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4 A ESCRITA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO

4.2 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Ao ingressar na escola, a criança passa a interagir com a linguagem (oral e escrita) em situações de ensino socialmente organizadas, especialmente pelo discurso pedagógico. No Brasil, a etapa de alfabetização é objeto de preocupação de pesquisadores da área há muitas décadas, conforme Mortatti (2011)12. Esses trabalhos nos mostram como a história da alfabetização é relevante para a compreensão do tema, especialmente no que concerne à relação entre alfabetização e escolaridade.

Nossa opção é realizar um recorte de tal tema, especialmente no que diz respeito aos estudos desenvolvidos a partir da década de 80, e mais pontualmente, no debate envolvendo compreensões de práticas sociais como alfabetização e letramento, atos da língua, e relações entre ambas as práticas, especialmente aquelas que envolvem pesquisas no Brasil.

Ao examinar alguns dos trajetos históricos referentes a esse debate amplo sobre concepções de alfabetização e letramento e desdobramentos em práticas escolares, Magda Soares (1998; 2002; 2006) delineia-nos ao longo da sua produção intelectual, especialmente no livro Letramento: um tema em três gêneros (1998) um panorama epistemológico, social e histórico no trato dessa

12 No livro “Alfabetização no Brasil: uma história de sua história” organizado por Mortatti (2011), encontramos uma série de artigos que aprofundam esse debate e dedicam-se a refletir sobre essa prática social, que é alfabetização.

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questão. A autora traz à tona a difusão de teorias que se espraiam acerca dessas duas concepções basilares que orientam tanto o ensino como a aprendizagem da escrita nos anos iniciais do ensino escolar. Para a autora, sintetizando, a alfabetização se constitui como “ação de ensinar/aprender a ler e a escrever” (SOARES, 1998, p.47) e

letramento como o “resultado da ação de ensinar e aprender as

práticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais ” (SOARES, 1998, p. 18).

Para Soares (1998), quando falamos de alfabetização, há muitas facetas desse fenômeno a atentar. Dentre elas pomos destaque às proposições e práticas de ensino dos estudos da psicogênese da leitura e da escrita, empreendidos pelas pesquisadoras internacionais Ferreiro e Teberosky (1999), amplamente difundidas no Brasil. Também nesse campo de proposições conceituais e de prática de ensino destacam-se os estudos vinculados à linguística que tratam da consciência fonológica, como os de Lemle (1991) e, recentemente, Capovilla e Capovilla (2007). Como repercussão desses ideários teóricos, muitos têm sido os estudos que se debruçam sobre as contribuições desses pensamentos e consequentes práticas docentes na escola.

Consideramos relevante destacar, contudo, neste espaço, os estudos sobre letramento, com suas nuanças e especificidades, para um escrutínio inicial da língua em uso na sala de aula, analisando efeitos do letramento na aprendizagem de um grupo de alunos em processo de alfabetização formal, portanto em um contexto social e histórico, situado, o da sala de aula, ambiente de possibilidades interativas envolvendo o conhecimento da escrita, mediado pelo professor.

Segundo Soares (1998), o termo letramento em português é tradução de literacy, termo inglês, originalmente vindo do latim

littera (letra) com o acréscimo do sufixo cy, cujo sentido é

“qualidade, condição, fato de ser”. Ainda, nas palavras de Soares, “Implícita nesse conceito [literacy] está a idéia de que a escrita traz consequências sociais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la” (SOARES, 1998, p. 17).

Letramento, como conceito, vem sendo assumido com mais intensidade no Brasil, por Soares (1998; 2002; 2006), Kleiman (1995,

1998), Tfouni (2005), Rojo (2000) e Fiad (2011). Autores do contexto internacional, como Street (1988; 2006; 2010), Barton (1998; 2010) e Graff (1990, 1994), vêm tendo suas ideias difundidas no nosso país, servindo como referências aos debates do contexto brasileiro. A seguir, apresentaremos algumas ideias dos autores citados por último, ou seja, os estrangeiros, no intuito de esclarecer como o letramento vem sendo compreendido no Brasil.

