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Coordenação sem fundamentos objetivos: a autorreferencialidade

I. Convenções no mercado acionário

3. A abordagem convencionalista

3.1 Coordenação sem fundamentos objetivos: a autorreferencialidade

Como vimos, a teoria econômica tradicional defende a existência de um valor fundamental para a ação antes mesmo que se realizem as transações de mercado. Se o futuro é um fato objetivo e os agentes processam as informações racionalmente, isso garante a coordenação, de forma que as previsões convergem para o mesmo valor: o correto. Mas o que

levaria à coordenação e, assim, à determinação de um certo preço para as ações, quando não há esse valor pré-determinado, ou seja, essa referência comum? Orléan responde que a referência surge da própria interação, quando os investidores são estrategistas racionais em busca de antecipar a avaliação do mercado e agir de acordo com a opinião majoritária.

O termo autorreferencial é usado em contraposição com uma situação heterorreferencial, em que existe uma referência exterior ao grupo (no caso, o valor fundamental), que não pode ser afetada por ele, e a partir da qual os agentes determinam suas ações. Orléan faz, inclusive, uma adaptação do concurso de beleza (no caso, não-keynesiano) para exemplificar esse tipo de contexto: seria o caso em que um grupo de jurados, desconhecido pelos leitores, já teria escolhido as fotografias mais belas. Assim, os jogadores não teriam porque pensar nas decisões dos outros (1999: 107).

Já o concurso efetivamente apresentado por Keynes no capítulo 12 da Teoria Geral é uma situação tipicamente autorreferencial, em que é mais racional buscar prever a opinião majoritária, já que o resultado depende da interação entre os participantes. Nesse caso, os agentes não devem recorrer à opinião própria sobre a foto mais bela, mas também não devem procurar saber qual é a verdadeira opinião pessoal dos outros participantes. Como indivíduos racionais, cientes de que todos buscam o que cada um considera como a opinião média, eles estarão à procura da opinião do grupo como entidade coletiva (1999:111).

Nesse tipo de situação, fala-se em uma estratégia especular7, em que se busca uma variável endógena: a opinião do mercado. É como um jogo de espelhos, em que um se coloca no lugar do outro e, supondo que os outros têm a mesma capacidade de cálculo e previsão, aumentam o que Keynes chama de grau da crença. Orléan explica:

Este principio especular del cuestionamento cruzado domina fundamentalmente a la lógica financiera. Es una realidad del todo general: frente a una información nueva, los inversionistas se interrogan, no sobre su contenido real, en el sentido de la racionalidad fundamentalista, sino sobre la manera en que el mercado la va a interpretar. No se reacciona a la noticia, sino a lo que, se cree, pensarán de ella los otros, todos los cuales actúan de igual modo (1999: 117-118).

7 O termo especular é utilizado aqui por Orléan por ter a mesma raiz etimológica que as palavras espelho e especulação, em

Orléan apresenta um caso emblemático desse tipo de comportamento, relatado pelo jornal

The New York Times de 12 de novembro de 1987, quando o presidente Ronald Reagan afirmou que o dólar já tinha se desvalorizado o suficiente. O resultado foi uma alta da moeda americana. Ao entrevistar os participantes do mercado, o jornalista recebeu como resposta que ninguém acreditava nos conhecimentos econômicos do presidente. Todos compraram dólares porque achavam que os outros seriam influenciados pelo discurso e não porque tenham considerado o anúncio público como um motivo para mudar a avaliação fundamental da moeda.

As expectativas não são, portanto, orientadas para a economia real, mas para as expectativas do mercado. Percebe-se por esse caso que a autorreferencialidade leva à amplificação de rumores. É o que se percebe nos mercados financeiros, em que notícias ou meros indícios levam a movimentos generalizados de compra ou venda de determinada ação (Orléan, 1999: 120): “Que sean verídicos o no tiene menos importancia en el corto plazo que su efecto real e inmediato sobre los precios”. Cientes da reação imediata dos outros investidores, cada um se comporta da mesma forma, alimentando ainda mais o processo.

Em artigo publicado em 2006(a), Orléan chama de crença social aquela que é atribuída a uma entidade abstrata, o grupo. Parece absurdo afirmar que a entidade mercado crê em algo. Mas, segundo o autor, a análise empírica revela que, em muitos contextos de coordenação, os indivíduos fazem uso desse objeto cognitivo enigmático. Diz-se, por exemplo, que o mercado acredita que uma ação está excessivamente valorizada. Fala-se em crença social quando o indivíduo acredita que quase todos os outros participantes do mercado acreditam que o mercado acredita em algo, uma estratégia tipicamente especular.

A existência dessa crença social dá origem a situações, como a do presidente Reagan, em que todos acreditam em algo (que o presidente não entendia de Economia) e, simultaneamente, todos acreditam que o grupo como entidade acredita em outra coisa (que o presidente estava bem informado quando disse que o dólar já tinha se desvalorizado o suficiente). Nesse caso, a primeira crença, a pessoal8, pode ter sido elaborada com base em fundamentos, como a falta de formação

8Em artigo de 2006(a), Orléan chama essa crença pessoal comum a todos os indivíduos pertencentes a um grupo de crença

compartilhada. Outro tipo seria a crença comum, em que não só todos acreditam em algo, como também acreditam que todos acreditam nessa afirmação. Por fim, ele apresenta o conceito de crença social, em que um grande número de indivíduos aceita certa proposição como resposta à pergunta: “em que o grupo acredita?”.

acadêmica do presidente na área ou declarações passadas, mas foi a segunda que prevaleceu como guia para ação.

Para Orléan esse é o resultado mais forte, já que é precisamente por meio dessa atribuição de crenças ao grupo que o coletivo adquire existência, ou seja, deixa de ser mera soma das partes. Isso porque nenhuma força econômica é capaz de fazer coincidir as crenças pessoais com as de mercado. Assim, o mercado financeiro passa a ser visto como uma máquina cognitiva cuja função é produzir uma opinião de referência, percebida por todos os operadores como a expressão do que “o mercado pensa”. É isso que Orléan chama de natureza autorreferencial da especulação (2006b). Na prática, a qualquer momento, muito mais importante do que o valor descontado dos dividendos futuros é o preço das ações, formado por essa opinião de mercado e não por forças externas (2005: 3-4).

Mas como surge essa crença social? Como os agentes chegam a um ponto em comum a partir das crenças individuais? Para Orléan, o grupo busca uma referência, algo capaz de produzir coordenação, uma saliência. O processo torna-se estável quando se chega a um ponto de unanimidade, a chamada convenção, que tende a se reproduzir de forma espontânea. Vamos detalhar esse processo em seguida.