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Capítulo 1 – Enquadramento Teórico

1.1. Inteligência Que Inteligência(s)? – Um olhar diacrónico sobre a concetualização das

1.1.3. Algumas considerações conclusivas e uma escolha!

“Conhecimento”, “sabedoria”, “cultura”, “raciocínio” e “facilidades” – foram estas as palavras-chave destacadas pelos alunos de uma das turmas do 11.º ano da Escola Secundária Dr. Joaquim Gomes Ferreira Alves, quando, numa aula em que se iria apresentar o tema do presente relatório de estágio, se procurou aferir os conhecimentos prévios dos estudantes em relação ao conceito de Inteligência. O resultado acabou por não ser surpreendente, na medida em que parece não fugir muito ao senso comum – a

Inteligência é vista como estando intrinsecamente relacionada com o saber, saber muito...

(daí a escolha de “conhecimento”, “sabedoria” e “cultura”, esta última ligada, também, ao domínio de aspetos relevantes no contexto da sociedade em que o sujeito se insere), e com o raciocínio lógico. Surgiu, ainda, o termo “facilidades”, o que demonstra que os alunos olham para a Inteligência como algo natural, inato, assumindo que as matérias e os problemas que têm que solucionar acabam por ser de resolução mais fácil para quem teve a sorte de nascer com uma quantidade superior de capacidade intelectual. É certo que nem todos os estudantes concordaram com esta última consideração (Locke acaba por deixar sempre a sua marca em alguém), mas a grande maioria da turma reviu-se nesta assunção. Dá vontade de perguntar: “quem tem alunos, para que precisa de filósofos?”

De facto, os jovens estudantes do 11.º ano conseguiram, num diálogo horizontal de cerca de 10 minutos, cobrir grande parte do que as discussões sobre a Inteligência trouxeram para cima da mesa em séculos de Filosofia. Isto demonstra a força das ideias dos filósofos gregos (e, também, dos das Luzes), que continuam a marcar toda a estrutura do conhecimento ocidental – a ideia de Inteligência como capacidade intelectual relacionada com o raciocínio lógico-matemático e com o saber enciclopédico ainda vigorará. Depois, a questão da hereditariedade e da biologia também foi abordada, com o sublinhar do peso do inatismo – as diferenças individuais em termos intelectuais são,

entre os filósofos, como referido anteriormente, especialmente no que concerne ao debate entre racionalistas e empiristas.

Procurando outro tipo de fonte que pudesse elucidar-nos em relação ao conceito de

Inteligência, achou-se por bem usar um dicionário. Assim, de acordo com o Dicionário

de Língua Portuguesa (2016), Inteligência é o “conjunto de todas as funções mentais que têm por objetivo o conhecimento; [a] capacidade de aprender e compreender, aplicando corretamente os conhecimentos; [a] capacidade de perceber; perspicácia” (p. 452). A

Inteligência é, então, associada ao objetivo de adquirir ou alcançar o conhecimento (nada

de novo, portanto), e definida como o conjunto das funções da mente utilizadas para esse fim. Depois, são destacadas capacidades, como as de “aprender”, “compreender”, “aplicar conhecimento” e “perceber” (serão estas as tais “funções mentais”?) – todas elas relacionadas, uma vez mais, com o conhecimento, e todas elas alusivas a uma espécie de saber académico/escolar. Por fim, a “perspicácia” poderá ter que ver com uma certa velocidade de perceção/raciocínio, algo também valorizado pelos gregos antigos (e pelos “testes de inteligência” atuais...). Ou seja, no dicionário nada de novo... Reconhecendo a relevância fulcral dos filósofos, que têm funcionado como a base de grande parte do nosso saber, dá vontade de fazer uma pergunta: “quem tem alunos (e filósofos), para que precisa de dicionários?”

Como o dicionário básico não nos levou além do senso comum, optou-se por procurar uma definição mais completa num dicionário de Psicologia. Seria aí que, teoricamente, o conceito estaria explanado de forma mais completa em termos científicos. Então, segundo Dicionário de Psicologia de Cambridge, a Inteligência consistiria em:

Um conjunto de habilidades com a função de promover uma melhor adaptação ao ambiente através da experiência. A natureza dessas habilidades é muito debatida em psicologia. A maioria dos testes de inteligência incluem habilidades verbais, raciocínio quantitativo, capacidade de memória e resolução de problemas. A teoria de Sternberg propõe a existência de três tipos de inteligência: inteligência analítica, que nos ajuda nas matérias académicas; um aspeto criativo, que está relacionado com o lidar com a novidade e com o raciocínio indutivo; e um aspeto prático, que está relacionado com a adaptação às exigências do dia-a-dia. (Matsumoto, 2009, pp. 259-260)

