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Alfabetização: concepções e história

Em uma aldeia de luz cegadora – a luz das terras brancas e secas do mês de maio – ensinava a ler uma menina por um dos métodos tradicionais habituais. Assim íamos, os dois, letra a letra do alfabeto. Ao chegar ao E, junto ao qual se havia desenhado um elefante, a menina, muito rápida, sem esperar minha leitura, disse “A”.

– Não – corrigi – se diz E. Esta é a letra E.

– Não – persistiu – se diz A. Esta é a letra A. Isto é um “alefante”. (FRAGO,

1993, p. 28).

Refletir sobre as escolhas que fazem professoras alfabetizadoras no dia-a-dia de seu trabalho em sala de aula no que diz respeito aos procedimentos teórico-metodológicos de ensino-aprendizagem da linguagem escrita incitou-nos a buscar as concepções inerentes à alfabetização ao longo de sua trajetória na história. Por isso, neste capítulo, especificamente, recorremos a autores (LEITE, 2001; SOARES, 2004; MORTATTI, 2001, 2004; FRAGO, 1993) que debatem o tema, na intenção de que esta retomada possa fornecer pistas para a compreensão da razão das escolhas feitas pelos sujeitos da pesquisa na contemporaneidade.

De acordo com Leite (2001, p. 21), “A questão do processo de alfabetização escolar continua sendo um tema desafiador para os pesquisadores e profissionais da área da Educação.” Na perspectiva desse autor, embora nas últimas duas décadas tenham ocorrido grandes progressos teórico-metodológicos nessa área, mesmo assim, a formação do aluno como um competente leitor e produtor de texto ainda se põe como um dos objetivos a serem alcançados tanto em nossas escolas públicas, quanto particulares. Para Leite,

A importância de tal questão pode ser parcialmente explicada pelo crescente reconhecimento, por parte da sociedade em geral e pelos educadores em particular, de que o envolvimento com as práticas sociais de leitura e escrita constitui-se como uma condição necessária, embora não suficiente, para o pleno exercício da cidadania. Além disso, reconhece-se também que família e escola têm um papel fundamental nesse quadro, por constituírem-se como espaços privilegiados para a ocorrência do processo de mediação da criança e do jovem com a escrita. (LEITE, 2001, p. 22).

Ainda segundo Leite (2001), a mudança ocorrida nas duas últimas décadas é de tal ordem que, “para efeito de análise”, pode-se mesmo falar de um modelo tradicional de alfabetização em contraposição às concepções atuais representadas54, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 2001a).

O autor aponta que um dos principais critérios que diferenciam essas duas perspectivas diz respeito à concepção de escrita que subjaz cada uma delas. Em suas palavras,

No modelo tradicional, a escrita era entendida como um simples reflexo da linguagem oral, ou seja, a escrita era concebida como uma mera representação da fala; nesta perspectiva, ler e escrever são entendidos como atividades de codificação e decodificação, sendo o processo de alfabetização, reduzido ao código escrito, centrado na mecânica da leitura e da escrita. Daí a grande preocupação metodológica: qual o método que melhor possibilita ao aluno o domínio do código. Trabalhava-se com a perspectiva de, primeiramente, ensinar o código e, posteriormente, habilitar o aluno a utilizá-lo, o que dificilmente acontecia. (LEITE, 2001, p. 23).

Leite (2001) menciona e critica também a questão da prontidão presente nos métodos tradicionais, em que se investia no desenvolvimento de habilidades visual-motoras como pré- requisito para a alfabetização. Segundo o autor, esse modelo tem sido duramente criticado desde a década de 1960, quando os países desenvolvidos dão-se conta da condição de analfabetismo funcional em parcelas significativas de suas populações. Segundo o autor, analfabeto funcional seria “aquele indivíduo que passa pela escola durante alguns anos, tem contato com o código escrito, mas, depois que sai, não se utiliza da leitura e da escrita como instrumentos de inserção social e desenvolvimento da cidadania.” (LEITE, 2001, p. 24).

