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Espaço da iniciação na escola sem paredes do Porto/Portugal

4.2 Organização dos espaços de alfabetização

4.2.2 Espaço da iniciação na escola sem paredes do Porto/Portugal

Espaço da Iniciação é a denominação que recebia o espaço em que ficavam as crianças iniciantes no processo de apropriação da escrita e leitura na Escola de Porto/Portugal. No momento da pesquisa, tal espaço era composto por 23 crianças em processos diferenciados, algumas lendo com fluência, outras com dificuldade e outras ainda nem conseguindo ler, situação muito semelhante ao cenário que encontramos nas escolas Brasileiras. Entretanto, a organização de tal espaço era interessante e distinta. Havia algumas mesas retangulares e em volta sentavam-se de 4 a 6 crianças aproximadamente; o trabalho em grupo era um procedimento normal adotado por toda a escola e as crianças eram chamadas à responsabilidade da “entre-ajuda” (termo usado pela professora), cada uma sabendo que poderia ajudar a outra e a cooperação no grupo era incentivada.

Para esse Espaço da Iniciação havia uma professora responsável (R-pt), mas sempre um outro professor ou professora a acompanhava e ajudava. Era uma peculiaridade dessa escola: dois professores presentes, o que facilitava o atendimento a todas as crianças.

O espaço era uma grande sala semi-aberta, com uma meia-divisória. Tal sala, portanto, era dividida pela Iniciação, pela Dimensão Artística e ao meio por um espaço de pesquisa (com estante de livros) e computadores. As crianças da Iniciação ocupavam o seu espaço e também o da Dimensão Artística, nos momentos específicos em que trabalhavam com artes, assim como também outras crianças de outros espaços utilizavam os computadores e o espaço da Dimensão Artística.

Não se ouviam os termos: sala de aula, turma, aula, séries, repetência, porque aquela realidade não comportava tal organização. Havia o espaço da Iniciação, da Dimensão Artística, da Consolidação (onde ficam grupos de crianças maiores que já resolveram suas questões de alfabetização) e que também ocupavam outros espaços: Gedeão, João de Deus, Rubem Alves, Polivalente (nesse último ficava o refeitório, mas também era ocupado para outras atividades).

Tivemos a impressão de que naquela escola todas as crianças eram responsáveis por tudo o que ali ocorria juntamente com os professores que, por sua vez, eram também responsáveis por todas as crianças. A escola também se organizava a partir de Grupos de Responsabilidade: eram grupos de crianças de vários espaços e idades distintas que tinham um professor tutor (que já explicitamos no capítulo terceiro). Nas quartas-feiras, os professores-tutores organizavam com as crianças as suas atividades em arquivo, nas sextas- feiras, das 14 às 15 horas, reuniam-se, discutiam as funções de seu grupo de responsabilidade e se preparavam para a Assembléia que se realizava às 16 horas. Por exemplo, durante o processo de pesquisa, a professora R-pt era responsável direta pela Iniciação e tutora de um Grupo de Responsabilidade que gerenciava as visitas. Esse grupo especificamente era composto por nove crianças: algumas da Iniciação e outras pertencentes a outros espaços. Quando aconteciam as reuniões (sexta às 14h) no espaço João de Deus, a professora e essas crianças avaliavam o transcurso de seu grupo de responsabilidade, como por exemplo, em relação à organização das parcerias para receber as visitas. Uma criança registrava a ata, votavam, posicionavam-se, argumentavam e dirigiam-se para a Assembléia. Uma das crianças deste grupo o representava na mesa composta por representantes de todas as Responsabilidades no cine, local onde ocorriam as tais assembléias.

No depoimento que explicitamos a seguir, a professora R-pt evidenciou que a forma de organização daquela escola é distinta das escolas em geral, pois seu projeto está centrado na cultura das crianças. A concepção de ensino-aprendizagem explicitada na fala de R-pt sugere uma centralidade na criança, “o centro da educação é o aluno”, considerando o seu processo, seus interesses. A escola preocupa-se com questões cognitivas, mas não exclusivamente, também trabalha valores, tais como autonomia, co-responsabilidade e cooperação. Nessa perspectiva apontada por R-pt, a avaliação é vista como diagnóstica, no sentido de favorecer informações aos professores dos anos subseqüentes sobre o percurso feito por cada uma das crianças em seus ritmos individuais. Eis o relato de R-pt:

[R-pt Entrev 11: 83 - 112 ] [...]

