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AS COZINHAS REGIONAIS SE ANUNCIAM NO GUIA QUATRO RODAS:

No documento CADA COMIDA NO SEU TACHO: (páginas 192-200)

4 PONTO DE PARTIDA – A EMERGÊNCIA DA VALORIZAÇÃO DAS

4.2 AS COZINHAS REGIONAIS SE ANUNCIAM NO GUIA QUATRO RODAS:

Propõe-se aqui um exercício de análise das fontes acerca da difusão das

comidas regionais em um momento identificado como marcado pelo esforço no

estabelecimento e afirmação dos regionalismos no plano nacional. Por este motivo,

as informações relativas ao estudo dos casos de Minas Gerais e Paraná serão

trazidas de maneira coordenada com os dados de outros estados, quando se

fizerem pertinentes, num esforço de entendimento que articula o particular com o

geral. Como as informações colocadas aqui indicam, trata-se de um momento em

que esta faceta das culinárias regionais se anunciava como possibilidade.

A visibilidade da culinária das regiões brasileiras no Guia se dá, desde a

primeira edição, de duas maneiras básicas: na formulação de uma lista ou quadro de

comidas regionais, colocada nas páginas iniciais da publicação (com uma variante

que insere as comidas regionais na descrição dos estados, também nas páginas

preliminares) e na identificação da especialidade dos restaurantes listados para cada

município que consta no Guia

138

.

Ao longo dos anos, é possível perceber a dinâmica da importância dada a

culinária pelas transformações das seções nos exemplares consultados. Para tornar

mais coerente a interpretação das transformações, optou-se por sua análise em

sub-tópicos específicos.

No primeiro exemplar, de 1966, não há nenhuma seção especificamente

voltada para a comida típica regional. No entanto, conforme o quadro 2, abaixo, na

descrição dos estados da Federação, com exceção do Acre, Distrito Federal, Goiás

e Mato Grosso, além dos territórios do Amapá, Rondônia e Roraima, em todos os

demais são citados pratos considerados típicos.

138

A partir de meados da década de 1980 a culinária típica vai ganhando outros espaços, como se verá nas páginas seguintes.

QUADRO 2 – COMIDA REGIONAL POR ESTADO/TERRITÓRIO – 1966

ESTADO/TERRITÓ

RIO PRATOS

Alagoas Sururu de capode ou despinicado (molusco) em

fritadas, empadas, refogados etc.

Amazonas Casquinhos de muçuã (espécie de tartaruga),

tacacá ao tucupi, paxicá, picado de peixes, etc.

Bahia

Acarajé, abará (feijão ralado, azeite de dendê),

acaçá (bolo de arroz ou milho cozido em folha

de bananeira), efó (sopa de taioba, camarões,

cebola, azeite e pimenta), vatapá (peixe numa

sopa de farinha de mandioca, pimenta e dendê).

Ceará

Carnes, pescados, jerimum, mandioca,

umbusada (umbu cozido com leite e açúcar),

paçocas de carne-de-sol, doces de frutas,

cartola (banana frita, queijo ralado, açúcar e

canela).

Espírito Santo Torta capixaba (bacalhau, camarões, mariscos,

palmito, ovos), moqueca de peixe.

Guanabara Feijoada à carioca (feijão preto, arroz, lingüiça,

couve, carne de porco).

Maranhão Camarões e peixes preparados de diversas

maneiras, arroz de cuchá e tiquira (bebida).

Minas Gerais Lombo de porco com tutu (feijão e farinha) e

couve, queijos e doces.

Pará

Casquinhos de muçuá (paxicá), peixes, doces,

frutas, açaí (macerato dos frutos com açúcar e

farinha).

Paraíba

Panelada ou sarapatel (sangue coagulado e

picado, preparado em banha,com miúdos),

macaxeira com carne de sol assada na grelha.

Paraná Barreado

Pernambuco

Peixes, caranguejos, lagostas, camarões, pitus,

cavala perna-de-moça, frutas, sorvetes e doces

típicos.

Piauí Carne, óleo das palmeiras, palmito, beijus.

Rio de Janeiro Feijoada

Rio Grande do

Norte Peixes, mandioca, milho, rapadura e verdura.

