sorrir é um direito, e o acesso aos bens essenciais é uma garantia. Infelizmente a realidade que nos chega mostra que mais de 2 milhões de pessoas ficaram desalojadas e vivem e condições precárias.

Hoje sabemos que a guerra na Síria não terminou e o fim parece estar longe. A nós cabe-nos o papel de tentar ajudar aqueles que viram a sua vida ser destruída. Perceber o que os move, as suas convicções, os seus medos, as suas necessidades, e tentar enquanto arquitetos encontrar soluções, para situações de emergência como esta, em que cidades inteiras são apagadas destruindo memórias, vidas e sonhos.

Cerco de Alepo

Desde 2012 que Alepo estava dividida em duas partes, os bairros controlados pelo regime a zona oeste e do outro lado a área de domínio dos rebeldes, a zona leste onde viviam mais de 300 mil civis. Com a evolução da guerra o regime começou a criar um cerco à cidade com o objetivo de dominar definitivamente toda aquela zona bloqueando primeiramente a estrada que liga as áreas controladas ao norte do país acabando por cercar completamente a cidade.

Figura 70 - Cronologia dos confrontos recentemente

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Figura 71 - Cerco de Alepo

53 Neste cenário as organizações de apoio e ajuda aos civis acabaram por ficar

impedidas de chegar às pessoas que se encontravam em zonas sitiadas totalmente inacessíveis. Esta é a estratégia escolhida pelo regime para conseguir combater os rebeldes e o Estado Islâmico, acabando por deixar os habitantes locais com uma enorme escassez de recursos.

No dia 17 de julho de 2016 o regime de Bashar Al-assad e os seus aliados conseguiram fechar o cerco sobre Alepo, deixando milhares de civis entregues à sua sorte.

Viver na Guerra

Todos nós temos o nosso dia-a-dia repleto de rotinas e hábitos e uma variedade de vivências, experiências diárias e relações sociais que se tornam banais com o decorrer do tempo, aquilo que denominamos como o nosso quotidiano.

Mas, como passará a ser cada dia quando de repente começa tudo aquilo que conhecemos a ser destruído à nossa volta? Quando a nossa casa deixa de ser o nosso lugar de proteção? Ou quando temos de passar a ter como barulho de fundo o som de bombas e disparos de armas? Como será viver sem uma rotina? Sem saber como vai ser o dia amanhã?

A guerra levanta-se sem dar aviso prévio e são inúmeros os civis apanhados neste fogo cruzado. E esta é a principal questão problemática que está a ser aqui abordada, dar relevância às pessoas, aos sobreviventes. É disto que são feitas as cidades, as casas, os espaços são feitos de memórias e são as pessoas que tornam os espaços lugares com memória.

Viver na guerra implica sobreviver, são vários os relatos ao longo da história de testemunhos de sobreviventes em conflitos armados que foram sujeitos às mais diversas adversidades para tentar continuar a sobreviver no seu país na sua terra no seu lar.

Alepo está em guerra há vários anos e já foram muitas as pessoas que abandonaram a sua cidade, rumaram caminho ao desconhecido procurando alguma esperança e segurança.

(De cima para baixo) Figura 72 – Crianças a brincar

Fonte: https://www.theguardian.com

Figura 73 – Homem no meio da casa destruída

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Foram muitos os que conseguiram encontrar em outros países aquilo que consideram o mais parecido possível com um lar mas foram muitos os que perderam ao tentar. A questão é, será que sair e abandonar tudo aquilo que se conhece é o melhor caminho? São inúmeros os que querem ficar e tentar lutar por tudo aquilo que sempre conheceram e tudo o que construíram.

Existem alguns testemunhos que nos permitem perceber como é viver anos num cenário de guerra e principalmente perceber como é necessário criar novos hábitos e estratégias para garantir segurança e mantimentos básicos como a água e alguma coisa para comer.

Bana Alabed

Com apenas 8 anos esta menina já tem uma carga enorme na sua experiência de vida, viver 4 anos numa cidade em guerra.

A experiência da Bana permite-nos ter uma ideia de como é viver durante um longo período de tempo com a imprevisibilidade da guerra. Infelizmente a determinada altura durante a guerra estas pessoas sentiram a necessidade de perceber se o resto do mundo entendia e sabia aquilo que estava a acontecer na Síria, as pessoas estavam a morrer todos os dias, as crianças a circular no meio de bombardeamentos e fogo cruzado, eram mulheres e homens a tentarem sobreviver com as suas famílias na cidade onde sempre viveram, e a tentar não perder o esforço feito de uma vida toda.

A solução encontrada por Bana para conseguir comunicar com o mundo foi o twitter, uma rede social on-line onde encontrou nas mensagens força para continuar a suportar todas as atrocidades que viveu. Esta plataforma permitiu-lhe partilhar tudo aquilo que estava acontecer em Alepo e essas mensagens foram o principal meio para chegar uma solução de fuga para a família de Bana Alabed, e tantas outras.