um pouco das anteriores. Apesar de, tal como o dicionário básico de Língua Portuguesa, definir Inteligência como um conjunto de habilidades (não é descabido considerar essas habilidades como se tratando de “funções mentais” – ou de resultados destas -, embora tal não esteja especificado), o dicionário de Psicologia coloca como objetivo a adaptação ao meio, e não a aquisição de conhecimento. Deste modo, a conceção de Inteligência fica potencialmente aberta a um campo mais alargado de qualidades, sendo estas, desde logo, relacionadas com aspetos da vida prática – não se reduzindo a mesma ao saber mais académico. Outro aspeto relevante é a valorização da experiência como potenciadora do desenvolvimento dessas mesmas habilidades. Ou seja, seria através da experiência que essas habilidades seriam otimizadas. Nota-se, então, uma certa opção “ideológica”, depreendendo-se alguma influência da corrente desenvolvimentista (talvez, especialmente de Vygotsky). No entanto, essa opção “ideológica” acaba por ser, de seguida, relativizada, na medida em que se admite, ainda que de forma subliminar, o papel da hereditariedade, quando se sublinha a falta de consenso entre os psicólogos no concernente à natureza dessas habilidades. Com isto, procura-se não se excluir de forma definitiva qualquer corrente, ao mesmo tempo que se demonstra a complexidade da definição e do debate. Para concretizar este aspeto dão-se dois exemplos aparentemente contraditórios: o dos “testes de inteligência”, relacionados com a redutora (no sentido de cingir a Inteligência a um fator geral, ou muito perto disso) corrente Psicométrica, e intrinsecamente ligados a uma valorização do inatismo (vide Gardner et al., 1996/2003; Deary, 2001/2006); e a abrangente teoria Triárquica da Inteligência de Sternberg – que, talvez, seja a que consegue conjugar de forma mais significativa os mais diversos estudos realizados ao longo do século XX (vide Almeida et al., 2009) e que considera aspetos biológicos/hereditários, criativos, práticos e experienciais. Ou seja, o Dicionário de Psicologia de Cambridge tentou valorizar o papel da adaptação ao meio e da experiência, evitando, porém, excluir qualquer outro tipo de aproximação ao tema. Acabou por dar uma explicação relativamente abrangente, demonstrando algumas perspetivas divergentes.

Depois de efetuada uma análise sintética relativamente às principais correntes e ideias que se têm desenvolvido (especialmente ao longo do século XX) no campo das

capacidades intelectuais, é possível denotar algo que parece inegável: apesar de toda a evolução no campo da ciência, a conceção de Inteligência não deixa de ser uma questão vincadamente filosófica e cuja subjetividade tenderá a prevalecer. Tendo isto presente, torna-se necessário justificar a escolha da teoria das IM, de Gardner, para servir como base do trabalho a realizar durante o Estágio de Iniciação à Prática Profissional. Nesse sentido, far-se-á uma aproximação a cada uma das principais correntes abordadas.

A corrente Psicométrica demonstrou um potencial incontestável no sentido de predizer o sucesso académico/escolar dos indivíduos (Deary, 2001/2006; Gardner et al., 1996/2003; Almeida et al., 2009), além de demonstrar, de forma substancial, que quem apresenta melhores resultados nos “testes de inteligência” em termos gerais, também demonstra resultados mais elevados em aspetos mais específicos (Deary, 2001/2006; Gardner et al, 1996/2003). Para além disso, os psicométricos tendem a considerar que o QI dos indivíduos mantém-se, por norma, praticamente inalterado ao longo dos anos, o que acentua, para estes, a ideia de que a Inteligência teria por base um fator geral, de caráter inato. Apesar de tudo isto, a noção que esta corrente tem de Inteligência parece algo redutora, tendo em conta todo o alcance das capacidades mentais humanas.

Primeiro, pode-se defender que é natural que os “testes de inteligência” prevejam de forma acertada o sucesso escolar, na medida em que, como se viu anteriormente, tanto os “testes de inteligência”, como o que é requerido em contexto escolar, têm muito por base aquilo que os gregos antigos definiam como matérias-chave que estariam na base do conhecimento – raciocínio lógico, capacidade de abstração na matemática e na linguagem, geometria (relacionada, além da matemática, com uma certa capacidade espacial) e saber enciclopédico (que promove a capacidade de memória). Ou seja, tanto os “testes de inteligência”, como o saber escolar, reportam-se, sobretudo, a capacidades lógico-matemáticas, linguísticas, de memorização e, em menor medida, espaciais (Gardner et al., 1996/2003; Gardner 1983/2002).

