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Capítulo 1 – Enquadramento Teórico

1.2. A Inteligência segundo Howard Gardner

1.2.4. Críticas à teoria das Inteligências Múltiplas

O tempo é absoluto, “constituído por uma sequência, tal como os números” (Newton, 1726, citado em Cordon & Calvo Martínez, 1995/2006, p. 351). Esta ideia parecia irrefutável (ou, mesmo, irrevogável), até que, em 1905, um tal de Albert Einstein veio virar do avesso os conceitos mais básicos da Física. Einstein, com a sua Relatividade

Restrita, disse-nos que o tempo, não só era relativo, como formaria, juntamente com o

espaço tridimensional, um sistema de coordenadas único de quatro dimensões, designado “espaço-tempo” – e que quanto mais rápido nos deslocássemos no espaço, mais lentamente nos deslocaríamos no tempo, e vice-versa. Entretanto, Einstein não ficou por aqui: dez anos mais tarde, abalaria as convicções tradicionais sobre a gravidade (Newton tinha explicado de forma perfeita as suas forças, baseadas na atração, mas não conseguiu

deformações/curvaturas no “espaço-tempo” provocadas pelo movimento de grandes massas. Ou seja, o espaço e o tempo não só não eram absolutos, como poderiam ser moldáveis, segundo a Relatividade Geral do físico alemão. Rapidamente, vários físicos contestaram as teorias de Einstein, especialmente os seus colegas alemães, mais conservadores e tradicionalistas, que chegaram a publicar, em 1931, o livro/manifesto

100 autores contra Einstein, onde criticavam e contrariavam as suas teses. O certo é que,

depois de ignorado durante alguns anos, Albert Einstein fora galardoado com o Nobel da

Física em 1921 - embora pelas suas descobertas relativas ao efeito fotoelétrico, e não pela Relatividade. No entanto, a sua Teoria da Relatividade funciona como base teórica da

cosmologia física até aos dias de hoje. Mas, como já dizia George Bernard Shaw (1917), “todas as grandes verdades começam por ser blasfémias” (citado em Ferreira, 2014, p. 126).

Também a teoria das IM, quando foi apresentada, em 1983, apesar do sucesso aparente entre pedagogos e educadores, esteve muito longe da “aclamação universal” dentro da Psicologia Cognitiva (o campo científico no qual a teoria se inseriria). Em linguagem crítica, pode-se dizer que a teoria teve uma recetividade “mista”, talvez, até, “tendencialmente negativa”, como notou Gardner (1993/2011), quando afirmou que “a minha teoria agradou a alguns psicólogos, um número um pouco superior não gostou, e a maioria ignorou-a” (p. 14). De facto, como um seu colega lhe terá confidenciado, “tentar mudar a definição que a psicologia tem da inteligência é como tentar mover lápides num cemitério” (Gardner, 1993/2011, p. 14.).

Foram efetuadas críticas à teoria das IM em termos concetuais/teóricos e em termos empíricos/de aplicação. Psicólogos como Scarr, Eysenck, Sternberg (referidos em Almeida, 2009) ou Deary (2001/2006) colocaram reparos quanto à forma como Gardner, na sua argumentação contra as teorias psicométricas, se referia aos testes de QI como sendo sinónimos do conceito tradicional de Inteligência. Estes autores afirmam que todos os psicólogos consideram que o QI não reflete o universo das capacidades humanas - mas não deixa de ser uma amostra de desempenho intelectual importante e útil para propósitos académicos e ocupacionais (Almeida, 2009; Deary 2001/2006; Gardner et al., 1996/2003). Todavia, é provável que o autor tenha utilizado esta espécie de sinédoque

para reforçar as críticas ao modelo tradicional de quantificação e metrificação da capacidade intelectual humana.

