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4 A ESCRITA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO

4.4 O DISCURSO DAS CIÊNCIAS NA

Cada esfera social possui suas possibilidades de produção de gêneros do discurso, ou seja, uma configuração textual, estilística e temática (BAKHTIN, 2011b). A esfera social da ciência produz, portanto, formas particulares de gêneros do discurso, muitos deles destinados ao ensino e para o ensino, tendo assim espaço na esfera escolar. Este é o tema que abordaremos nesta seção.

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Embora Bakhtin e seu Círculo, na abordagem sobre os gêneros do discurso, não tenham focalizado diretamente o discurso escolar, tentaremos aqui analisá-lo, procurando dar-lhe amplitude, focalizando as relações com ele implicadas no contexto da ciência e da cultura, o que permite abarcá-lo como prática social, e não somente escolar. Assim, poderemos compreender os problemas, conflitos, soluções, conclusões pelas quais as crianças produzem sua escrita. No que diz respeito às formulações desses teóricos sobre o discurso das ciências, optamos por destacar este trecho de Bakhtin:

Nenhuma corrente científica (nem charlatona) [...] é total, e nenhuma corrente se manteve em sua forma original e imutável. Não houve uma única época na ciência em que tenha existido apenas uma única corrente (embora quase sempre tenha existido uma corrente dominante). Não se pode falar em ecletismo: a fusão de todas as correntes em uma única seria mortal para a ciência (se a ciência fosse mortal). Quanto mais demarcação, melhor, só que demarcações benevolentes. Sem brigas na linha de demarcação. Cooperação. Existência de zonas fronteiriças (nestas costumam surgir novas correntes e disciplinas) (BAKHTIN, 2011b, p. 372).

Ao destacar que nenhuma corrente se manteve original e imutável, o autor nos leva ao entendimento da cooperação e da existência de zonas fronteiriças entre as correntes da ciência. Direcionar nossa análise pela perspectiva de zonas fronteiriças nos parece congruente, uma vez que o foco são as relações existentes entre o discurso das ciências e o discurso escolar (institucional, didático, pedagógico).

O conceito de zonas fronteiriças nos parece pertinente também para analisarmos os gêneros do discurso na esfera escolar. Isso porque os gêneros do discurso considerados secundários, como os da esfera da ciência, que surgem nas condições de um convívio social complexo e relativamente organizado, incorporam e reelaboram os gêneros primários formados na possibilidade da comunicação discursiva imediata (vida cotidiana) (BAKHTIN, 2011b). Os enunciados das ciências dialogam, por um lado, com os gêneros relativamente estáveis dessa esfera social e, por outro, com o que é

vivido e produzido no universo social escolar. Trata-se, portanto, de uma particularização do uso dos gêneros do discurso das ciências, que é o realizado na escola. Salientamos que a escola e os gêneros produzidos na esfera escolar são da ordem de um cotidiano institucional, diferenciando-se daquilo que Bakhtin (2011a) diz ser a palavra na vida. Uma realização discursiva na escola, dialogicamente, é vida, mas está impregnada daquilo que é mediatizado, objetivado e pensado para o ensino. Surge daí uma relação dialógica cuja análise parece ser possível somente com base na ideia da existência de zonas fronteiriças e de cooperação.

Alguns intérpretes da corrente sócio-histórica têm contribuído para aprofundar as reflexões em torno das particularidades do discurso escolar. Grillo (2008) argumenta que a cultura científica é importante, tendo em vista que

insere a ciência no conjunto das manifestações culturais de uma sociedade, o que implica a sua incorporação em práticas situadas sócio- historicamente, o seu diálogo com outros produtos culturais, bem como a sua assimilação dialógica crítica entre os valores culturais dos cidadãos. Esses aspectos contemplam a abordagem de Bakhtin/Volochinov sobre a relação entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos (GRILLO, 2008, p. 69).

A tese de Grillo (2008) é que nesse processo diálogo entre as práticas sociais produzidas no campo das ciências com outros produtos culturais possibilita ao discurso científico ser colocado em contato com “diferentes esferas de produção de saberes, compostas por centros valorativos próprios, por seus gêneros, por suas imagens” (GRILLO, 2008, p.69). Tomaremos a ideia da autora para estender nossa reflexão sobre o espaço do discurso das ciências na escola, entendendo-a como uma esfera de produção de saberes, com sistemas ideológicos próprios e que recebe a inserção da cultura das ciências, nas diversas áreas que a compõem (humanas, físicas, biológicas, etc.), como também nas formas didáticas destinadas ao ensino. Esse contato entre a esfera escolar e seus respectivos gêneros do discurso poderá contribuir para a avaliação dos saberes científicos no que Bakhtin (Volochínov) (2010) defende como sendo a avaliação crítica viva da língua, no que é elo vivo com a ideologia do cotidiano, com o horizonte social por onde a língua viva se materializa. Conforme

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argumento do autor, aqui já exposto e reiterado, é somente a análise do texto entendido como enunciado concreto que fará possível a compreensão dos sentidos produzidos pelas crianças na escrita.