As concepções atuais da linguagem escrita, de acordo com Leite (2001), implicam dois aspectos que o autor julga fundamentais:

[...] de um lado, enfatiza-se o caráter simbólico da escrita, entendendo-a como um sistema de signos cuja essência reside no significado subjacente a ela, o qual é determinado histórica e culturalmente; assim, uma palavra escrita é relevante pelo seu significado compartilhado pelos membros da comunidade. Por outro lado, enfatizam-se os usos sociais da escrita, ou seja, as diversas formas pelas quais uma determinada sociedade utiliza-se efetivamente dela [...] (LEITE, 2001, p. 24).

54 Mortatti (2000, p. 23) faz uma argumentação em torno dos conceitos de “antigo” e “moderno” que amplia o

sentido desses termos pensados no movimento da história: “Em síntese, a tensão entre modernos e antigos apreendida nos discursos dos sujeitos de época, ao longo do período histórico enfocado, permite a seguinte interpretação: visando à ruptura com seu passado, determinados sujeitos produziram, em cada momento histórico, determinados sentidos que consideravam modernos e fundadores do novo em relação ao ensino da leitura e escrita. Entretanto, no momento seguinte, esses sentidos acabaram por ser paradoxalmente configurados, pelos pósteros imediatos, como um conjunto de semelhanças indicadoras da continuidade do antigo, devendo ser combatido como tradicional e substituído por um novo sentido para o moderno”.

Assim, na concepção deste autor, que converge com aspectos da perspectiva histórico- cultural, o ponto de partida e de chegada do processo de alfabetização é o texto, falado ou escrito, caracterizado como uma unidade de sentido que se estabelece em um contexto discursivo. O planejamento de atividades sob esse ângulo envolve tanto a linguagem oral como a linguagem escrita; a idéia de “unidade de sentido” se refere à definição do que é um texto, que não passa pelo seu tamanho, mas pelo sentido que possa o leitor construir; e a consideração de que o texto se realiza em uma situação discursiva implica o domínio e acesso aos gêneros discursivos que correspondem aos diversos usos sociais da linguagem escrita.

Leite (2001) afirma que o processo de alfabetização inicia-se muito antes do período formal de escolarização e que isto tem uma relação direta com a quantidade e qualidade de interações dos sujeitos com a escrita. Essa afirmação do autor se coaduna com a perspectiva apontada por Vygotsky (1995 [1931], p. 185, tradução nossa) de que “o desenvolvimento da linguagem escrita possui uma longa história, extremamente complexa, que se inicia muito antes de a criança começar a estudar a escrita na escola.” Nas palavras de Leite (2001), é tarefa da Escola dar continuidade de forma sistematizada aos processos de apropriação da escrita que já vêm se realizando anteriormente. Para o autor,

O desafio que se coloca para a escola, portanto, é possibilitar ao aluno ampliar as possibilidades dos usos lingüísticos da escrita, habilitando-o nos diferentes usos da linguagem escrita e oral, numa perspectiva crítica, ou seja, formar o leitor e o produtor de textos tendo em vista o aprimoramento do exercício de cidadania. (LEITE, 2001, p. 29)

Nessa linha de raciocínio, Leite (2001) ressalta que os objetivos atuais do ensino de Língua Portuguesa estão voltados para a formação do leitor e produtor de textos. A pretensão é habilitar o estudante a utilizar as linguagens escrita e oral nos diversos gêneros discursivos. Com essas pontuações, Leite (2001) anuncia que um novo conceito vem sendo utilizado, não em substituição à alfabetização, porém com sentido mais abrangente: o conceito de letramento.

Leite (2001) faz referências a autores que desenvolvem esse conceito (TFOUNI, 1995; KLEIMAN, 1995; SOARES, 1998) e conclui que

[...] É possível identificar que a tendência atual dos autores é situar a alfabetização como parte desse processo geral de letramento, mas caracterizada pelo domínio da tecnologia da escrita, ou seja, o período em que o aluno aprende os mecanismos da leitura e da escrita e os elementos textuais necessários para construir significados a partir dos textos. (LEITE, 2001, p. 32).

Para Leite (2001, p. 32), o desafio que se coloca aos alfabetizadores “é como desenvolver o processo de alfabetização numa perspectiva de letramento, isto é, como alfabetizar letrando”.