Trabalhos como os de Graff (1990, 1994) trazem uma análise do panorama da história da alfabetização, termo que o autor define como, antes de tudo, uma tecnologia ou conjunto de técnicas para comunicação, decodificação e reprodução dos materiais escritos ou impressos (GRAFF, 1990). A opção do autor é, pois, discutir, mais pontualmente e por uma perspectiva etnográfica, as implicações das relações sociais no processo alfabetização (GRAFF, 1994). Na terceira parte do livro Os Labirintos da Alfabetização, Graff (1994) apresenta abordagens críticas que relativizam os pressupostos que ligam alfabetização com crescimento econômico, realização individual e democracia. A perspectiva adotada por esse autor contempla o estudo da história dos sistemas de escrita, das possibilidades de acesso à escrita, das consequências sociais e culturais das práticas de leitura e de escrita em diferentes grupos sociais e da escolarização da aprendizagem do ler e do escrever. Mesmo sendo traduzido do inglês por meio do termo literacy, devemos destacar que estudos desenvolvidos no campo da historiografia da alfabetização no Brasil, por exemplo Trindade (2004a;2004b), e que se alicerçam em Graff (1990, 1994), têm dado preferência ao uso do termo alfabetismo, diferenciando-o do termo

letramento.

Street (2003; 2006; 2010) e Barton (2010) também se valem do termo literacy para apresentar trabalhos que aproximam a linguística e a antropologia, em uma perspectiva etnográfica de investigação. Porém, seus tradutores e intérpretes, no Brasil, têm utilizado em seus estudos particulares, o termo letramento, com atenção aos conceitos de práticas de letramento e eventos de

letramento (STREET, 2003; 2013; BARTON, 1998; 2010), visando à

análise das práticas ideológicas e relações de poder investidas nas práticas de leitura e escrita em comunidades específicas.

Street (2003; 2006; 2013) propôs o uso do termo práticas de

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e políticos inscritos em um evento de letramento. Nas palavras do autor,

Prefiro, antes de mais nada, falar de práticas de

letramento do que de “letramento como tal”.

Existem vários modos diferentes pelos quais representamos nossos usos e significados de ler e escrever em diferentes contextos sociais e o testemunho de sociedades e épocas diferentes demonstra que é enganoso pensar em uma coisa única e compacta chamada letramento. A noção de que a aquisição de um letramento único e autônomo terá consequências pré-definidas para os indivíduos e as sociedades provou ser um mito, quase sempre baseado em valores específicos culturalmente estreitos sobre o que é propriamente o letramento (STREET, 2006, p. 466, grifos nossos).

Os estudos de práticas de letramento desenvolvidos por Street (2003) e por outros autores vinculados à mesma perspectiva etnográfica do uso social da leitura escrita constituíram o que foi denominado de Novos Estudos do Letramento, em inglês New

Literacy Studies (NLS) (STREET, 2003). Destaca o autor que são

estudos da natureza do letramento, enfocando não tanto a aquisição de habilidades, mas o que significa o letramento social (STREET, 2013). Por tal posicionamento não se nega a prática do letramento como aquisição de habilidades específicas do período de alfabetização (recursos linguísticos), mas o enfoque recai sobre as práticas sociais ideológicas e os múltiplos letramentos que variam de acordo com o tempo e o espaço, enfatizando a etnografia como forma de investigação (como já indicamos neste trabalho) que possibilita avaliar os princípios epistemológicos socialmente construídos nos processos de aquisição da leitura e escrita (STREET, 2003; 2013). Tanto para situações de pesquisa, como de ensino, é a expressão

evento de letramento que ganha destaque ao longo dos estudos de Street, os quais indicam que o evento de letramento pode ser

compreendido como “qualquer ocasião em que o texto escrito é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e de seus processos de interpretação” (STREET, 2013, p. 55). Uma diferença fundamental entre as práticas e os eventos de letramento é que os

com o texto escrito conferem sentido àquela ocasião em específico e as práticas são conceitos culturais mais abrangentes.