Rio Grande do Sul Churrasco, mate, vinho, cozinha de influência

germânica e italiana.

Santa Catarina Cozinha germânica e, no Vale do Itajaí, típica

da Baviera.

São Paulo

No interior, virado (feijão com farinha, carne de

porco, legumes, ovos), cuscuz (bolo de fubá de

milho, cozido com ovos, lingüiça etc).

Sergipe Buchada (sangue e miúdos de carneiro)

Uma vez que o Guia é uma publicação de caráter turístico, esta indicação das

comidas regionais revela já a existência de uma sensibilidade para a culinária das

regiões. No entanto, algumas pistas indicam que ainda não se trata exatamente de

uma percepção deste elemento do ponto de vista de produto turístico.

Um dos indicativos de que as comidas neste momento estão mais associadas

a uma ideia de curiosidade sobre os estados do que a uma percepção de sua

potencial utilidade para o desenvolvimento turístico reside na fluidez dos termos que

o Guia utiliza para se referir a tais pratos, como os exemplos apontam: pratos mais

comuns, cozinha alagoana, na cozinha, prato mais típico, principal alimento,

alimento básico, pratos populares etc.

Além disso, uma observação atenta do quadro acima revela que estas

cozinhas regionais estão sendo des-cobertas

139

. Ao mesmo tempo em que são

descritos pratos extremamente específicos e que, por isso mesmo, demandam uma

explicação sobre sua preparação ao lado da denominação – como a torta capixaba –

, também são relacionados genericamente peixes, carnes, cozinha germânica etc.

Esse caráter de descoberta também é revelado quando o olhar se volta para os

pratos relacionados para os estados do Amazonas e Pará: no Amazonas, paxicá e

casquinhos de muçuã são relacionados como dois pratos diferentes. Já no Pará,

paxicá é colocado como nome alternativo dos casquinhos de muçuã. Este traço, que

revela um certo desconhecimento, é percebido como um indicador da novidade que

é, mesmo para o Guia

140

, a cozinha de determinadas regiões.

Neste ano, para Minas Gerais, além dos queijos, leite e doces, o Guia

relaciona apenas um prato: lombo com tutu (feijão e farinha) e couve (GUIA Quatro

Rodas do Brasil, 1966, p. 54). O Paraná, por sua vez, tem indicados o alto valor

139

Optou-se aqui por esta grafia porque há um entendimento de que se tratam de características culturais dos estados brasileiros que em muitos casos estão ainda circunscritas dentro das fronteiras de cada estado – cobertas – e que só irão adquirir maior visibilidade ao longo dos anos subsequentes.

140

É importante ressaltar que o Guia, embora seja uma publicação de abrangência nacional é produzido por uma editora com sede no município de São Paulo, cuja equipe, em sua grande maioria, reside no mesmo

município. A pesquisa realizada para a publicação de cada exemplar implica na viagem desta equipe aos municípios listados. Talvez o caráter e o conteúdo das informações sobre cada estado e cada localidade listada fosse diferente se as equipes fossem regionais. Como foi colocado anteriormente, a percepção do Guia Quatro Rodas Brasil é de fora pra dentro.

alimentício do pinhão

141

e o barreado, descrito como cozido em panela de barro

(GUIA..., 1966, p. 60). É relevante mencionar, dados os contornos da identidade

paranaense que, neste ano, a cozinha de Santa Catarina é relacionada à influência

germânica e a do Rio Grande do Sul, além do churrasco, conta com as influências

germânica e italiana.

A este respeito, cabe a seguinte observação: ainda que no processo de

construção identitária paranaense o elemento imigrante tenha tomado uma

importância por vezes superdimensionada em detrimento de outros elementos

importantes para a formação social e histórica do Paraná, isso não se torna visível,

ao menos neste primeiro momento de divulgação em âmbito nacional das

características históricas e culturais do estado.

Já no ano de 1967 aparece pela primeira vez no Guia Quatro Rodas do Brasil

a seção Pratos típicos brasileiros, como uma relação de pratos com ingredientes e

preparo descritos em coluna ao lado, além da associação com um estado ou região.

Neste ano, as referências à culinária típica na descrição dos estados quase que

desaparece, mas, no Paraná, são citados diversos núcleos de colonização europeia,

dado ausente da descrição do estado no ano anterior.