“Eu queria viver na Síria para sempre, porque é uma terra especial. É um país muito, muito antigo, e a minha família vivia nele desde sempre.”

Bana Alabed, Querido Mundo, p. 23

Um dos principais focos ao analisar o testemunho destas pessoas é procurar perceber se existem realmente pessoas que por opção não querem deixar locais como Alepo, um lugar afetado diariamente pela guerra que os deixa expostos aos mais diversos perigos, todos eles imprevisíveis.

Bana Alabed nasceu em Alepo na Síria no ano de 2009. Tinha apenas 3 anos quando rebentou a guerra civil, cresceu num cenário de guerra e viveu em Alepo com os pais e os dois irmãos mais novos durante 4 anos.

A sua família sempre vivera na Síria e quiseram manter-se lá mesmo sabendo que a cidade estava em guerra. Ficaram em Alepo até altura do cerco em onde foram obrigados a fugir pela falta de recursos e principalmente pela chacina que estava a ser feita contra os civis.

Toda a família foi resgatada para a Turquia onde hoje Bana consegue contar a todos o que viveu.

Figura 74 - Fotografia e biografia de Bana Alabed

55 A mãe de Bana personifica uma das muitas mães e mulheres que tiveram de decidir o futuro da sua família, no início foram muitas as famílias que abandonaram Alepo nos primeiros bombardeamentos, mas foram muitas as famílias que tentaram ficar. As ideias de deixar tudo aquilo que conheciam, como a sua cidade e as suas casas, eram muito menos assustadoras do que enfrentar o desconhecido indo atrás de uma oportunidade que nem sabiam se existia e uma segurança que ainda não lhes era garantida.

“Não tínhamos maneira de saber até que ponto a situação se agravaria. Se tivéssemos compreendido, desde o início, como as coisas acabariam em Alepo ou que horrores nos aguardavam, teríamos partido. Muitas pessoas o fizeram, pelo menos nos primeiros tempos, quando ainda era possível. Algumas saíram-se bem, mas também ouvimos contar histórias terríveis de isolamento e pobreza e depois, pior ainda, de como as pessoas acabavam a viver em campos de refugiados ou morriam ao tentar atravessar mares e desertos perigosos, para chegarem a países que não as queriam lá.

É muito duro uma pessoa ter de deixar toda a sua vida e tudo o que alguma vez conheceu para passar a ser uma refugiada. As bombas eram aterradoras, sim, mas a ideia de começar de novo, sem nada, era igualmente angustiante. (…) A guerra tinha tornado as nossas vidas terríveis mas o desconhecido era igualmente assustador.”

Bana Alabed, Querido Mundo, p. 55-56

Para ser possível viver no decorrer de uma guerra é necessário criar uma espécie de rotinas que permitam reunir tudo aquilo que é necessário para sobreviver mesmo que se tenha de estar confinado a um espaço durante um largo período de tempo.

A Bana explica-nos como é este processo, primeiro a sua família teve a sorte de conseguir ter um gerador e painéis solares que lhes permitiu ter a energia necessária para os manter todo esse tempo e para conseguirem comunicar com o mundo. Mas o principal para a sobrevivência é a água e a comida. Explica-nos como era importante estar atento a cada vez que vinha a água independentemente da hora, o importante era armazenar o máximo possível porque não sabiam quanto tempo voltariam a estar sem água. A comida era à base de produtos secos que não se estragassem com o tempo como por exemplo as massas e arroz.

“Antes da guerra, a água saia das torneiras, mas as bombas fizeram avariar a água e a energia elétrica, ou, às vezes, as autoridades desligavam a eletricidade que bombeia a água, quando estavam zangadas. Por vezes não havia água durante muito tempo e era por isso que tínhamos de armazenar tanta quanto possível em bilhas e usá-la só quando fosse mesmo necessário. Nem sempre se sabia quando vinha a água ou por quanto tempo ia haver água. Por vezes, um vizinho alertava todas as pessoas correndo pelas ruas a

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gritar «Há água!» Mesmo que fosse a meio da noite, tínhamos de nos levantar e armazenar água, porque não sabíamos quando voltaria. O baba e eu íamos encher bidões nos enormes tanques de água na rua. (…) Arranjar água dava muito trabalho, mas não se pode viver sem água.”

Bana Alabed, Querido Mundo, p. 63

A família de Bana tinha a sua casa onde continuaram a viver, era uma sorte porque havia muita gente na rua depois das suas casas terem sido bombardeadas. A principal preocupação quando se vive com a guerra ainda a decorrer é com os bombardeamentos, neste caso eram os bombardeamentos aéreos que eram altamente imprevisíveis, apesar de Bana já saber diferenciar os vários tipos de bombas pelo seu barulho ao cair. Nestes momentos, em que surgiam os bombardeamentos todos corriam para a cave dos prédios, apesar de muito húmidas e frias estas caves abaixo do solo eram os melhores sítios para se protegerem sem serem atingidos, porque quando caia uma bomba tudo o que estava à superfície era inevitavelmente destruído. E foi na cave que esta e tantas outras famílias encontraram o seu abrigo.

