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3 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM

3.1 DESENVOLVIMENTO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-

A fim de analisarmos as possibilidades de ensino e aprendizagem do conhecimento científico na esfera escolar, tomando como base o trabalho com os textos de alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, torna-se necessário explicitar como concebemos o desenvolvimento e a aprendizagem da criança como ser social.

Para tornar mais clara a posição que adotamos neste trabalho a respeito do desenvolvimento do homem social, destacamos aqui teorias de Piaget e Vigotski, que nos últimos trinta anos têm sido postas tanto em diálogo como em confronto e se constituído em duas correntes de pensamento expressivas e com grande impacto no campo pedagógico. Sem desconsiderar as críticas que vêm sendo feitas, ora a um ora a outro autor, como também de um para outro autor, nos parece que ambos avançam no conhecimento sobre a infância pelas reflexões que trazem, em sua época, aos processos psicológicos e métodos de pesquisa voltados especialmente à compreensão do desenvolvimento infantil.

Partimos então da crítica de Vigotski6 às conclusões de Piaget a respeito do desenvolvimento da socialização da criança, especificamente em torno do estudo que esse último fez sobre “fala egocêntrica”. Vigotski (2000a) afirma que, para Piaget, a fala egocêntrica pode ser compreendida como o período em que a criança pequena fala sem um interlocutor; “dialoga” consigo mesma, especialmente em situações de brincadeira.

Resumidamente, e com base em Vigotski (2000a), podemos apontar que Piaget considerava a fala egocêntrica como uma fase de transição por que passa a criança rumo à linguagem socializada. Para Piaget, segundo ainda Vigotski, a linguagem egocêntrica não cumpriria um papel comunicativo, sendo um acompanhamento verbal da ação de sujeitos. Desse modo e pela própria natureza do desenvolvimento infantil, a primeira forma de a criança pensar seria

6 A crítica de Vigotski a Piaget pode ser lida em VIGOTSKI (2000a), págs.19-96.

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uma forma autística de pensamento (VIGOTSKI, 2000a). E o autor continua a apresentar as ideias de Piaget:

A ideia fundante de toda a concepção piagetiana de desenvolvimento do pensamento e a fonte da determinação genética do egocentrismo infantil é a tese, tomada de empréstimo à psicanálise, segundo a qual a forma primária de pensamento, determinada pela própria natureza psicológica da criança, é a forma autística; já o pensamento realista é um produto tardio, uma espécie de produto imposto de fora à criança, pela coação longa e sistemática que o meio social circundante exerce sobre ela (VIGOTSKI, 2000a, p. 31-32). De acordo com essa perspectiva, na direção do seu desenvolvimento, a criança partiria, então, de seus desejos e ilusões particulares, para interações com o outro (ser social), teria a fala egocêntrica como período de transição entre o autismo e a lógica. Assim, o movimento da criança seria da fala egocêntrica (fala autista) até o que chama de fala socializada, aquela em que a criança comunica, questiona, pergunta, critica. Quando alcançada a linguagem socializada, na concepção de Piaget, tanto o pensamento autístico quanto a fala egocêntrica estariam extintos (VIGOTSKI, 2000a).

Refutando os conceitos teóricos de Piaget, Vigotski argumenta que

do ponto de vista do desenvolvimento filogenético e ontogenético, o pensamento autístico não é de maneira nenhuma o primeiro degrau no desenvolvimento intelectual da criança e da humanidade. Não é, absolutamente, uma função primitiva, um ponto de partida de todo o processo de desenvolvimento, uma forma inicial e fundante de onde parte todo o restante (VIGOTSKI, 2000a, p. 37).

