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II. Convenções nos mercados de títulos de dívida

2. O mercado de títulos de dívida em Brière

2.5 Algumas considerações

Os estudos de Brière colocam em destaque a existência de representações coletivas nos mercados, que têm papel crucial na formação das taxas de juros. Ela mostra que não há relações universais, justificadas com base em fundamentos, entre essas taxas e demais variáveis. Aceitar esse argumento envolve romper com a hipótese das expectativas racionais, que afirma existir um modelo verdadeiro, conhecido pelos participantes do mercado, que o preenchem com toda a informação disponível, chegando, assim, à taxa de equilíbrio, única e natural. A autora mostra como a observação dos mercados leva à percepção de que essa hipótese está longe de refletir a realidade.

O trabalho de Brière evidencia como a taxa resultante das interações entre participantes do mercado, economistas e banco central é convencional, no sentido sintetizado por Dequech (2011: 15), em parte com base em Keynes, que detalharemos na próxima seção: ela é arbitrária, porque uma alternativa não claramente inferior é concebível; e é seguida pelo menos em parte porque se espera que outros irão segui-la. No plano de fundo da adesão a essa convenção, está a incerteza sobre teorias, modelos e informações. A necessidade de ação e decisão nos compele a subestimar esse fato embaraçoso, como diria Keynes no QJE (1937: 214), e apelar para representações comuns ou convenções, que permitam a coordenação.

A autora considera que as representações coletivas não são heterorreferenciais, mas também não são criadas de forma autorreferencial exclusivamente nos mercados. Elas são influenciadas pelos bancos centrais e economistas. É o complexo formado por esses dois atores,

somados aos participantes dos mercados, que tem uma dinâmica autorreferencial, no sentido de que não há uma referência externa ao grupo que não possa ser afetada por ele, nesse caso, uma taxa natural. Para compreender essa dinâmica, Brière foca o mercado de títulos públicos e as influências dos outros atores sobre esse contexto.

Assim como Keynes, o que Brière trata como convencional, ou alvo de representações coletivas, é a taxa de juros de mercado, não a taxa definida pela autoridade monetária. Ela não tece considerações significativas sobre como a taxa básica se forma dentro dos bancos centrais. A autora cita rapidamente o movimento de mão dupla que pode existir entre visões de economistas e dos mercados, mas não entre a posição tomada pelo Banco Central sobre a taxa básica, que afeta todas as outras taxas, o mercado e os economistas. Apesar de Brière ressalvar que ele faz parte desse contexto e que não existe um valor natural para os juros, o banco central muitas vezes parece no trabalho da autora como um agente externo, uma caixa fechada, pouco influenciada pelo movimento dos outros. Como a decisão sobre a taxa básica insere-se nessa autorreferencialidade? Ainda que possa ter mais acesso a informações e experiência no contato com modelos e teorias, os bancos centrais também lidam com a incerteza e precisam enfrentá-la para tomar decisões. Será que eles também não buscam referências comuns, saliências, no mercado e nos economistas?

Consideramos importante destacar que os bancos centrais também não têm posse de um valor fundamental. Da mesma forma que o mercado, eles enfrentam um universo não necessariamente estacionário, uma grande variedade de teorias, modelos e informações ao tomarem decisões ou divulgarem previsões sobre o futuro. Brière confere muita importância aos economistas e ao banco central como maestros da orquestra, formada pelos participantes do mercado, muito bem explicada e destrinchada em seu livro. Ela não estuda, entretanto, o processo de formação das decisões e previsões da autoridade monetária.

No próximo capítulo, buscamos encontrar os traços convencionais da formação da taxa básica de juros brasileira. Neste trabalho não tratamos do mercado de títulos do país, que provavelmente está sujeito a uma dinâmica semelhante à apresentada pela autora, já que tem elementos e personagens muito próximos ao mercado estudado por ela. É possível que encontrássemos no país uma seleção de informações próxima à europeia, em que o Banco Central leva o mercado a priorizar os índices de inflação, deixando dados sobre crescimento e emprego, por exemplo, em segundo plano. Também aqui os artigos de economistas, editoriais e notícias

que antecedem a decisão sobre a taxa básica de juros parecem fazer o papel de previsões de consenso, vistas como a posição coletiva de uma entidade chamada mercado. Depois da decisão, assim como em Keynes, esses participantes também parecem reagir à diferença entre o dado divulgado e as previsões, seja qual for o patamar da taxa.

Vamos discutir a tese da convencionalidade para o caso da taxa básica de juros brasileira destacando o processo de formação da meta de juros dentro do Banco Central, incluindo seus membros tomadores de decisão e as influências externas a esse grupo. Esperamos que a incerteza, a falta de fundamentos claros e a busca da opinião alheia, salientados por Brière e Keynes, também ajudem a compreender a taxa brasileira.

Vamos ver que, no Brasil, o Banco Central não toma decisões apenas com base em seus cálculos e modelos, mas, de forma declarada, coleta diretamente a opinião do mercado financeiro, por meio da pesquisa Focus, e busca um consenso. Está aberto aí o caminho para uma via de mão dupla, que Brière considera poder existir entre visões de economistas e operadores de mercado. O estudo da existência de convenções, ou representações coletivas, no trabalho de economistas e Banco Central é especialmente importante no caso brasileiro, pelo papel que eles têm em legitimar e naturalizar a taxa básica em um patamar considerado por alguns autores como desproporcional com relação a outros países, como veremos. Ainda que o argumento da convencionalidade não seja suficiente para justificar esse nível, ele pode auxiliar nesse debate.

Buscamos mostrar, no próximo capítulo, por analogia com os trabalhos de Orléan, Brière e Keynes, que as decisões da autoridade monetária, pelo menos no caso brasileiro, também estão sujeitas a processos autorreferenciais, ao estilo do concurso de beleza keynesiano, e a representações coletivas sobre o funcionamento da economia. Consideramos que essa análise é primordial, ainda que como complemento ao trabalho de Brière, quando se considera o caso brasileiro.