Na tentativa de compreender as zonas fronteiriças entre escola e ciência trazemos as reflexões de Rojo (2008) sobre a apropriação dos gêneros de discurso na escola. A autora destaca que

a) os discursos primários, isto é, aqueles que os cientistas escrevem para seus colegas e que falam sem reservas a linguagem das ciências, publicados nas revistas especializadas e falados nas conferências; b) os discursos de divulgação

científica, com diferentes níveis de especialização, destinados a leitores mais ou menos especializados, escritos por cientistas com a intenção de atingir público mais amplo, ou por jornalistas especializados em jornalismo científico; c) os discursos didáticos, que mais que divulgar achados científicos, destinam-se a ensinar os alunos certos conteúdos científicos; são escritos, em geral, por professores e seu leitor-modelo é um estudante; por isso, o texto inclui um número maior de explicações, além de exercícios para assimilação, revisão, avaliação (ROJO, 2008, p. 609).

Os aspectos salientados em cada esfera de produção de textos (escritos) da ciência contribuem para a compreensão da forma (geral) como os gêneros do discurso das ciências foram constituídos na história e no uso social da atividade científica na escola ou fora dela. Um ponto relevante da síntese realizada por Rojo (2008), acima, é que os gêneros do discurso das ciências acabam por transformar-se em outros discursos, como o jornalístico, o informativo ou o didático, na relação que estabelecem com outras esferas sociais (jornalística; educacional). Além disso, segundo Rojo (2008) no que diz respeito a estudo do gênero dos textos de divulgação científica, estes vêm incorporando outras linguagens para além da verbal. A autora destaca que os gêneros do discurso da esfera das ciências vêm valendo-se, cada vez mais, de elementos visuais – diagramação da página, presença de boxes, legendas, destaques ou ilustrações – trazendo informações paratextuais ao texto principal. Além disso, novas informações podem ser trazidas por meio de gráficos ou infográficos, com meios que esquematizam o que é problematizado no texto

principal (ROJO, 2008). O estilo do gênero do discurso das ciências é trazido como ponto a ser considerado, na interpretação da autora, pois

Verbetes (definições), (fragmentos de) artigos, reportagens e notas de divulgação científica compõem boa parte dos textos que integram as práticas/eventos de letramento escolar seja nos manuais didáticos, nos paradidáticos, nas obras de referência (atlas, gramáticas, dicionários, enciclopédias), ou nos materiais de pesquisa presentes em veículos e suportes variados, impressos e digitais, tais como revistas, seções de jornais, revistas on-line, sites e portais, dentre outros (ROJO, 2008, p. 596).

Rojo (2008), analisando livros didáticos de língua portuguesa, bem como coleções aprovadas no PNLD/2005 – Programa Nacional do Livro Didático, observou que os textos do discurso das ciências “circulam nas salas de aula e são apropriados pelos alunos numa [...] situação não reflexiva de uso para outras finalidades, em geral ligadas à construção dos conhecimentos e conceitos disciplinares. Em outros termos, como ferramentas para o ensino de outros conteúdos. ” (ROJO, 2008, p.599). Na opinião da autora, uma recepção crítica do discurso das ciências na escola, passa pelo estudo da história e constituição dos enunciados desses gêneros, bem como seus temas, estilos e formas.

Em uma perspectiva bakhtiniana quanto a estudos do discurso, poderíamos afirmar que uma recepção crítica do discurso das ciências na escola poderia prever a compreensão das condições de recepção e produção dessas produções na esfera escolar e potencializar as reflexões no que diz respeito à possibilidade de um sistema ideológico tão complexo o das ciências, poder inserir-se, dialogicamente, no cotidiano escolar, facultando a avaliação crítica viva da língua em suas diferentes manifestações.

Para Bakhtin (2011b), a capacidade de compreender um gênero de discurso determinado pressupõe compreender a atividade humana que o gera, sendo o discurso da ciência uma forma de produzir interlocuções com o outro e produzir sentidos (temas), com e pela linguagem. No próximo capítulo, delinearemos o percurso metodológico de nossa investigação, com um olhar específico ao

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nosso campo de pesquisa e com a apresentação das nossas categorias de análise para esta investigação.