Nesta seção, como se pode verificar no quadro 3, abaixo, as preparações

identificadas a Minas Gerais são: aluá – também identificada à região Nordeste;

baba de moça; feijão tropeiro; tutu à mineira

142

. O Paraná tem como prato típico

indicado o barreado

143

.

141

No entanto, o pinhão não é indicado com a intenção de relacioná-lo como comida da região. Sua citação está relacionada com a araucária de que, segundo o Guia, “[...] tudo se aproveita: madeira, fibra, resina, nós, casca dos galhos, pinhão (de alto valor alimentício) (GUIA..., p. 60).” Vale a pena ressaltar, ainda, que em nenhum dos exemplares consultados o pinhão foi destacado com alimento associado ao estado do Paraná.

142

Note-se que a descrição do tutu à mineira nesta publicação não corresponde à descrição comum da preparação, a saber, uma espécie de pirão com feijão batido misturado com farinha de mandioca, bem consistente, ornado com linguiças, ovos cozidos ou fritos e condimentos.

143

Os seguintes pratos estão sem identificação de localidade: bolo de fubá, bombocado, casquinhas de siri, cocada, cozido, pamonha, pé de moleque, queijadinha e quindins. A maior parte deles, com exceção das casquinhas de siri, cozido e quindins, geralmente presentes nas relações sobre a comida mineira presente na bibliografia gastronômica, principalmente. Cf: CHRISTO, Maria S. L. Fogão de Lenha: 300 anos da cozinha mineira. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. NUNES, Maria Lúcia Clementino; NUNES, Márcia Clementino. História da arte da cozinha mineira por dona Lucinha. Belo Horizonte: Ed. da autora, 2001. CHRISTO, Maria Stella Libânio. Minas de forno & fogão: receitas para todas as festas e para todos os dias do ano. 2a ed. São Paulo: Papagaio, 2002.

QUADRO 3 – PRATOS IDENTIFICADOS AOS ESTADOS DE MINAS GERAIS E

PARANÁ PELA SEÇÃO PRATOS TÍPICOS BRASILEIROS. GUIA QUATRO

RODAS BRASIL – 1967

FONTE: Guia Quatro Rodas do Brasil (1967)

144

Note-se que entre os pratos identificados a Minas Gerais, o primeiro deles, o

aluá, é uma bebida que posteriormente não se afirmou num quadro da cozinha

regional mineira. A descrição do feijão tropeiro, por sua vez, não corresponde à

receita mais comum encontrada na atualidade; aproxima-se mais – apenas com o

acréscimo da cebola – da descrição do prato feita no século XIX por Auguste

Saint-Hilaire (1975) e Richard Burton (1976). Por fim, a descrição do tutu à mineira como

uma variante do feijão tropeiro não corresponde ao que é descrito nas receitas em

geral. Para verificar as especificidades de cada prato, como exemplo, reproduz-se

abaixo ambas as receitas publicadas por Maria Stella Libânio Christo na obra Fogão

de lenha: 300 anos da cozinha mineira (1986) que, segundo a autora, é uma

compilação de receitas de livros de senhoras mineiras do final do século XIX e início

do século XX.

FEIJÃO TROPEIRO

Feijão preto ... 1 kg

Farinha de mandioca ... 1 xícara (chá)

Linguiça ... 1 kg

Ovos cozidos ... 2

Tempero mineiro... a gosto

Toucinho (para torresmos)... 1 kg

Cozinhar o feijão (não pode ficar desmanchado). Deixar escorrer o caldo

numa peneira. Á parte: picar o toucinho, temperar com sal e fritar até

começar a amarelar. Fritar a lingüiça numa panela com pouco d’água,

144

A publicação não cita as fontes utilizadas para a organização do tópico Pratos típicos brasileiros.

PRATOS DESCRIÇÃO ESTADO(S)

Aluá Bebida de casca de abacaxi fermentada. Minas Gerais e Nordeste Baba de moça Doce de calda com leite de côco e ovos. Minas Gerais

Barreado

Costeleta de vaca temperada e cozida numa panela de barro enterrada no chão sob uma fogueira (festa do Ano Nôvo).

