1 DEFININDO O DESTINO - PRESSUPOSTOS DA PESQUISA: A
1.2.1 Algumas notas metodológicas
Isto posto, resta a questão acerca das formas de expressão destas
identidades regionais na fonte aqui tomada para análise. Seria possível verificar a
presença de vestígios dos discursos identitários no Guia Quatro Rodas Brasil? Em
caso afirmativo, seria possível indicar a transformação da culinária regional em
produto turístico a partir dos dados disponibilizados por esta fonte?
Na introdução de História da Leitura no Mundo Ocidental, Cavallo e Chartier
(1998) remetem à distinção feita por Michel de Certeau entre o escrito e suas leituras
possíveis: o primeiro tem relação com aquilo que é fixado, durável, conservador; as
leituras, por sua vez, são da ordem do efêmero, da pluralidade e da invenção. Nesta
perspectiva, a forma do impresso (ditada pelos interesses de editores e autores)
afeta a construção do sentido do texto, limitando a interpretação do leitor, ainda que
não destrua por completo sua liberdade.
Em uma publicação com o caráter do Guia Quatro Rodas Brasil, esta faceta
da produção de sentido pelos autores, vinculada à limitação de interpretação do
leitor fica mais evidente, na medida em que se trata de uma obra com o claro intuito
de conduzir seu leitor pelos caminhos, lugares e atrações considerados mais
interessantes.
No entanto, é interessante sublinhar que, ao mesmo tempo, este gênero
subverte a ideia de que o escrito é da ordem do fixo e do durável: trata-se de uma
publicação anual, e uma análise em série possibilita a percepção de sua dinâmica,
inserindo-a também na esfera de inventividade, da transformação e do movimento. É
justamente esta característica que permite visualizar o processo através do qual a
culinária regional passa de atrativo a produto turístico no interior da fonte consultada.
Levar em conta espacialidade, temporalidade e outras variáveis tais como
cultura política, estética e religiosa torna-se primordial para análises dos suportes de
leitura de maneira ampla. A relevância de tais variáveis se dá, sobretudo, quando o
prisma do olhar sobre tais suportes não é o da História da Leitura; é necessário
contextualizar as fontes. A intenção neste trabalho não é desvendar as leituras
historicamente possíveis dos exemplares do Guia consultado, mas perceber como
os editores, ao incorporarem determinados discursos relativos à identidade regional,
em certa medida, impõem limites às leituras possíveis. Tentarei ainda, demonstrar
que este mesmo discurso, para além do viés ideológico, constitui-se em apropriação;
em leitura possível das identidades construídas.
Parte-se do seguinte pressuposto: se, segundo os estudiosos da história da
leitura, o leitor, ao contemplar um objeto escrito, sai do texto e o relaciona com seu
universo social (daí a multiplicidade de leituras possíveis), é possível também fazer o
caminho inverso. O autor, ao escrever um texto, traz para a sua escrita e imagens
que agrega a ela, um determinado universo social. Desta maneira, propõe um
itinerário e uma forma de leitura condizentes.
A pesquisa partiu do pressuposto de que o ofício do historiador se constitui na
busca por vestígios, indícios, sinais, provas, na perspectiva proposta por Ginzburg
(1989) e uma das grandes questões, dado o caráter inovador da fonte analisada, foi
justamente se perguntar que tipo de pistas os guias de viagem oferecem ao
pesquisador que se debruça sobre a temática da culinária regional.
Assim, as considerações a respeito das obras analisadas levaram em conta o
fato de que os elementos não verbais também têm a intenção de atuar sobre a
leitura e a compreensão do conteúdo dos textos. Formato, tipo de papel, cor,
caracteres, disposição de imagens e textos, pontuação, capitulares... A todos estes
elementos são atribuídos significados com o sentido de orientar a leitura. Foram
considerados primordialmente no processo de realização da pesquisa o lugar
dedicado à divulgação da culinária típica regional no Guia Quatro Rodas Brasil, em
articulação com os elementos supramencionados, procurando indícios de uma
perspectiva dos editores a respeito das identidades regionais, através da veiculação
destas culinárias.
Acerca da possibilidade de articulação entre o texto e o contexto, Mallard et
al. indicam a possibilidade de estabelecer vínculo entre o que está presente na
literatura com os aspectos coletivos e sociais, tornando possível a utilização do texto
literário como documento pela história:
O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde enveredam. Neste sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. (MALLARD et. al., 1995, p. 21).
Na obra Literatura e sociedade, Antonio Candido sustenta a impossibilidade
de dissociação de texto e contexto:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; é que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinavam como momentos necessários do processo interpretativo. [...] O externo (no caso, o social) importa, não como causa nem como significado, mas como um elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno. (CANDIDO, 2000, p. 4).
Chalhoub e Pereira (1998, p. 7), adotam uma postura radical que
desconsidera tanto a subjetividade dos autores como a relação da obra com o leitor.
No entanto, estes autores também sublinham, a partir da inserção social do autor,
que a literatura é testemunho histórico.
Partindo destes pressupostos, sugere-se que indicar os caminhos da culinária
regional no Guia, portanto, implica em compreender como os editores incorporaram
e interpretaram o contexto. Este contexto é reproduzido então numa obra que tem
uma clara intenção de guiar o turista, levando-o ao que há de melhor a se conhecer
no Brasil, numa perspectiva de consumo, na medida em que está presente na
publicação apenas aquilo que adquiriu a conotação de atrativo ou produto turístico.
Os guias turísticos impressos podem ser enquadrados como literatura utilitária
e, no interior deste gênero, sobressaem-se por buscar incessantemente a
atualização, para garantir ao leitor um retrato da realidade do turismo naquele
recorte momentâneo. É nesse sentido que se pode dizer que têm uma pretensão de
verdade.
Ginzburg (2004) define como literatura de fronteira a narrativa com pretensão
de verdade, distinta da narrativa ficcional. Fazendo uma análise desta definição,
Capraro sublinha que:
A obra de fronteira extrapola os limites rígidos da escrita acadêmica – as regras implícitas à historiografia ou à semiótica –, porém, ao mesmo tempo, assume um compromisso mais perene com a realidade social e histórica. Não é ciência, tampouco ficção, é narrativa e hibridismo, que ecoa no leitor como potente fonte de reflexão. Destacam-se, então, três gêneros ou subgêneros que são mais contundentes em relação à verdade: o romance histórico, o ensaio de cunho sociológico e a crônica. (CAPRARO, 2007, p. 22).