“Todos sabíamos o que fazer quando ouvíamos as bombas: se estivessem longe, corríamos para uma divisão da nossa casa que não tinha janelas, onde a mamã guardava roupas velhas e coisas para limpar a casa. Se estivessem perto, corríamos para a cave, ou pelo menos para a casa o tio Wesam, no primeiro andar.

Mesmo que estivéssemos a meio do jantar, mal ouvíamos o ribombar dos aviões, levantávamo-nos da mesa e deixávamos a comida e descíamos a correr os dois lances de escadas até à cave do nosso prédio. (…) Eu detestava a cave. Mas era mais seguro do que ficarmos no nosso apartamento.”

57 Osmar

Quando começou a guerra na Síria foram muitos os jovens que sentiram necessidade de se aliarem aos rebeldes para fazer frente ao regime de Bashar Al- Assad.

Osmar é um dos muitos jovens sírios que teve que se deparar com a guerra na sua vida mas decidiu que a melhor maneira que tinha para se manifestar contra o que ali se passava era através da expressão artística. Começou a pintar muros nas ruínas de Alepo, quando as forças do regime andavam por perto tinha que fugir do exército enquanto ia deixando mensagens pintadas que anunciavam o início da revolta.

Este jovem é um exemplo de esperança e um testemunho de sobrevivência e perseverança. Desde sempre manifestava, já enquanto estudante, o seu desagrado contra Bashar al-Assad mas não queria pegar numa arma e ir para a frente de batalha lutar.

Explica que o medo de morrer é atenuado depois de tantos anos a viver no meio de disparos e explosões mas percebeu que conseguia resistir assim pintado e manifestando-se através dos seus desenhos. Até então nunca tinha pegado em canetas e lápis para pintar mas aqui descobriu a sua nova vocação.

Tem a certeza de que não quer abandonar Alepo, não quer ser um desterrado, Osmar sonha com o fim da guerra para poder prosseguir com o seu sonho de pintar mas enquanto isso vai contando o sofrimento e a destruição que se vive pintado as ruas em Alepo.

“Aqui ficarei até ao final.” Osmar, 2013

Osmar tinha 17 anos quando começaram os primeiros disparos, antes da guerra era um estudante.

Estudava Sistemas na Universidade de Alepo e a guerra trouxe-lhe uma nova vocação. Osmar pinta nos escombros da cidade como forma de refúgio e esperança, mas também como forma de manifestação contra o regime. Entretanto conseguiu ficar na zona controlada pelos rebeldes, já não precisa fugir dos soldados, mas ainda lhe apagam alguns desenhos que são indesejados por alguns chefes religiosos.

Figura 75 - Fotografias e biografia de Osmar

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Capacetes brancos

Os capacetes brancos (the white helmets) são um dos principais meios de ajuda e socorro na Síria. É composta por um grupo de homens ex-trabalhadores das mais variadas áreas que durante este período de guerra encontraram na emergência o seu trabalho e o seu dever.

Conhecida como a defesa civil da Síria, esta é uma organização que tem como objetivo salvar e apoiar os civis que fazem parte do enorme grupo de sírios que não deixaram a cidade. Mais de 2.900 civis trabalham em 120 centros distribuídos por todo o país desde 2013.

Em Alepo o centro dos capacetes brancos situa-se no distrito de Ansari. O trabalho deste grupo tornou-se fundamental para a sobrevivência nesta guerra, nas áreas não controladas pelo regime são várias as pessoas a viver diariamente sujeitas a ataques aéreos provocados pelo governo de Bashar al-Assad e pelos seus aliados, nomeadamente a Rússia.

Os capacetes brancos são os primeiros a chegar logo após a queda de bombas, o primeiro objetivo é sempre tentar perceber se estão todas as pessoas a salvo e se existem sobreviventes em baixo dos escombros, no entanto este grupo de homens atua nas mais diversas missões de ajuda e salvamento. A maioria destes trabalhadores voluntários não tem formação de base de emergência e salvamentos por isso todo o grupo é sujeito a uma formação de um mês na Turquia de modo a qualificar e especializar cada elemento da equipa.

O lema dos white helmets é “Salvar uma vida é salvar a humanidade” e por isso todos os dias acordam sabendo que são tão vulneráveis como todos aqueles civis que resgatam ou mesmo aqueles que vêm morrer. Desde 2013 mais de 130 capacetes brancos foram mortos e conseguiram no mesmo período de tempo resgatar mais de 58.000 vidas.

Figura 76 - Capacetes brancos em missão

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No documento Arquitetura de emergência (páginas 66-75)

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