Outra crítica persistente prende-se com a forma abusiva como Gardner terá utilizado o termo Inteligência, referindo-se a aptidões específicas como sendo “Inteligências” (Almeida, 2009). Scarr (1985), afirma mesmo que a proposta de Gardner é “mais motivada por considerações sociais do que científicas” (citado em Gardner, et al., 1996/2003, p. 224), fazendo com que considere “Inteligências” habilidades que não se deveriam relacionar com a esfera cognitiva, como a Inteligência Corporal, que teria que ver com aptidões motoras, e a Inteligência Intrapessoal, que envolveria traços de personalidade (Deary, 2001/2006). No entanto, Gardner contra-argumenta, defendendo que o erro está em ter uma noção de capacidades intelectuais completamente redutora e ocidentalizada (Gardner et al., 1996/2003). Para o autor da teoria das IM, deve-se, isso sim, deixar de colocar as “Inteligências” Linguística e Lógico-matemática num pedestal, e olhar de forma mais completa e universal para as potencialidades mentais humanas. De resto, Howard Gardner afirma mesmo não atribuir qualquer valorização particular à palavra “inteligência”, valorizando, todavia, a “equivalência de diversas qualidades humanas” (Gardner, 1983/2002, p. 11). Ou seja, se os críticos chamassem “talentos” às capacidades linguística e lógico-matemática, Gardner não teria problemas em referir-se a “talentos múltiplos” (Gardner 1983/2002).

A questão da autonomia das “Inteligências” também foi colocada em causa. Críticos como Messick ou Scarr contestam essa mesma autonomia, na medida em que, como já referido, existem correlatos positivos significativos entre as diferentes “Inteligências” específicas nos testes de QI (referidos em Gardner et al., 1996/2003). O pai das IM não valoriza essa correlação, na medida em que defende, como já se explicou, que esses testes não são justos, visto que não são contextualizados com as “Inteligências” em questão. A defesa vincada da autonomia das “Inteligências” terá muito que ver com a demarcação que se quer acentuar em relação ao fator geral.

Subsistiram, ainda, dúvidas em relação à forma de coordenação das “Inteligências”, tidas como autónomas e independentes: se eram independentes, mas para responder a solicitações minimamente complexas utilizar-se-iam várias em simultâneo, como é que

seria efetivada essa coordenação de “Inteligências” - que processos? Que “agentes”?. Gardner, desde logo, recusou-se a traçar qualquer hierarquização ao nível intelectual, mas admitiu que, devido às suas características, a Inteligência Intrapessoal poderia ser responsável por essa coordenação. Sternberg (1994), depressa veio criticar essa proposta, referindo que a mesma “cheira um pouco ao fator geral” (citado em Gardner et al., 1996/2003, p.225).

A metodologia utilizada por Gardner para chegar às suas conclusões também foi alvo de reparos, na medida em que não se seguiu a metodologia científica tradicional, tendo o processo sido efetuado por demonstração (pegando nos estados finais) e não por experimentação (Gardner, 1993/2011; Almeida et al., 2009).

A própria conceção de Inteligência de Gardner não terá ficado clara para todos. Seria um produto, um processo, um conteúdo, um estilo ou tudo ao mesmo tempo? Gardner viria, depois, clarificar que considera a Inteligência um “potencial biopsicológico” (Gardner, 1996/2011, p. 63).

Em termos práticos/de aplicação também surgiram críticas, visto que o autor da

teoria das IM não ofereceu, à partida, qualquer tipo de programa claro para os educadores

implementarem a sua teoria nas escolas. Howard Gardner defendeu-se afirmando que as possibilidades de implementação são vastas e diversas, não havendo um caminho único a seguir (Gardner et al., 1996/2003).

De salientar, entretanto, que, embora a sua teoria não tenha encontrado total aceitação entre os seus pares, especialmente os mais tradicionalistas, o seu impacto na Educação, em particular, e nas Ciências Sociais e Humanas, no geral, é inegável. Tanto que Howard Gardner acabou por receber alguns reconhecimentos importantes, como o Prémio Príncipe das Astúrias para as Ciências Sociais, em 2011 – mas este devido ao seu trabalho no contexto das IM, e não por obra das suas considerações relativamente ao movimento estruturalista (que trabalhara anteriormente).