Leite (2001) enfatiza que um dos grandes avanços teórico-pedagógicos relacionados ao processo de alfabetização escolar diz respeito à consideração de sua natureza multideterminada e multifacetada. A compreensão do fenômeno alfabetização depende da contribuição de várias áreas do conhecimento (educação, lingüística, sociologia, psicologia etc.), o que implica numa formação pautada também pelo acesso ao conhecimento produzido por essas diversas áreas. O autor defende que

[...] a base do trabalho do professor alfabetizador é de natureza político- ideológica, na medida em que os objetivos do processo de alfabetização escolar são sempre o reflexo das concepções de homem, de mundo, de cidadania, do papel da escrita na sociedade etc. dos educadores que concretamente planejam e desenvolvem o processo. No entanto, para o desenvolvimento das práticas pedagógicas, é necessário também o acesso ao conhecimento acumulado pelas áreas auxiliares, principalmente a lingüística e áreas afins, que têm produzido um importante conhecimento sobre seu objeto, a escrita, e a Psicologia, na medida em que tem produzido um conhecimento relevante sobre o sujeito – no caso, a criança na relação com a escrita. (LEITE, 2001, p. 33-34).

Assim sendo, dentro das concepções de alfabetização denominadas por Leite (2001, p. 38) como “atuais”, a questão da metodologia toma dimensões totalmente diferentes daquelas propostas pelo “modelo tradicional”. Nas palavras de Leite,

Se, neste modelo [o “tradicional”], a referida discussão acabava restringindo- se aos chamados métodos (de natureza analítica, sintética ou mista), agora, a questão de construção das práticas pedagógicas tem como base as concepções sobre a questão da cidadania, uma clara compreensão do papel social da escrita na vida dos cidadãos, além das contribuições das áreas auxiliares de conhecimento [...]. (LEITE, 2001, p. 38).

Parece-nos procedente também ressaltar o que Leite (2001) indica sobre o planejamento e a avaliação dessas práticas que, ao nosso ver, contribuem para a discussão em torno da formação de alfabetizadoras. Em sua concepção,

O planejamento e a avaliação deveriam ser realizados como parte do trabalho coletivo dos professores e coordenadores pedagógicos, uma vez que tal condição possibilitaria a troca de experiências, bem como o aprofundamento da análise das práticas desenvolvidas, num movimento dialético envolvendo a relação ação-reflexão. (LEITE, 2001, p. 39).

Posicionando-se em uma perspectiva que se assemelha à de Leite (2001), Soares (2004) apresenta um panorama vivenciado nas últimas décadas e contribui para pensarmos sobre as concepções de alfabetização, a sua transmutação para o letramento e as conseqüências de tais encaminhamentos. Enfatiza as críticas sobre os novos modos de se alfabetizar que, em sua perspectiva, ainda não conseguiram suplantar o fantasma do fracasso escolar, fazendo uma análise de possíveis causas.

Segundo Soares (2004), nos últimos vinte anos, assistimos a um movimento que passou de uma progressiva invenção55 da palavra e do conceito de letramento para uma desinvenção da alfabetização que contribui para um outro movimento na atualidade que ela nomeia de reinvenção da alfabetização.

Para a autora, houve momentos (anteriores a esses 20 anos mencionados) em que a ênfase no processo de ensino-aprendizagem da alfabetização recaiu sobre as relações entre o sistema gráfico e o fonológico, sem a preocupação com as práticas sociais de leitura e escrita. Tal panorama seria o que Leite (2001) caracterizou como o modelo tradicional. Posteriormente, houve uma virada; a ênfase passou a ser dada às práticas sociais de leitura e escrita, havendo uma perda da especificidade dos processos de ensino-aprendizagem do sistema de escrita, relegado a um segundo plano. Isso ocorreu em virtude da negação/condenação do uso de cartilhas e de outros materiais de apoio do professor, sem que ele tivesse compreendido a mudança de concepção, método e metodologias de alfabetização ora proposta. Esse aspecto anteriormente mencionado, a perda da especificidade da alfabetização, do ponto de vista de Soares (2004), pode ser, talvez, uma das causas do atual fracasso nas escolas que passaram a trabalhar com um viés que denominaram construtivista, sem que houvesse a devida compreensão, na verdade, das razões de procedimentos e dos conteúdos então valorizados.

