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Como funcionam os mercados de títulos de dívida

II. Convenções nos mercados de títulos de dívida

2. O mercado de títulos de dívida em Brière

2.1 Como funcionam os mercados de títulos de dívida

Na primeira parte do livro de 2005, Brière apresenta teorias que pretendem explicar o mecanismo econômico da formação da taxa de juros. Ela ressalta que essas teorias são muito simples e tratam a taxa como se ela fosse única, sem considerar as diversas maturidades, por exemplo. Além disso, essas abordagens negligenciam completamente o fato de que hoje as taxas de juros são avaliadas nos mercados financeiros e que dependem largamente da política monetária manejada pelos bancos centrais (22).

Por fim, segundo Brière, os modelos tradicionais não resistem aos testes empíricos, de tal forma que, em diversas ocasiões, as taxas são muito diferentes dos níveis previstos pela teoria. A recorrência de fenômenos considerados anormais, em que as taxas desconectam-se

completamente dos fundamentos, como as fugas para qualidade de que já tratamos, leva Brière a considerar a necessidade de questionar os próprios modelos.

A autora dedica atenção a outros modelos de funcionamento da economia, dos mercados e da política monetária. São aqueles percebidos pelo conjunto de participantes como uma referência comum ao mercado, uma espécie de ponto focal, ou seja, as representações coletivas. A partir dessa referência, eles podem escolher adotá-la ou diferenciar-se. Essas representações, ao contrário dos modelos tradicionais, explicariam fenômenos de imitação generalizada nos mercados e previsões sistematicamente erradas.

Para compreender a formação dessas representações, é preciso entender a estrutura dos mercados de títulos de dívida. Não é apenas um, são muitos mercados independentes, com estruturas próprias e modos de funcionamento diferentes. Vamos nos ater ao mercado de títulos, que envolve obrigações, ou seja, títulos de crédito que materializam a dívida de um mutuário com relação ao credor que o detém e que podem ser livremente negociados nos mercados. Cada uma tem uma série de características como a duração do empréstimo, o valor nominal, o cronograma de reembolso, a categoria e a qualidade do emprestador. Os juros pagos em datas fixas pelo devedor, como remuneração pelo empréstimo, são chamados de cupons (2005: 24-25).

Os participantes mudam com a natureza do mercado de taxas considerado, mas consistem basicamente em participantes diretos, indiretos e o ambiente institucional. Entre os participantes diretos apresentados por Brière estão os gestores de carteira, responsáveis por portfólios de títulos que gerem em nome de clientes, assim como aqueles que investem os capitais dos bancos e instituições de crédito.

Os participantes indiretos são economistas e analistas financeiros, que formulam recomendações e análises do contexto econômico, disseminadas por meio dos investidores. A autora também identifica os economistas de conjuntura, empregados pelos bancos, instituições financeiras ou organismos independentes, que divulgam previsões sobre os principais dados econômicos e são seguidos de perto pelo mercado. Suas análises integram circulares dos bancos, são difundidas para clientes e para um público ainda maior por meio de noticiários financeiros, como a Bloomberg. Também estão nesse grupo os economistas de mercado, que traduzem a informação econômica que chega bruta ao mercado em previsões sobre a evolução do preço dos ativos (2005: 30).

Há, por fim, o importante ambiente institucional, formado pelas instâncias de regulação, que organizam e fiscalizam o funcionamento do mercado. Fazem parte dele as agências de classificação de risco, que avaliam a capacidade de um emissor arcar com a dívida. Suas notas são muito usadas pelo mercado de títulos. Incluem-se também nesse grupo os bancos centrais, que fornecem liquidez aos bancos comerciais e intervêm diretamente no mercado por meio de operações de mercado aberto, que envolvem compra e venda de títulos. Eles controlam as taxas de curto prazo, que condicionam a evolução das taxas para prazos mais longos (2005: 56).