As concepções de eventos e práticas de letramento propostas por Street (2013) podem ser aproximadas das concepções sócio- históricas da linguagem, defendidas por Vigotski (2000a) e Bakhtin (2010; 2011b). Especialmente, a estudos relacionados às esferas sociais de uso da linguagem da teoria bakhtiniana (BAKHTIN(VOLOCHÍNOV), 2011b), conforme já delineou Fiad (2011):

Os estudiosos do letramento que integram a área dos Novos Estudos do Letramento (STREET 1984, 2003; BARTON 1994; GEE 1996), propõem que as práticas de letramento, como práticas sociais que são, têm caráter situado, ou seja, têm significados específicos em diferentes instituições e grupos sociais. Desse modo, assumindo que as práticas de uso da escrita são diferentes, é possível assumir que existem múltiplos letramentos, a depender das

esferas e grupos sociais: escolar, religioso,

familiar etc. (FIAD, 2011, p. 361, grifos nossos).

Conforme já vimos neste estudo, as esferas sociais, no conjunto das atividades humanas, produzem gêneros do discurso (BAKHTIN, 2011b). Assim, as diferentes esferas sócio-discursivas elaboram repertórios de gêneros que lhes são próprios. Os gêneros são marcados pelas especificidades de suas esferas sociais específicas, dado que são formados histórica e culturalmente. O domínio das práticas discursivas de leitura e escrita passa pelo domínio dos gêneros, nascidos e vividos nas esferas sociais. Os conceitos de

práticas sociais e de eventos de letramento produzidos no campo dos

estudos de letramento podem, então, ser aproximados dos conceitos de esferas sociais e gêneros do discurso (BAKHTIN, 2011b) na relação específica com processos de aquisição da leitura e escrita, na esfera escolar. Em nossa investigação, analisamos eventos de

letramento em que se faz uso (compreensão e produção) de

determinados gêneros, inclusive do discurso das ciências (esfera científica), com o intuito de chegar à compreensão das práticas de

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No Brasil, além da contribuição reflexiva sobre os temas alfabetização e letramento de Soares (1998; 2004; 2013), supracitada, os estudos desenvolvidos por Kleiman (1995; 2005; 2007) a respeito dos Novos Estudos do Letramento têm destacado o impacto da concepção da escrita como prática social em detrimento de ênfases sobre as competências individuais na aprendizagem da escrita (KLEIMAN, 1995). Kleiman nos chama a atenção para as reflexões de Bakhtin (2011b) torno da natureza polifônica da linguagem, destacando que o enunciado incorpora vozes de outros em processos de letramento dentro e fora da escola (KLEIMAN, 1995). Ao destacar o enunciado nos processos de letramento, a autora afirma que “[...] a oralidade e a escrita podem ser investigadas não apenas da perspectiva da diferença, mas também da perspectiva da semelhança, do compartilhado” (KLEIMAN, 1995, p. 29), substituindo os processos de ruptura que subjazem à prática escolar em leitura e escrita por uma concepção dialógica no ensino da escrita na esfera escolar.

O que nos parece relevante a nossa investigação em particular, quando propomos uma revisão teórica sobre letramento, ainda que de modo breve, sobretudo centrada na perspectiva dos Novos Estudos do Letramento (STREET 2003, 2006, 2013; KLEIMAN, 1995, 1998; FIAD, 2011), é considerar que existe, em primeiro lugar, uma complexa relação entre oralidade, leitura e escrita quando tratamos do acesso ao conhecimento da escrita na escola e fora dela em suas correspondentes inter-relações. Outro ponto em que pomos destaque refere-se a conceitos como de “práticas” e “eventos” de letramento pelo fato de essas noções vincularem-se ao modo de existência social e cultural dos sujeitos participantes deste cenário que é o do mundo dos sujeitos em processo de aprendizagem da escrita. Podemos então compactuar com a tese daqueles autores que não apenas promovem o debate entre as relações do uso social da linguagem e a primeira etapa do ensino formal da leitura e escrita na esfera escolar, mas apontam, de certo modo, possibilidades para a compreensão de como a aquisição da escrita se torna um acontecimento sócio-interacional também na escola. Igualmente, e isso é de nosso interesse particular nesta nossa investigação, para a dimensão compreensiva da alfabetização na perspectiva do letramento, relacionando tal prática com vista à compreensão de como se dá no espaço escolar o acesso, a compreensão e a produção de discursos científicos constituídos pelos enunciados efetivados no

espaço da vida (cotidiano) e da cultura congregados na vivência, na escola.