Enfatiza Soares (2004) a necessidade de rediscutir e deixar vir à tona a especificidade e ao mesmo tempo a necessária indissociabilidade das duas facetas – alfabetização e letramento – que deveriam compor o ensino-aprendizagem nos processos iniciais de apropriação da escrita. Reconhecer a especificidade de cada processo pode nos ajudar a rever posturas atuais consideradas “inovadoras” que continuam perpetuando o fracasso escolar, mesmo que de maneira distinta das de outrora.

55 Em nosso ponto de vista, que se apóia na perspectiva histórico-cultural, o termo “letramento” surgiu

demandado pela realidade. Por isso não concordamos que “invenção” seja o termo adequado para se referir à necessidade de nomear uma categoria posta pelo real. A realidade existe não porque o nosso pensamento a inventa; se tomamos ou não consciência dela, essa é uma outra questão.

Soares (2004) contextualiza o surgimento do conceito de letramento na década de 1980 e pontua que isto ocorreu concomitantemente em vários países. Demonstra que se tratava da “necessidade comum de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita.” (SOARES, 2004, p. 2). No entanto, se há coincidência em relação ao momento histórico em que essas práticas de leitura e escrita mais avançadas e complexas emergem como questão fundamental em países distintos, o contexto e as causas dessa emersão são diferentes.

Se nos países do primeiro mundo o não domínio dessas práticas adquire caráter de problema relevante, isto se deve à constatação de que a população, mesmo alfabetizada, não domina as habilidades de leitura e escrita que lhes dariam condição de participação efetiva em eventos sociais em que essas habilidades se fazem necessárias. Ao pensarmos na realidade brasileira, constatamos que há uma outra questão por ser resolvida, pois uma parte da população sequer domina as habilidades básicas referentes ao conhecimento sobre as convenções da escrita. Nas palavras da autora,

No Brasil, porém, o movimento se deu, de certa forma, em direção contrária: o despertar para a importância e necessidade de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito de alfabetização. (SOARES, 2004, p. 3).

A autora enfatiza, então, que diferentemente de outros países, “no Brasil, os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, freqüentemente se confundem” (SOARES, 2004, p.3-4). E ela reconhece que embora seja fundamental nas discussões atuais pensar esses conceitos como intrinsecamente imbricados, faz-se necessária a conscientização de que há especificidades a ser consideradas, pois a diluição dessas especificidades pode continuar contribuindo para o fracasso escolar na atual conjuntura educacional brasileira.

Ao falar da “desinvenção da alfabetização”, Soares (2004) sinaliza para a perda da especificidade do processo de alfabetização nas duas últimas décadas. Se anteriormente aos anos de 1980, a alfabetização se caracterizava por uma excessiva especificidade de autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico em detrimento das demais aprendizagens referentes à leitura e à escrita, dessa década em diante, há uma inversão nesse quadro, ou seja, passou-se a priorizar a outra faceta do processo: os usos sociais da leitura e escrita, desconsiderando-se a importância da apropriação do sistema de escrita.

Uma das razões para o fenômeno da desinvenção da alfabetização apontadas por Soares (2004) foi a mudança conceitual do processo de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, que se difundiu no Brasil em meados dos anos 80 em virtude da divulgação das pesquisas de Emília Ferreiro, ancoradas na teoria piagetiana. Entendia-se que a alfabetização deveria se dar na “perspectiva construtivista”, sem que se soubesse exatamente o significado desse construtivismo.

Alerta-nos a autora que ao se defender a necessária especificidade do processo de alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento. Se reconhecemos que as crianças estão sendo letradas na escola, porém não alfabetizadas, não significa que devamos retroceder, voltando a priorizar a autonomização do processo de alfabetização (como se devesse ser independente e anterior ao processo de letramento); mas, sim, alfabetizar também. Por isso, ela propõe a “reinvenção da alfabetização”, que é ao mesmo tempo “perigosa e necessária”. Tal reinvenção, acrescentamos, vem ao encontro do que Leite (2001) propõe com sua perspectiva de alfabetizar letrando.