No entanto, nada nos dizem sobre a capacidade de se tomarem decisões acertadas em momentos de grande pressão/tensão/fragilidade, como fez Gandhi quando realizou a “Marcha do Sal”; ou sobre a capacidade de se compor uma obra musical como a Sinfonia

como A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix. Contudo, poucas ações marcaram tanto o destino de uma civilização como a de Gandhi, poucas palavras (se algumas...) conseguiram expressar de forma tão completa o novo tipo de idealismo humano que se ia desenvolvendo na entrada do século XIX como a música de Beethoven, e nenhuma equação poderia, algum dia, demonstrar o espírito que esteve por trás da Revolução de julho de 1830, em Paris, como a obra de Delacroix. Estas realizações não são mensuráveis em testes de QI, e também não são medidas nos testes da escola tradicional – no entanto, não são demonstrações de inteligência? Não são exemplos de exercícios de um domínio superior das capacidades mentais humanas?

Em acréscimo, e como Jencks (1972) notou, apesar dos testes de QI predizerem o êxito escolar de forma significativa, nada nos dizem relativamente ao sucesso numa determinada profissão depois da escolaridade (citado em Gardner, 1993/2011).

Depois, a correlação existente entre resultados elevados em testes de QI e resultados elevados em aspetos mais específicos pode-se justificar, como defende Gardner (1983/2002), com a própria natureza dos testes, pois as respostas não deixam de apelar ao mesmo tipo de exigências intelectuais. Por exemplo, responder a questões de escolha múltipla tendo por base uma série de rotações geométricas não é o mesmo que colocar um indivíduo a percorrer um ambiente desconhecido, de modo a medir a acuidade espacial (Gardner, 1983/2002).

Finalmente, o facto do QI individual se manter praticamente inalterado ao longo dos anos pode ter que ver com o facto da natureza e tipologia dos “testes de inteligência” se manter, também, inalterada ao longo do tempo (apelando, sempre, ao mesmo tipo de habilidades).

No entanto, os psicométricos acabaram por demonstrar que há algo na Inteligência que é inato – apesar desta não se poder reduzir ao inatismo. Como sublinhou Gardner et al. (1996/2003), “a questão não é ‘biologia versus cultura’ ou ‘hereditariedade versus meio ambiente’, e sim como pensar melhor sobre a interação dos dados de cada par” (p. 172).

Os desenvolvimentistas produziram trabalhos de relevo. Piaget, desde logo, pelo seu pioneirismo e por fazer conhecer melhor os processos de desenvolvimento cognitivo

desde o nascimento até à idade adulta. A sua influência, por exemplo, em termos de estruturação das aprendizagens a implementar de acordo com o grau de desenvolvimento dos alunos é inegável. Depois, Vygotsky, demonstrou o papel da cultura, dos símbolos e das relações sociais. No entanto, os desenvolvimentistas abordaram mais a aprendizagem e a evolução do desenvolvimento cognitivo do que a Inteligência em si, pelo que não fornecem uma explicação completa para a sua definição.

O mesmo acontece com as correntes Biológica e Cognitivista, que promoveram avanços enormes no estudo dos cérebros e das relações neurais, mas que dificilmente nos elucidarão acerca do conceito pretendido. Poderão demonstrar, descrever, explicar todo o processo, mas relativamente à sua concetualização dificilmente poderão dar respostas mais completas. Deverão funcionar, no entanto, sempre, como um suporte para essas respostas.

Por fim, resta abordar algumas teorias mais abrangentes que se têm destacado no panorama científico. De entre estas a teoria das IM parece ser a mais completa.

Em primeiro lugar, a ideia IE parece fazer todo o sentido (vide Damásio, 1994/2013). Porém, Inteligência não se limita a isso. E o mesmo em relação à IS. Ambas caberiam, de resto, muito bem nas IM de Gardner, dentro da Inteligência Intrapessoal e da Inteligência Interpessoal, por exemplo.

A teoria de Sternberg é, de facto, ampla e consistente, abarcando uma série de estudos e propostas anteriores num mesmo todo. No entanto, não é, ainda, totalmente certo que esse todo agrupado faça sentido junto. E não é evidente que a arrumação proposta por Sternberg tenha suporte real em termos de processos intelectuais (como é que se interligam os diferentes componentes?) – pode ser, apenas (o que já é bastante significativo), uma proposta coerente de organização/compartimentação de aptidões intelectuais humanas valorizadas/validadas anteriormente.

Já as IM definidas por Gardner parecem abarcar de forma coerente e integral as várias aptidões humanas que podem ser consideradas inteligentes. Não é por acaso a aceitação que a teoria teve no contexto educativo. Como Gardner referiu em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia, os pedagogos, e não os psicólogos, foram os primeiros a aderir às suas ideias, “porque comprovavam a cada dia nas suas aulas que as categorias

de idiota ou inteligente não cobrem a diversidade humana. E, portanto, os “testes de inteligência” não medem realmente as nossas capacidades, a não ser as de os resolver” (Amiguet & Gardner, 2016, resposta à pergunta 5). De facto, a teoria de Gardner parece ser a mais humana e a que cobre de forma mais significativa e consistente a conduta humana inteligente, observável em termos práticos. Ao longo do presente relatório se perceberá se a opção tomada por essa teoria fez ou não sentido.