Apresentados os participantes dos mercados de títulos de dívida, Brière procura responder, com base em observações e entrevistas, à seguinte questão: como tomar uma decisão de investimento? Ela destaca três aspectos do contexto vivido pelos investidores: a complexidade do ambiente, a multiplicidade de estratégias disponíveis e a importância da opinião dos outros. A cada dia, os investidores recebem informações diversas, que chegam por meio das agências de notícias, como Bloomberg e Reuters, jornais e telefones. Há ainda contatos permanentes com outros participantes do mercado. Os dados recebidos são sobre cada ativo, mas também a respeito do ambiente econômico e político. Um grande número de indicadores econômicos é divulgado de forma regular, com data e horário marcados, além das previsões dos economistas. De acordo com a autora, há uma reação quase imediata às novidades, em função da distância entre o dado anunciado e a previsão consensual (2005: 38).

Os participantes também monitoram as decisões de política monetária, como anúncios de taxas de juros e discursos de autoridades do Banco Central, que lhes permitem antecipar as decisões futuras e fornecem informações sobre os indicadores econômicos seguidos pela autoridade monetária, o que Brière mostra depois ter grande efeito sobre o mercado. A autora também identifica numerosos constrangimentos a que os investidores estão submetidos, como regras de funcionamento e limites de risco e perdas. Cálculos avançados para avaliar os ativos também fazem parte desse ambiente complexo. Para resolvê-los, os participantes usam ferramentas de informática que permitem processar muitas informações rapidamente (2005: 40).

Outro aspecto dos mercados de taxas, identificado por Brière em observação dos mercados entre 1998 e 2001, é a variedade de estratégias de investimento. Os investidores podem, por exemplo, recorrer a gráficos e supor que se pode deduzir a evolução futura a partir da história dos preços. Uma alternativa é estipular que os preços dos ativos tendem no longo prazo para um valor fundamental. Outra opção ainda é reagir de forma quase instantânea a informações

públicas, especialmente aos dados econômicos mais esperados. A explicação para a existência de tantos tipos de estratégia, para Brière, é o fato de não haver um modelo único de avaliação das taxas de juros. Além disso, nenhuma delas mostrou-se sistematicamente melhor do que as outras (2005: 41-44). Caso contrário, as outras certamente já teriam sido abandonadas.

Diante de tantas estratégias com pressupostos radicalmente diferentes e um enorme volume de informações, reina nos mercados de taxas uma grande incerteza sobre o valor dos ativos. Ao contrário do que afirma a teoria tradicional, os agentes não sabem necessariamente qual o modelo nem qual informação utilizar. A resposta do mercado, diante da necessidade de agir, como diria Keynes, é buscar a opinião dos outros. Ela torna-se ainda mais importante, segundo Brière, porque os preços são o resultado de um fenômeno coletivo, de tal forma que não é possível prevê-los sem conhecer a opinião majoritária. A partir da observação das posições dos outros, os operadores orientam suas decisões.

A análise do ambiente de tomada de decisão dos participantes do mercado de títulos de dívida levam Brière a concluir, portanto, que a hipótese das expectativas racionais é extremamente irrealista. Para ela, é possível aperfeiçoar os modelos tradicionais de formação da taxa a partir da consideração da influência exercida pelas representações coletivas. O primeiro passo é substituir a hipótese tradicional pela que afirma que as expectativas dos participantes dependem da forma como eles percebem o comportamento dos bancos centrais e o funcionamento dos mercados (2005: 123-124).

Em seu trabalho, a autora defende que os bancos centrais e os economistas, com forte legitimidade sobre os mercados, influenciam a maneira como os agentes representam o funcionamento da economia e a política monetária. Eles dão as chaves que vão permitir aos participantes analisar cada situação sabendo que os outros seguem na mesma linha. Uma visão da economia e da política monetária que é de conhecimento de todos permite a coordenação. É desse argumento, apresentado por Brière na segunda parte do livro, que trataremos em seguida.