A concepção de que o pensamento egocêntrico é estágio primário de um processo de desenvolvimento da linguagem precisa, na opinião de Vigotski, ser revista e, por isso, ele apresenta sua própria tese a respeito do assunto. A fala egocêntrica, para Vigotski

(2000a), seria uma forma de a criança elaborar as atividades simbólicas mediadas pelo social e organizá-las em uma estrutura lógica. O autor considera que a fala egocêntrica não é apenas uma melodia que acompanha a ação, mas desempenha na ação um papel importante. Suas pesquisas e de seus colaboradores demonstraram que o coeficiente de linguagem egocêntrica aumentava em casos de situações-problema ou perturbações que as crianças enfrentavam (VIGOTSKI, 2000a). E conclui Vigotski que a fala egocêntrica da criança

está tão claramente relacionada a todo o processo de sua atividade, constitui com tanta evidência um ponto de reviravolta [...] das buscas de saída e da criação de um plano e de uma nova intenção que determinam todo o caminho posterior do comportamento [...] que seria simplesmente impossível adotá-la como um simples acompanhamento que não interfere no curso da melodia central, tomá-la como produto secundário do desempenho da criança (VIGOSTKI, 2000a, p. 55).

A linguagem egocêntrica surge em um ponto do desenvolvimento infantil, convertendo-se posteriormente em um instrumento (psicológico) do pensamento da criança. Tal linguagem, porém, não surge de uma vontade individual da criança, mas da relação que estabelece ao interagir com o outro, ou, no desenvolvimento de suas ações, ao efetuar mediações com o outro por meio da fala. Quando a palavra “se intromete” na ação, uma série de outras funções de comportamento são desencadeadas, para além dos movimentos perceptivos e sensório-motores. Quando domina alguns sistemas simbólicos que permitem que a fala surja, esta não aparece simplesmente como uma função comunicativa, mas também tendo uma função reguladora da ação (VIGOTSKI, 2000a).

Sobre a questão da função reguladora da linguagem em relação à ação, Morato (1996) afirma que a perspectiva de Vigotski pode ser compreendida como práxis linguística, diferente da concepção piagetiana de linguagem autística, em virtude do papel atribuído por Vigotski à linguagem e à inteligência do homem. Nas palavras de Morato (1996), a ação reguladora da linguagem “não é uma substância, a força propulsora, nem mesmo uma função em si ou o produto de uma ação: pode-se entender a função reguladora como

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um dos aspectos da atividade estruturante da linguagem ” (MORATO, 1996, p.66).

A extinção da fala egocêntrica defendida por Piaget também não segue o mesmo caminho proposto por Vigotski (2000a). Vigotski considera que essa fala, na verdade, não se extingue, mas vai se transformando em formas de pensamento verbal, ou formas auxiliares de constituição do pensamento verbal, por volta dos sete a oito anos. Por ser uma função que se modifica ao longo do desenvolvimento da criança, até a vida adulta, esse acontecimento pode aparecer novamente em situações de resolução de problemas, como se esse tipo de linguagem ainda pudesse existir mesmo que de forma interna (pensamento).

A periodização da infância é apresentada na obra de Vygotski (1997) como uma forma de mapear os movimentos do processo de desenvolvimento infantil. Sua investigação em busca da compreensão dessas etapas levou-o a dividir ou distribuir os fatores de passagem entre as diversas idades das crianças, em uma crítica às teorias fundamentadas apenas em fatores orgânicos7. Ao contrário de Piaget, que estabeleceu a periodização com base em estágios que se sucedem em avanços lineares, Vygotski (1997) utiliza o termo crise, a fim de deixar claro que cada etapa do desenvolvimento nega as propriedades da anterior, mas, ao mesmo tempo, a anterior continua existindo dentro da etapa subsequente. A crise poderia ser considerada um indício de um movimento de virada qualitativa, sendo precedida por momentos de estabilidade.

O foco de Vygotski (1997) é dirigido a essas novas formações que despontam em cada etapa de desenvolvimento e ao modo de o sujeito relacionar-se com a cultura. Para cada período etário há um grupo de funções psicológicas que estão em desenvolvimento e que levarão à reestruturação das funções existentes para a formação de uma nova estrutura, todas estas sendo analisadas quanto à sua função peculiar e associadas às funções sociais.