Paraná

Feijão tropeiro Feijão preto com toucinho, cebola, farinha de milho e

mandioca. Minas Gerais

tampada. Destampar logo que a água secar, para corar. Na gordura do

torresmo – ½ xícara (chá) – bem quente, afogar os temperos e o feijão

cozido sem caldo. Adicionar a farinha e os torresmos. Transferir para uma

travessa.

GUARNIÇÃO: Enfeitar o feijão tropeiro com rodelas de ovo cozido, e

contorná-lo de pedaços de lingüiça frita. Em travessa separada, servir

couve à mineira e arroz, assim como o molho acebolado.

TUTU DE FEIJÃO

Tempero mineiro ...1 colher (chá)

Farinha de mandioca ... .1/2 xícara (chá)

Feijão (preparado) ... 1/2 kg

Ovos cozidos ... …...2

Toucinho de barriga (para torresmos)... 1 kg

Toucinho (para torresmos)... 1 kg

Pode-se usar o feijão preparado com o caldo, ou batê-lo integral no

liquidificador. Numa panela de ferro: temperar o toucinho, partido em

cubos como para torresmos, e fritá-lo lentamente a fogo brando. Retirar os

torresmos com a escumadeira e pô-los a escorrer. Na gordura do toucinho,

refogar o tempero e adicionar a massa de feijão.

Depois, lentamente e mexendo sempre, distribuir por cima a farinha de

mandioca até que fique um pirão mole.

Passar o tutu pra uma travessa, guarnecendo-o de couve mineira, fatias

de lombo assado e pedaços de linguiça fritos. Distribuir os torresmos por

cima com rodelas de ovo cozido.

GUARNIÇÃO: Ovos fritos. Arroz.

Quanto ao barreado, único prato associado ao Paraná, a carne utilizada e a

festa à qual o prato é relacionado não corresponde ao que comumente é associado

à preparação. Em seu estudo sobre o barreado, Gimenes descreve o Carnaval como

o festejo ao qual se relaciona o prato, sendo que em sua ampla pesquisa, em

nenhum momento cita o Ano Novo como festejo identificado pelas suas fontes ao

prato. Segundo a mesma autora, as carnes mais comuns citadas nos levantamentos

realizados em sua pesquisa, entre as quais não figura a costeleta são:

[...] Patinho, Peito, Paleta, Lombo Agulha, Coxão-mole e Alcatra (apesar destas duas últimas não serem consideradas carnes de segunda). Há outras recomendações, como a de usar qualquer carne de segunda magra, mas também há outros cortes que são citados, tais como Coxão-duro, Granito, Posta Branca, Matambre e Posta Vermelha. (GIMENEZ, 2008, 101-102).

No ano de 1970 os pratos típicos aparecem novamente na seção que

descreve os estados, sendo que as únicas exceções são o Distrito Federal e o

Território de Fernando de Noronha que não têm nenhum prato descrito como típico.

É possível verificar no gráfico 2, abaixo, o número de pratos relacionados a cada

unidade federativa neste ano.

NÚME R O DE PR ATOS POR UF

0 2 4 6 8 10 12 14 16 18

G uanabaraP araná

P iauí

R io de J aneiro

E spírito S anto Maranhão

Mato G rosso

R io G rande do S ulS anta C atarina

Território deAcre

Minas G eraisP araíba

R io G rande do NorteS ergipe

G oiás

Território de R oraimaS ão P aulo

Alagoas

Território do AmapáAmazonas

P ernambucoC eará

BahiaP ará

Quantidade de Pratos

Gráfico 2 – NÚMERO DE PRATOS TÍPICOS, POR UNIDADE FEDERATIVA. 1970

FONTE: Guia Quatro Rodas Brasil (1970)

É interessante perceber, como o gráfico indica, que os estados com maior

número de pratos relacionados neste ano – até oito – são todos pertencentes às

regiões Norte e Nordeste, com destaque para o Pará e a Bahia. Verificando o quadro

4, abaixo, é possível perceber que em ambos os estados o destaque é para comidas

com denominação exótica aos viajantes, bem como, no caso do Pará, preparações

tidas, atualmente, em desacordo com as noções de sustentabilidade e preocupação

ambiental – caso da sopa de tartaruga e do tracajá.

No documento CADA COMIDA NO SEU TACHO: (páginas 192-200)