A autora conclui essas suas reflexões apresentando quatro grandes considerações na mesma direção das proposições de Leite (2001), e com as quais concordamos. Tais proposições são fundamentais e merecem ser postas em relevância ao pensarmos em estudos sobre o fenômeno alfabetização na atualidade: a necessidade do reconhecimento da especificidade da alfabetização (como processo de apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico); a importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento (participação em eventos diversos de leitura e escrita em seus usos sociais), o reconhecimento de que tanto a alfabetização quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou seja, especificidades que precisam de sistematizações distintas, bem assim a necessidade de rever e reformular a formação de professores das séries iniciais do ensino fundamental para que enfrentem o fracasso escolar que vem se perpetuando no ensino inicial da linguagem escrita no Brasil.

Reafirmar que é inquestionável o papel da leitura e da escrita nos dias atuais é discurso corrente e presente nas reflexões dos autores que se dedicam a pesquisas na área de linguagem. Mortatti (2004) é mais uma autora que trata da questão. Em “Educação e Letramento”, logo à entrada do primeiro capítulo, salienta que

Saber ler e escrever, saber utilizar a leitura e a escrita nas diferentes situações do cotidiano são, hoje, necessidades tidas como inquestionáveis tanto para o exercício pleno da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político. É, portanto, dever do Estado proporcionar, por meio da educação, o

acesso de todos os cidadãos ao direito de aprender a ler e a escrever, como uma das formas de inclusão social, cultural e política e de construção da democracia. ( MORTATTTI, 2004, p. 15).

Mortatti (2004) ressalta, em outro ponto de sua obra, algo que tem ressonância com o que foi defendido por Soares (2004) e Leite (2001): ser alfabetizada não garante que a pessoa seja letrada e viver em uma sociedade letrada não assegura a todas as pessoas a mesma forma de inserção na cultura escrita. Segundo ela, “os significados, usos, funções da leitura e escrita e as formas de produção, distribuição e utilização do material escrito e impresso também dependem do tipo de sociedade e dos projetos políticos, sociais e culturais em disputa em determinado momento histórico.” (MORTATTI, 2004, p.107).

A autora apresenta um panorama histórico relevante que possibilita compreender melhor como tem sido e como foi o processo de alfabetização no Brasil: sua difusão, os procedimentos, seus objetivos e suas conseqüências.

Nas palavras de Mortatti (2004), no Brasil, desde o período colonial, existia um número considerável de pessoas que não sabiam ler e escrever. Todavia isso só se tornou problema de ordem política, quando, no final do período imperial, se dá a proibição do voto dos analfabetos (1882), e isso tomou força pela circulação das idéias do liberalismo, e pela divulgação da taxa de analfabetismo no censo de 1890, no período republicano. (MORTATTI, 2004, p. 17).

Embora, segundo essa autora, o voto dos analfabetos tenha voltado a ser garantido na Constituição de 1988, ele foi constituindo não somente um problema político, mas também de ordem social, cultural e econômica, no decorrer de todo o século XX, e um estigma criou-se em torno da figura do analfabeto considerado então como alguém incapaz.

Mortatti (2004, p. 18) afirma que “a necessidade de censos populacionais ganhou força, acompanhando uma prática que se vinha espalhando pelo mundo ocidental desde fins do século XVIII.” Assim, vários foram os censos realizados no Brasil: em 1872 (Recenseamento Geral do Império), em 1890 (já no período republicano), em 1900, em 1920 e em 1940. Segundo Mortatti (2004), esse último foi realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fundado em 1936 e, desde então, esse instituto continua realizando os censos a cada dez anos, com exceção do realizado em 1991.

Até 1940, o critério para saber se as pessoas sabiam ler e escrever o próprio nome tinha por base a declaração do próprio sujeito. A partir de 1950, a definição de alfabetização ampliou-se para o saber ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhecesse; a pessoa que soubesse apenas escrever seu nome não era considerada alfabetizada. No censo de 2000, alfabetizado era aquele indivíduo que sabia ler e escrever um bilhete simples no idioma que

conhecesse, e já aquele que sabia ler e escrever, mas havia esquecido, e o que apenas sabia assinar o nome eram considerados analfabetos.

Mortatti (2004) complementa ainda que alguns estudiosos defendem a adoção do conceito de “analfabeto funcional”, que passa a ser utilizado em vários países para designar