Em cada uma das etapas, Vygotski (1997) sugere haver uma situação social como mote para o desenvolvimento, ou seja, fatores orgânicos e sociais formados de linhas centrais e acessórias que condicionam e

7 No texto El problema de la edad (VYGOTSKI,1997), o autor detalha sua crítica posicionando-se de modo contrário àquelas teorias que, apoiadas em fatores orgânicos, consideram, por exemplo, a questão da dentição como um fator identificador de estágios do desenvolvimento infantil.

estimulam o desenvolvimento. A estrutura da situação social formadora do desenvolvimento deve refletir-se na criança como um todo, isto é, como uma pessoa que se encontra engajada nas relações sociais com outras pessoas; não apenas em termos de descrição de qualidades da criança, mas da interação da criança com seu ambiente: La situación social del desarrollo es el punto de partida para todos los cambios dinámicos que se producen en el desarrollo durante el período de cada edad. Determina plenamente y por entero las formas y la trayectoria que permiten al niño adquirir nuevas propriedades de la personalidad, ya que la realidad social es la verdadera fuente del desarrollo, la posibilidad de que lo social se transforme en individual (VYGOTSKI, 1997, p.204).

A situação social do desenvolvimento não é, necessariamente, condição ou pré-requisito para uma próxima etapa, mas sim o núcleo para compreender as relações interfuncionais das crianças com o mundo simbólico. Dizendo de outra forma, para chegar ao entendimento de uma situação social do desenvolvimento é necessário entender o cenário onde o desenvolvimento ocorre, em que se tecem as teias dos signos e significações em cada etapa. Isso se torna pressuposto para compreender a criança não como ser receptor passivo de estímulos externos, mas partícipe do conjunto de ações e interesses material e historicamente motivados, situação que se reflete no período etário em que se encontra. Professa Vygotski (1997):

Vemos, por tanto, que las necesidades, inclinaciones e intereses son procesos integrales de mayor amplitud que cada reacción aislada. Una misma inclinación puede suscitar reacciones distintas y, por el contrario, a menudo intereses totalmente distintos encuentran la expresión y satisfacción en unas reacciones semejantes en su aspecto externo (VYGOTSKI, 1997, p. 10).

Para identificar as relações específicas existentes em cada situação social do desenvolvimento, Vygotski (1997) propõe o uso do conceito de linha central, ou atividade guia, a qual seria capaz de contribuir para o desenvolvimento das funções que conduzem à reorganização estrutural das funções psicológicas da criança em cada

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etapa. O autor identifica, por exemplo, o campo perceptivo como linha central de ação do bebê até o primeiro ano. Com seu engajamento no conjunto de ações humanas com e sobre a linguagem verbal, como base para associações perceptivas do seu entorno social, a fala se impõe ao bebê como uma manifestação que contribui para o movimento de virada – uma crise – que modifica o papel do campo perceptivo, mas não o extingue completamente. Portanto,

Llamaremos líneas centrales de desarrollo de la edad dada a los procesos del desarrollo que se relacionan de manera más o menos inmediata con la nueva formación principal, mientras que todos los demás procesos parciales, así como los cambios que se producen en dicha edad recibirán el nombre de líneas accesorias de desarrollo. De por sí se entiende que los procesos que son líneas principales de desarrollo en una edad se convierten en líneas accesorias de desarrollo en la edad siguiente y viceversa, es decir, las líneas accesorias de desarrollo de una edad pasan a ser principales en otra, ya que se modifica su significado y peso específico en la estructura general del desarrollo, cambia su relación con la nueva formación central. En el paso de una etapa de edad a otra se reconstruye toda su estructura. Cada edad posee su propia estructura específica, única e irrepetible (VYGOSTKI, 1997, p. 203).