R-pt: Agora, portanto, se nós descermos um bocadinho ao meu trabalho que é isso que tu pretendes... essa escola como toda a gente percebe à entrada, a organização é totalmente diferente de uma organização de uma outra escola qualquer, porque a organização está baseada... portanto, quem é o centro da educação é o aluno, não há cultura da escola, há cultura do aluno. Então, a escola está organizada de forma a que nós façamos

os possíveis e os impossíveis pra ir ao encontro da criança, ao ritmo, ao interesse da criança, o capital cultural da criança é que impera, a escola não tem o capital cultural e, portanto, é passo a passo, passinhos pequeninos que os meninos vão construindo todo os seus saberes.

[R-pt Entrev 11: 106 - 112 ]

R-pt: Depois, quando eles já atingem determinadas autonomias, quer atitudinais, quer cognitivas, o aluno fica mesmo co-responsável por seu crescimento a nível escolar, a todos os outros níveis. Essa escola preocupa-se muito na parte cognitiva, porque é o papel da escola, porque também é o papel da escola, mas tem a mesma preocupação na formação pessoal do indivíduo, e portanto, há um crescimento harmonioso em todos os sentidos, não investe só na parte, portanto, instrucional.

[R-pt Entrev 11: 329 - 336 ]

R-pt: Agora, aquela pergunta que tu me disseste sobre, portanto, os níveis diferentes: pro próximo ano cada menino vai partir do nível em que está. Fazemos o diagnóstico, a ficha diagnóstica, se eu estiver cá, eu sei em que ponto é que está, se eu não estiver, o professor que irá me substituir verá na ficha diagnóstica e cada menino terá oportunidade de partir do ponto onde está. Que só faz sentido assim, por isso que nós aqui dizemos, temos respeito pelo ritmo, pelas características individuais de cada criança.

Quando a professora se referia às crianças que faziam parte daquele espaço, percebia- se que havia o reconhecimento de que se tratava de um grupo heterogêneo. Pelo seu posicionamento, vimos que a heterogeneidade era compreendida como constitutiva da realidade e por isso não significava um problema. Para R-pt, era preciso olhar para o desenvolvimento de cada criança como distinto e oferecer condições para que todas tivessem oportunidade de aprendizagem. Os depoimentos a seguir assim nos revelaram:

[R-pt entrev 12: 197 - 221 ]

R-pt: Não sei se já constataste, aqui há dois ou três meninos que acompanharam o primeiro grupo, o grupo da primeira vez do ano, percebes, não respeitamos os 1ºs, o 2ºs, nem essas coisas, respeitamos sim o nível em que eles se encontram.

Houve uma menina que esteve aqui um período conosco, que era uma B., meio altinha, nós começamos a perceber até pela estatura física da menina, ela começou a não se identificar com este grupo de pares. Cá na escola, não nos apercebemos de nada, mas ela em

casa falava muito com a mãe e sentia... mostrava que estava triste por estar aqui. A mãe veio falar conosco, nós, na altura que a mãe veio nós achávamos que ainda havia um tempo que ela deveria estar cá. Falamos outra vez com a menina, com a mãe, com a menina, estivemos a explicar o porquê dela estar cá.

Tivemos essa conversa no início do ano com eles, com os três que tiveram cá, que ficavam cá mais numa de ajudar os pequeninos, para nos ajudar a ajudar os pequeninos, ela aceitou, logo que nós nos apercebemos que ela já poderia ingressar no outro grupo, automaticamente foi, está, está lindamente. Quanto ao T., a A. S. e a M. J. a A.. S., também era uma das meninas que à partida já poderia ter ingressado noutro grupo. Olha, não foi, porque ela também é uma miúda que se sente bem, que está, e o trabalho que ela está aqui a fazer, é o trabalho que iria fazer lá embaixo e depois a nível do espaço físico... tu vês lá embaixo que aquilo é um espaço físico muito pesado, muito pesado e que ela não iria ganhar nada em ir. Então nós achamos por bem, ela não mostrou nada, esteve tranqüila, esteve sempre feliz, está bem e, portanto, pra o ano, esse processo repetir-se-á com certeza absoluta.

A primeira impressão do funcionamento dessa escola, realmente nos leva a defendê-la como uma possibilidade ímpar de organização que se distingue do que é a escola de maneira geral, mas ao nos aproximarmos um pouco mais da dinâmica desses espaços também percebemos fragilidades. Por exemplo, em relação a acordos feitos pelas crianças na assembléia e não necessariamente cumpridos, e também no que se refere a encaminhamentos teórico-metodológicos que não contemplavam aspectos de discussões contemporâneas relevantes sobre ensino-aprendizagem da linguagem escrita.

A seguir, apresentaremos a maneira como os sujeitos da pesquisa, de acordo com suas concepções de alfabetização, organizavam a sistematização da linguagem escrita.