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2 O ENFOQUE HISTÓRICO-CULTURAL E A

2.5 AS ESFERAS SOCIAIS E A TEORIA DOS GÊNEROS DO

SOBRE ESCRITA

Neste trabalho nos propomos a discutir o discurso escrito pelo que lhe é próprio como conhecimento humano e sua relação com outros discursos como o das ciências no campo do ensino (relação entre ensino da escrita e o discurso científico na escola). Para esta reflexão, valemo-nos, como nas demais aqui levadas a efeito, de estudos de Bakhtin e demais autores do seu Círculo. Destacamos, então, um conceito caro a Bakhtin (2011b) que é o de esfera social, o qual nos poderá auxiliar na compreensão de como o discurso nominado como científico e a aprendizagem da escrita na esfera escolar valoram sentidos sobre a compreensão do sujeito-criança no encontro de campos da cultura humana, ou seja, a ciência, a arte e a vida.

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana (BAKTHIN, 2011b, 261).

A noção de esfera é concebida como um nível específico de domínio linguístico, delimitado pelos tipos de signos, sem desconsiderar a influência socioeconômica e as produções ideológicas, segundo a lógica particular de cada esfera da atividade humana, como a arte, a ciência, a religião, etc. Afirma Bakhtin (Volochínov):

No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da

vida social. É seu caráter semiótico que coloca

todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral (BAKHTIN (VOLOCHINOV),

2010, p. 33, grifos do autor).

Mesmo pertencendo todos os enunciados à esfera ideológica, dado seu caráter semiótico, há um vínculo entre a construção do enunciado, produto da interação verbal entre locutores, e a situação social, que corresponde a um tipo específico de intercâmbio comunicativo social: religioso, artístico, escolar, científico, da vida cotidiana etc. Aos diferentes tipos de intercâmbio social correspondem diferentes tipos de enunciados e as condições sociais de produção linguística na atividade humana vão estabilizando tipos de enunciados, mas como atividade humana, essa estabilidade é relativa. Para Bakhtin (2011b),

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional - estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros

do discurso (BAKHTIN, 2011b, p. 261-

262, grifos do autor).

À medida que se complexifica determinado campo, conforme a variedade da atividade humana, os gêneros se diversificam (BAKHTIN, 2011b). As condições específicas e as finalidades de

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determinando campo da comunicação são, sobretudo, sócio- ideológicos, fazendo com que os gêneros de discurso sejam tipos relativamente estáveis de comunicação humana.

Cada esfera possui suas possibilidades de produção de gêneros do discurso e não podemos desejar encontrar o que é próprio de uma esfera, em outra; podemos, isso sim, reconhecer em certas produções escritas de uma esfera, elementos de outra (e vice-versa). Bakhtin (2011b) afirma, conforme apontamos, que o estilo pode ser entendido como a seleção dos recursos linguísticos com base nas possibilidades da língua. Fiad (2007), utilizando-se dessa afirmação, ressalta que o estilo – forma individual pela qual o sujeito constrói o enunciado - não pode estudado independente do gênero do discurso ao qual ele está vinculado. E, de forma mais complexa, aos gêneros pertencentes a uma determinada esfera da atividade humana. Sendo assim, ao pensar o texto individual ou a fala de um aluno, em um contexto em que circulam enunciados da esfera escolar e da esfera da ciência, podemos afirmar que “tanto a escolha dos gêneros como a escolha do estilo do enunciado (ou seja, os recursos lingüísticos) são decorrentes da assunção de que cada enunciado tem autor e destinatário” (FIAD, 2007, p. 157).

Assinala Bakhtin (2011b):

Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva [...] (BAKHTIN, 2011b, p. 266).

O uso de determinados recursos linguísticos pelo sujeito em seus enunciados orais e escritos só é possível na relação de interlocução com os participantes da comunidade discursiva. Reafirmando Bakhtin (2011b), ressaltamos que os recursos (gramaticais, lexicais, coesivos) utilizados para a escrita, em especial,

são elementos da unidade gênero do discurso. Gênero do discurso sendo compreendido como construção sócio-histórica das atividades humanas, em suas esferas específicas. O enunciado só pode ser compreendido nas relações dialógicas em que ele foi produzido. Quando estabelecidos socialmente, devido a sua utilização em situações de interação, os enunciados passam a influenciar o uso dos gêneros discursivos a serem proferidos, que utilizam recursos da língua para comporem um estilo. Conforme afirma Bakhtin, “A concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre um determinado gênero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso. [...]. Os gêneros escolhidos nos sugerem os tipos e seus vínculos composicionais ” (BAKHTIN, 2011b, p. 286).

Souza (2002), interpretando o Círculo, considera que o conceito de gênero interage também com o problema da consciência, pois é por meio dos gêneros discursivos (modelos ideológicos) que o sujeito percebe e conceitua a realidade. Para fundamentar sua argumentação, o autor cita Bakhtin: “são as formas do enunciado e não as formas da língua que têm o papel mais importante na consciência e na compreensão da realidade” (BAKHTIN, 1991, apud SOUZA, 2002, p. 99). Souza (2002) segue afirmando que, para o Círculo, os gêneros do discurso e a língua materna são anteriores à aquisição dos recursos linguísticos da língua padrão – seja ela qual língua for – “compreendendo a gramática como fruto do pensamento abstrato” (SOUZA, 2002, p. 107). Nas palavras de Bakhtin, “a língua materna [...] não apreendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam[...]” (BAKHTIN, 1991, apud SOUZA, 2002, p. 107).