Nesse mesmo texto, ainda referindo-se às linhas centrais de desenvolvimento, Vigotski afirma haver uma organização identificada como propulsora das crises e entre estas situa os períodos de estabilidade em que as linhas centrais permanecem as mesmas, com pequenas modificações: crise pós-natal, no primeiro ano; crise do primeiro ano, primeira infância ( 1 a 3 anos); crise dos três anos, idade pré-escolar; crise dos sete anos idade escolar (8 a 12 anos), e crise da puberdade, dos dezessete anos. As idades ali indicadas vão para além da temporalidade e

É importante notar que estes períodos etários são compreendidos como material e historicamente construídos: historicamente porque as funções são construídas por meio da história das práticas humanas; e materialmente

porque as funções são desenvolvidas como consequência de tarefas e interações com os outros (CHAIKLIN, 2011, p. 665).

Das reflexões de Vigotski (1997 em torno desses períodos, destacamos a que diz respeito à crise dos sete anos, pois se situa na etapa das crianças do segundo ano do ensino fundamental, grupo em relação ao qual, ocupamos posição social dupla: de professora e pesquisadora em uma turma específica. A criança nessa idade, comumente elabora a conversão da fala comunicativa e espontânea (da criança pequena), em discurso interno do pensamento verbalizado. O discurso interno, destacamos, não surge apenas nessa fase, mas torna-se consciente para a criança e começa a delinear-se como centro do seu psiquismo. Cresce, portanto, a diferenciação entre mundo interno e mundo externo, bem como a possibilidade de efetuar generalizações, tanto de temas das vivências subjetivas como das funções intelectuais e simbólicas. A criança é capaz de analisar suas vivências, seus estados subjetivos e de fazer projeções. Vygotski (1997) entende que este é um período de crise, pois são estabelecidas “lutas internas” relativas às escolhas que a criança pode tomar em relação às ações que podem ser efetivadas.

Considerando a reflexão efetuada nesta seção, podemos afirmar que, em direção oposta a correntes que acreditam processar-se o desenvolvimento de dentro para fora (do individual para o social), ou seja, que a criança está pronta e à espera de estímulos “corretos” que tragam à tona determinadas funções complexas de comportamento, os autores da perspectiva sócio-histórica defendem o movimento dialético do desenvolvimento entre o estado intra e o interpsicológico. Este é um pressuposto importante para as teorias do desenvolvimento que se ocupam com o campo educacional. Cada campo da cultura humana, a exemplo da escola, é impregnado de signos e significados. As crianças pertencentes a comunidades escolares tornam-se partícipes das relações sociais dessa e nessa esfera social. Portanto, instrumentos e símbolos construídos socialmente definem quais das inúmeras possibilidades de funcionamento das funções psicológicas superiores serão efetivamente concretizadas ao longo do desenvolvimento desse público escolar, quando em processo de ensino e aprendizagem sistematizados, movimento que poderá contribuir para o desenvolvimento de cada uma das pessoas partícipes dessa esfera de

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atividade humana. Para Vigostki (2000a), “O movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento infantil não se realiza do individual para o socializado, mas do social para o individual” (VIGOTSKI, 2000a, p. 67).

Neste trabalho, compreendemos a criança como ser social, que partilha experiências de diferentes naturezas com o outro (relação dialógica) e, ao mesmo tempo, destacamos a linguagem como fenômeno que ocupa lugar de preponderância no processo de constituição do ser humano como ser social. Tanto para Bakhtin quanto para Vigotski, a linguagem não apenas é um meio pelo qual os signos circulam, mas também o elemento mediador entre a criança e o outro, entre a criança e o mundo que a cerca. Em última instância, o meio pelo qual a criança se situa no mundo.

Para compreender como se processa o desenvolvimento do conhecimento das crianças do segundo ano do ensino fundamental em situação escolar, avançaremos para o debate sobre aprendizagem, na escola e fora dela, na próxima seção.

3.2 RELAÇÃO APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NA