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Algumas notas metodológicas

No documento CADA COMIDA NO SEU TACHO: (páginas 86-90)

1 DEFININDO O DESTINO - PRESSUPOSTOS DA PESQUISA: A

1.2.1 Algumas notas metodológicas

Isto posto, resta a questão acerca das formas de expressão destas

identidades regionais na fonte aqui tomada para análise. Seria possível verificar a

presença de vestígios dos discursos identitários no Guia Quatro Rodas Brasil? Em

caso afirmativo, seria possível indicar a transformação da culinária regional em

produto turístico a partir dos dados disponibilizados por esta fonte?

Na introdução de História da Leitura no Mundo Ocidental, Cavallo e Chartier

(1998) remetem à distinção feita por Michel de Certeau entre o escrito e suas leituras

possíveis: o primeiro tem relação com aquilo que é fixado, durável, conservador; as

leituras, por sua vez, são da ordem do efêmero, da pluralidade e da invenção. Nesta

perspectiva, a forma do impresso (ditada pelos interesses de editores e autores)

afeta a construção do sentido do texto, limitando a interpretação do leitor, ainda que

não destrua por completo sua liberdade.

Em uma publicação com o caráter do Guia Quatro Rodas Brasil, esta faceta

da produção de sentido pelos autores, vinculada à limitação de interpretação do

leitor fica mais evidente, na medida em que se trata de uma obra com o claro intuito

de conduzir seu leitor pelos caminhos, lugares e atrações considerados mais

interessantes.

No entanto, é interessante sublinhar que, ao mesmo tempo, este gênero

subverte a ideia de que o escrito é da ordem do fixo e do durável: trata-se de uma

publicação anual, e uma análise em série possibilita a percepção de sua dinâmica,

inserindo-a também na esfera de inventividade, da transformação e do movimento. É

justamente esta característica que permite visualizar o processo através do qual a

culinária regional passa de atrativo a produto turístico no interior da fonte consultada.

Levar em conta espacialidade, temporalidade e outras variáveis tais como

cultura política, estética e religiosa torna-se primordial para análises dos suportes de

leitura de maneira ampla. A relevância de tais variáveis se dá, sobretudo, quando o

prisma do olhar sobre tais suportes não é o da História da Leitura; é necessário

contextualizar as fontes. A intenção neste trabalho não é desvendar as leituras

historicamente possíveis dos exemplares do Guia consultado, mas perceber como

os editores, ao incorporarem determinados discursos relativos à identidade regional,

em certa medida, impõem limites às leituras possíveis. Tentarei ainda, demonstrar

que este mesmo discurso, para além do viés ideológico, constitui-se em apropriação;

em leitura possível das identidades construídas.

Parte-se do seguinte pressuposto: se, segundo os estudiosos da história da

leitura, o leitor, ao contemplar um objeto escrito, sai do texto e o relaciona com seu

universo social (daí a multiplicidade de leituras possíveis), é possível também fazer o

caminho inverso. O autor, ao escrever um texto, traz para a sua escrita e imagens

que agrega a ela, um determinado universo social. Desta maneira, propõe um

itinerário e uma forma de leitura condizentes.

A pesquisa partiu do pressuposto de que o ofício do historiador se constitui na

busca por vestígios, indícios, sinais, provas, na perspectiva proposta por Ginzburg

(1989) e uma das grandes questões, dado o caráter inovador da fonte analisada, foi

justamente se perguntar que tipo de pistas os guias de viagem oferecem ao

pesquisador que se debruça sobre a temática da culinária regional.

Assim, as considerações a respeito das obras analisadas levaram em conta o

fato de que os elementos não verbais também têm a intenção de atuar sobre a

leitura e a compreensão do conteúdo dos textos. Formato, tipo de papel, cor,

caracteres, disposição de imagens e textos, pontuação, capitulares... A todos estes

elementos são atribuídos significados com o sentido de orientar a leitura. Foram

considerados primordialmente no processo de realização da pesquisa o lugar

dedicado à divulgação da culinária típica regional no Guia Quatro Rodas Brasil, em

articulação com os elementos supramencionados, procurando indícios de uma

perspectiva dos editores a respeito das identidades regionais, através da veiculação

destas culinárias.

Acerca da possibilidade de articulação entre o texto e o contexto, Mallard et

al. indicam a possibilidade de estabelecer vínculo entre o que está presente na

literatura com os aspectos coletivos e sociais, tornando possível a utilização do texto

literário como documento pela história:

O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde enveredam. Neste sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. (MALLARD et. al., 1995, p. 21).

Na obra Literatura e sociedade, Antonio Candido sustenta a impossibilidade

de dissociação de texto e contexto:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; é que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinavam como momentos necessários do processo interpretativo. [...] O externo (no caso, o social) importa, não como causa nem como significado, mas como um elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno. (CANDIDO, 2000, p. 4).

Chalhoub e Pereira (1998, p. 7), adotam uma postura radical que

desconsidera tanto a subjetividade dos autores como a relação da obra com o leitor.

No entanto, estes autores também sublinham, a partir da inserção social do autor,

que a literatura é testemunho histórico.

Partindo destes pressupostos, sugere-se que indicar os caminhos da culinária

regional no Guia, portanto, implica em compreender como os editores incorporaram

e interpretaram o contexto. Este contexto é reproduzido então numa obra que tem

uma clara intenção de guiar o turista, levando-o ao que há de melhor a se conhecer

no Brasil, numa perspectiva de consumo, na medida em que está presente na

publicação apenas aquilo que adquiriu a conotação de atrativo ou produto turístico.

Os guias turísticos impressos podem ser enquadrados como literatura utilitária

e, no interior deste gênero, sobressaem-se por buscar incessantemente a

atualização, para garantir ao leitor um retrato da realidade do turismo naquele

recorte momentâneo. É nesse sentido que se pode dizer que têm uma pretensão de

verdade.

Ginzburg (2004) define como literatura de fronteira a narrativa com pretensão

de verdade, distinta da narrativa ficcional. Fazendo uma análise desta definição,

Capraro sublinha que:

A obra de fronteira extrapola os limites rígidos da escrita acadêmica – as regras implícitas à historiografia ou à semiótica –, porém, ao mesmo tempo, assume um compromisso mais perene com a realidade social e histórica. Não é ciência, tampouco ficção, é narrativa e hibridismo, que ecoa no leitor como potente fonte de reflexão. Destacam-se, então, três gêneros ou subgêneros que são mais contundentes em relação à verdade: o romance histórico, o ensaio de cunho sociológico e a crônica. (CAPRARO, 2007, p. 22).

Destaca-se aqui, que se os guias turísticos não se estabelecem como uma

literatura de fronteira no sentido explicitado por Capraro, entende-se que veiculam

realidades ficcionais em suas páginas, conferindo a elas um sentido de verdade a

ser conhecida e (re)conhecida pelos viajantes que o utilizam.

2 ORGANIZANDO A BAGAGEM – REGIÃO E IDENTIDADE: A CONSTRUÇÃO

No documento CADA COMIDA NO SEU TACHO: (páginas 86-90)