A consciência do indivíduo é uma consciência com dimensão coletiva, formada, sobretudo, sobre os signos ideológicos do enunciado concreto, existentes em cada gênero de discurso, no processo de uso social da linguagem. Essas ideias nos apontam um caminho em que os movimentos da língua (enunciados concretos), em seu uso social, insinuam-se, a todo tempo, naquilo que é o uso da língua na consciência do sujeito. Da mesma forma, o que é próprio da consciência do sujeito se insinua nos gêneros utilizados por ele na constituição dialógica do seu enunciado concreto. Tais movimentos da língua, perpassam pela consciência do sujeito no decorrer do processo de aquisição da língua materna, em que o eixo é o enunciado

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concreto e os gêneros dele derivados, em cada comunidade discursiva. Faraco (2001b), refletindo sobre os estudos de Bakhtin, afirma que para este último

a consciência individual se constrói na interação e o mundo da cultura tem primazia sobre a consciência individual, a qual é entendida como tendo uma realidade semiótica constituída dialogicamente (porque o signo é, antes de tudo, social) e se manifestando semioticamente, isto é, produzindo o texto e o fazendo no contexto da dinâmica histórica da comunicação num duplo movimento: como réplica ao já-dito e também como condicionante da réplica ainda não-dita, mas solicitada e prevista, já que Bakhtin entende o mundo da cultura como um grande e infinito diálogo (FARACO, 2001b, p. 32).

Colocando essa última afirmação em diálogo com a teoria de Vigotski (2000a), a respeito da relação pensamento e linguagem, vemos que a manifestação semiótica (por signos) também é a base para transformação e reestruturação do pensamento ao longo do desenvolvimento da criança. Vigotski não chega a utilizar o termo “consciência”, nessa etapa de sua obra, mas prefere investigar os movimentos da linguagem interior (VIGOTSKI, 2000a). Mesmo assim, acreditamos que os autores aproximam-se quando destacam o papel da linguagem – como signo ideológico, cultural e histórico – na compreensão da realidade concreta. Vigotski (2000a) afirma que a palavra é o microcosmo da consciência humana, e que situação social dos participantes de uma relação de linguagem interfere na atividade mental, no pensamento.

Como afirma Bakhtin (Volochínov) (2010, p. 117), “O grau de consciência, de acabamento verbal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social. ”. Pela palavra podemos compreender como se dá o movimento dialético da atividade mental existente entre pensamento (consciência) e uso social da linguagem e igualmente por via da orientação social concebemos as formas de pensamento que constituem o nosso discurso interior. Como vimos, Vigotski (2000a) preocupa-se em determinar as diferentes formas de pensamento da criança ao longo de seu desenvolvimento e alinha-se com Bakhtin (Volochínov) (2010) na

tentativa de compreender como o uso social da linguagem (oral e escrita) influencia e modifica as formas do pensamento, da consciência humana.

Bakhtin (2011b), sobre a relação dos gêneros com o sujeito expressivo e falante, esclarece:

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil, a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso (BAKHTIN, 2011b, p. 285).

Bakhtin (2011b), para dar conta do problema dos gêneros do discurso, distingue os gêneros primários e os gêneros secundários. Os gêneros primários são formulados na relação imediata das situações sócio-interacionais produzidas no cotidiano; os gêneros secundários são formulados em situações de comunicação cultural mais complexas (como nas esferas científica, artística, jurídica, entre outras). É o caso, por exemplo, dos gêneros científicos, que incorporam diversos gêneros de caráter primário. Estes, quando se tornam elementos de um gênero científico específico, adaptam-se dentro dele, como acontecimentos da esfera da ciência e não como intercâmbio comunicativo social específico da esfera da vida cotidiana. Podemos então afirmar que os gêneros secundários, em seu processo de formação, incorporam e reelaboram os gêneros primários (BAKHTIN, 2011b). Quando se integram aos secundários, os gêneros primários perdem o vínculo com a realidade concreta (do cotidiano da vida). Há entre gêneros primários e secundários constante relação, estabelecendo influência muito forte sobre o próprio funcionamento dos gêneros primários.

Essa diferenciação entre gêneros primários e secundários está ligada à relação entre linguagem e ideologia (RODRIGUES, 2001). Bakhtin (Volochínov) (2010) argumenta que os sistemas ideológicos (a ciência, a arte, a religião, etc.), advindos do desenvolvimento econômico e social, surgem e se cristalizam gradualmente com base na ideologia do cotidiano e, uma vez estabilizados, como retorno, influenciam e dão o tom a essa ideologia do cotidiano. Em contrapartida, os produtos ideológicos dos sistemas especializados

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necessitam, para sua existência, da relação constitutiva com a ideologia do cotidiano. Bakhtin (Volochínov) (2010) assevera que

esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; alimentam- se de sua seiva, pois, fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a obra literária acabada ou a idéia cognitiva se não submetidas a uma avaliação crítica viva. Ora, essa avaliação crítica, que é a única razão de ser de toda produção ideológica, opera-se na língua da ideologia do cotidiano. Esta coloca a obra numa situação social determinada. A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência que lhe é contemporânea (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2010, p. 123). De acordo com o conceito de esfera social de Bakhtin (2011b; 2010), podemos afirmar que, numa pesquisa acerca da constituição dos enunciados, são necessários tanto a observação da natureza verbal (linguística) comum dos enunciados quanto um estudo histórico da formação dos gêneros, e de seus produtos ideológicos, segundo as diferentes esferas da atividade humana, pois cada uma possui e reconhece seus próprios gêneros.

2.6 A QUESTÃO DOS GÊNEROS NA RELAÇÃO ESFERA ESCOLAR